(Imagem da postagem cedida pela autora do texto)
Viviann Brito Mattos – Procuradora do Trabalho, Doutoranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (UERJ), Mestre em Direito do Estado (PUC/SP), Especialista em Direitos Humanos e Trabalho (ESMPU) e em Direitos Difusos e Coletivo (ESMP/SP)
Mahatma Gandhi uma vez disse: “a prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência”.
A liberdade é vista como um elemento central e imprescindível para o ser humano e para o próprio desenvolvimento na sociedade e, desde sempre, foi uma das grandes questões da humanidade. O filósofo Jean-Paul Sartre certa feita sentenciou: “estamos condenados a ser livres”.
Apesar de falada e filosofada, a liberdade conviveu lado a lado com a escravidão, de modo que era tratada sob o ângulo do homem livre que detinha a efetiva condição de cidadão, porque não se pensava no escravo como trabalhador e, sim, como mero instrumento de trabalho ou uma coisa que simbolizava simplesmente o status do seu dono na sociedade.
No Brasil temos mais tempo de trabalho escravo do que do assalariado, embasado, como bem registra Lilia Schwarcz [1], em um processo de amnésia nacional sobre a escravidão, imortalizado pelo hino da República, que afirmava não acreditar que tivesse havido escravidão na terra do pau brasil.
Cem anos depois da oficialização do fim da escravidão no país, a Nação brasileira foi brindada com uma nova Constituição de 1988, que trouxe consigo a promessa principal de respeito à dignidade humana e garantia da igualdade e liberdade dos seres humanos, assim como de seus direitos sociais fundamentais. E, com ela, ficou consagrado o repúdio à prática do trabalho escravo ou forçado, seja por disposições expressas, seja pelo conjunto de princípios que carrega.
Essa arrojada Constituição listou ainda uma série e direitos trabalhistas aos trabalhadores. Foi a consagração da igualdade, da liberdade e da fraternidade, com proteção, no seu mais elevado patamar, exceto para a trabalhadores que executam trabalho na residência familiar para realização de atividades do lar.
A Constituição limitou o acesso aos trabalhadores domésticos, originalmente, à apenas 9 dos 34 direitos garantidos aos demais trabalhadores, no parágrafo único do artigo 7º: o direito ao salário mínimo, à irredutibilidade salarial, ao 13º salário, ao repouso semanal remunerado, às férias + 1/3, à licença maternidade de 120 dias, à licença paternidade, ao aviso prévio, à aposentadoria, bem como sua integração à previdência social.
A inclusão dos trabalhadores domésticos na Constituição Federal foi uma evidente tentativa (porém, tímida) de rompimento prático com a mácula legislativa e social que acompanhou o trabalho doméstico em mais de meio século de tratamento diferenciado dos demais trabalhadores urbanos.
Somente com a Emenda Constitucional nº 72, conhecida como “PEC das Domésticas”, é que outros direitos foram previstos, tendo alguns ficado a cargo de regulamentação, que ocorreu com a sanção da Lei Complementar nº 150/2015, como, por exemplo a possibilidade de intervalo (almoço) de 30 minutos; adicional noturno; banco de horas; adicional de viagem; férias fracionadas (02 períodos); Contrato por prazo determinado; jornada 12×36; dentre outros.
Não obstante, do ponto de vista material, o trabalho doméstico sempre foi cercado de preconceitos e estereótipos, dialogando, mesmo na atualidade, com a realidade dos lares brasileiros e com os valores sociais que seguem pautando o entendimento do que os afazeres domésticos e de cuidados não são vistos como trabalho e são considerados como funções naturais da mulher, refletindo, ademais, um país ainda atado aos laços psíquicos e sociais da escravidão.
Com efeito, como o produto do trabalho doméstico não é produzido para venda, e, portanto, não está sujeito a operação da lei do valor, é colocado à margem da lógica mercantil capitalista, produtora de mais-valia, evidenciando a ideia do trabalho como um não-valor na sociedade atual, o que o faz, por suas características meramente reprodutivas, não ter valorização social, apesar de ser um trabalho necessário, inclusive, para o próprio sustento e continuidade das demais atividades tidas como produtivas.
Para reforçar a atribuição de não-valor ao trabalho doméstico, seccionou-se a realidade, dividindo o âmbito residencial e a finalidade econômica geral, como se fossem dois mundos diferentes, para justificar o tratamento desigual e de baixo custo do trabalho doméstico em relação aos demais trabalhadores que executam atividades produtivas, pela ausência de lucro.
A atribuição de não valor ao trabalho doméstico não nasceu especificamente do capitalismo e sim de processos históricos, especialmente a escravidão, tendo o capital dela se apropriado do gênero e da raça para construir e sustentar a acumulação.
Tal fato se reflete no retrato sociodemográfico do trabalho doméstico no Brasil que, segundo uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018 constatou uma informalidade no setor superior a 70%, uma vez que apenas 28,3% das trabalhadoras doméstica tinham carteira assinada no momento da pesquisa. A pesquisa concluiu também que o trabalho doméstico remunerado ainda é caracterizado por uma atividade precária, com baixos rendimentos, baixa proteção social, discriminação e até assédio, sendo ocupado 92% por mulheres – em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda. [2]
Esse altíssimo número de trabalhadoras domésticas no Brasil, com enfoque na intersecção de gênero e raça, e a desvalorização do ponto de vista da remuneração e do reconhecimento social faz parte também da herança da sociedade escravagista da época colonialista que insiste em permanecer nos dias de hoje para colocar a trabalhadora doméstica em seu lugar, dando sentido e forma à relação de trabalho doméstico. Exemplos claros disto são a existência de um cômodo na casa para a empregada; não ser possível contar as horas de trabalho da empregada porque ela dividiria supostamente seu tempo entre uma atividade e o “descanso”; separar a cozinha das áreas de vivência; ou ter entradas e elevadores “de serviço”.
As meninas que são “pegas para criar como filhas” e “ensinadas” a fazer os trabalhos domésticos, as babás que viram “segunda mãe”, as cuidadoras que são como “netas”, fazem com que a relação de trabalho doméstico, diferentemente das outras relações de trabalho, seja marcada por uma forte ambivalência diante dos laços de afeto criados pela presença diária, proximidade e confiança, mas que não dissolvem a distância social e o lugar de cada uma na casa [3].
O tendencioso apelo afetivo e a falsa ideia de pertencimento, que faz se referir as trabalhadoras domésticos como “quase da família”, está fortemente enraizada, como na época da escravidão, nas relações de “favor” ou “compadrio” pela “desqualificação” para outro tipo de ocupação, e servem para naturalizar a noção da dependência, lealdade e subserviência, colaborando para uma maior exploração dessas pessoas, na medida em que são tirados do lugar de trabalhadores [4].
A condição de “empregada parente” marca também o “referencial de autoridade capaz de oferecer segurança e sentido à vida” da trabalhadora já tão vulnerável, desvalorizada e discriminada [5].
Quando há a internalização desse vínculo afetivo, seja por meio da manipulação ou do abuso psicológico, a trabalhadora acaba vivendo dentro de uma prisão psicológica idealizada por seus patrões, que a faz se empenhar em expressar sua gratidão ao trabalho, abdicando, de certa forma, de sua própria vida, de suas vontades e direitos, para viver uma “servidão extremada” à “família”, na forma de um trabalho permanente e recebendo muitas vezes como pagamento pelos serviços prestados um valor degradante quando não apenas a sua comida, vestuário e o direito de habitação, na maioria das vezes, em condições em nada equiparadas ao demais “membros da família”.
De 2017 para cá têm sido recorrentes casos de trabalhadoras domésticas reduzidas à condição análoga à de escravas, por jornadas exaustivas e condições degradantes, assim como anúncios de empregos abusivos. Em janeiro do ano de 2021, uma Força Tarefa Nacional detectou, em uma única operação, dois casos, em bairros diferentes do Rio de Janeiro, em que as trabalhadoras domésticas foram encontradas subjugadas, sem controle da própria vida. [6]
Somente em 2019, segundo dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, em 111 dos 267 estabelecimentos fiscalizados em 2019, houve a caracterização da existência dessa prática com 1.054 pessoas resgatadas em condições desse tipo, dos quais 14 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo doméstico. [7]
Quando se pensa em trabalho análogo à de escravo, via de regra, se visualiza mentalmente a figuração histórica estampada do trabalhador acorrentado, mãos e pés atados e coagido fisicamente com armas ou outros instrumentos de persuasão física, conectando-se a imagem, portanto, com a ideia de liberdade de locomoção.
Entretanto, nem mesmo na escravidão clássica os escravizados tinham sua mobilidade reduzida ou controlada por meios físicos, como bolas de ferro, grilhões ou grades. O que os mantinha no regime era a estrutura jurídica-social que se baseava na legitimidade da situação do negro e seus descendentes à “autoridade moral do senhor”.[8]
No âmbito do trabalho doméstico essa legitimação é muito mais fácil de ser alcançada, seja por conta da vulnerabilidade da trabalhadora, seja porque, como o trabalho se dá dentro de uma residência e cercado com vínculos “afetivos”, muitas vezes até “maternais”, num ambiente de “cumplicidade” de quem acompanha tudo o que acontece no seio familiar, há uma propensão ao abuso e a manipulação psicológica.
Tal como na violência doméstica, o trabalho doméstico é invisível, pois ninguém consegue saber o que se passa nas quatro paredes de uma residência, principalmente no que diz respeito a relação de trabalho, o que faz crescer de um lado um sentimento de normalização da exploração e, de outro, mina a resistência da trabalhadora, por conta de um abuso psicológico em que informações são distorcidas, seletivamente omitidas ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção, identidade, autoestima e até mesmo, sanidade, em benefício do abusador, e, da falta de uma fiscalização eficiente e presente.
O resgate de quem se encontra nessa situação muitas vezes traz culpa àquela que é resgatada, que se sente em dever moral decorrente desses “laços afetivos” que se formam, de não se revoltar contra sua exploração, diante da relação de dominação e subordinação que se cria devido a violência psicológica.
Isso demonstra que não há nesta relação qualquer tipo de liberdade, nem mesmo uma projeção de uma liberdade abstrata, pela perda da capacidade de emancipação e da falta de autonomia, como possibilidade de criação da própria vida, sem que ela não seja a apropriação do patrão.
Não aceitar essa mudança de viés da liberdade no trabalho análogo à de escravo, é ficar preso a dogmas ultrapassados e negar que a pessoa humana tem sua dignidade gravemente ferida não apenas quando há o cerceio à sua liberdade, mas também quando sua condição de pessoa é colocada de lado [9].
Afinal de contas, a liberdade é importante, mas não está acima da dignidade humana, pois essa sim é fundamental.
[1] GLOBO Educação. Brasil viveu um processo de amnésia nacional sobre a escravidão, diz historiadora. Entrevista com Lilia Schwarcz. 10/05/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/brasil-viveu-um-processo-de-amnesia-nacional-sobre-a-escravidao-diz-historiadora.ghtml> Acesso em:17.fev.2021
[2] Os dados estão no estudo “Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: Reflexões para o Caso Brasileiro a Partir dos Dados da PNAD Contínua”. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35231&Itemid=444> Acesso em 17.fev.2021.
[3] RARA, Preta. Eu, Empregada Doméstica – A Senzala Moderna É O Quartinho Da Empregada. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
[4] Rádio UFMG Educativa. Entrevista com Professor Cristiano Rodrigues, do Departamento de Ciência Política da Fafich. 12/06/2020. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/trabalho-domestico-no-brasil-e-heranca-do-periodo-escravocrata-diz-professor-da-ufmg> Acesso em 17.fev.2021.
[5] PEREIRA, Virginia Areais. Herança escravocrata e trabalho doméstico remunerado: rupturas e permanências. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Pernambuco: Recife, 28/02/2012. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/19121/1/2012-dissertacao-VirginiaPereira.pdf> Acesso em 17.fev.2021.
[7] Disponível em: <https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/02/16/o-trabalho-domestico-remunerado-deveria-acabar.htm?> Acesso em: 15.mar.2021
[8] MESQUITA, Rodrigo Octavio de Godoy Assis; MESQUITA, Gabriela Piai de Assis. Grilhões ideológicos e escravidão contemporânea: a escravidão tradicional não se definia pela privação do direito de ir e vir. Revista dos Tribunais | vol. 1025/2021 | p. 327 – 346 | Mar / 2021 | DTR\2021\1950
[9] BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho escravo: caracterização jurídica. São Paulo: LTr Editora, 2017.
Excelente reflexão! Superada a escravidão pré Lei Áurea, em que o escravo era propriedade do senhor, o ponto central na contemporaneidade, ao que me parece, está na irrealidade dos valores das mercadorias, que supera o valor do trabalho – efeito que Marx chamou de fetichsimo da mercadoria -. Logo, o trabalho que não gera lucro é um trabalho “menor”, “menos importante” etc. É, nada mais, que outra vertente da vinculação do acúmulo de capital com a consagração social.
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Ótima e pertinente reflexão, Dr. Oscar. Interessante essa abordagem de “quase pertencerem a familia”, uma forma de mitigar o conceito de exploração. São os trabalhadores invisíveis, aos olhos da sociedade e da própria lei. Espero que esteja tudo bem com o Dr., e sentimos falta das nossas audiências.
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Foi tema da minha monografia na graduação, e apesar das limitações daquele trabalho, consegui dar também um enfoque crítico ao tema no ano de 2006, quando apresentei. Mesmo sendo suspeito para comentar o estilo, achei o excelente que o texto revive os mesmos problemas que constatei na época. Com as reformas que existiram no advento da Emenda Constitucional nº 72, de 2013 (modificação do p.u. art. 7o da CRFB) achei que muito disso estaria resolvido, mas me enganei. Os avanços foram mínimos, porque falta mais humanidade, mais dignidade, mais respeito, e isso as Leis não equilibram, principalmente em tempos tão nebulosos como vivemos.
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