NÃO É O QUE NÃO PODE SER – UMA ANÁLISE ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO § 4ª, DO ARTIGO 791-A, DA CLT

Felipe Guimarães Ritzmann – Advogado, Especialista em Direito do Trabalho (Escola Superior da Magistratura do Trabalho da 12ª Região – AMATRA 12)

“Cabeça Dinossauro”, conhecido como o terceiro disco da banda paulistana de rock Titãs, certamente é apontado em 9 de cada 10 listas elaboradas em terras tupiniquins relacionando os maiores discos da história nacional. Uma verdadeira seleção sonora que remete aos tempos áureos do gênero musical das pedras rolantes que por aqui também aportou.

Um disco lançado em 1987, em meio aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte instaurada em 1986, que deu origem à Constituição Federal responsável por colocar o cidadão em seu centro de proteção e que trouxe lugar de destaque para os direitos sociais (gênero do qual o direito do trabalho é espécie), alçando-os ao patamar dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Referida obra inclusive se forja em meio a um gênero musical que cresceu presenciando o fim da ditadura militar e a queda da censura. Que observou de perto o atentado do riocentro e o movimento da democratização espelhado na campanha das Diretas Já. Um gênero musical, que segundo o dedicado estudo de Germano Schwartz1, produziu uma espécie de comunicação musical que traz grandes impactos no ambiente que circunda os subsistemas sociais.

Tamanha é a riqueza e profundida do disco, que para cada faixa do disco uma nova dissertação se mostra plenamente viável.

De um cenário distópico retratando um mundo pós apocalipse nuclear, em que apenas “bichos escrotos” sobreviveram à sanha do homem e sua bomba atômica certamente obteríamos belas linhas sobre os desdobramentos da imperativa observância à dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a faixa “Igreja” renderia uma oportuna reflexão sobre a necessidade de preservação do Estado laico e multicultural, sendo salutar recordar que há não muito tempo, durante a vigência da Constituição Federal de 1967 havia uma única religião oficial no Brasil: A Católica Apostólica Romana.

Já a relação capital/trabalho retratada em Homem Primata permitiria brilhante ensaio, especialmente se analisada à luz da “Ciência da Legislação Laboral”, do renomado jurista argentino Mário Deveali.

Dentre tantas outras, uma que carrega também grande apelo visual fecha com chave de ouro o apreciado disco: “O que”. Um digno exemplar que retrata tão bem o movimento da vanguarda concretista paulista, traz ainda mais forma e beleza ao conteúdo. Uma composição que dança em círculos, trazendo sentidos distintos a cada novo ponto de partida. Mas um em especial me reporta ao presente instante, em que se opõe a pena ao papel: “Não é o que não pode ser”!

O Direito do Trabalho insculpido sob a pedra da proteção aparenta vivenciar um período de franca crise de identidade.

Tal observação decorre das paulatinas alterações celebradas na malha legal trabalhista que evidenciaram nítido propósito desregulamentador e declarado objetivo de redução do número de demandas perante o judiciário trabalhista, ainda que para isto avançassem sobre garantias processuais, incorrendo em violação de direitos fundamentais, a exemplo da concessão efetiva dos benefícios da gratuidade de justiça ao trabalhador em condições de hipossuficiência, como pressuposto de acesso à jurisdição trabalhista.

O artigo 791-A, § 4º, incorporado à CLT, por força da aprovação da Lei n. 13.467/2017 trouxe o seguinte entendimento:

Vencido o beneficiário da Justiça Gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

A norma acima transcrita ignora a condição de insuficiência de recursos do litigante para impor tal ônus ao beneficiário da gratuidade de justiça, afastando os benefícios da gratuidade de justiça independentemente da alteração financeira do trabalhador e de sua família, bastando, para tanto, que seja vencedor em ao menos um dos pedidos.

A expressão “créditos capazes de suportar a despesa” faria sentido somente quando a condição financeira do beneficiário da justiça gratuita fosse, de fato transformada por vultosa quantia obtida por meio de decisão judicial. Todavia, referido comando legal vinha sendo reiteradamente aplicado nas decisões judiciais, em desfavor de trabalhadores beneficiários da gratuidade de justiça, que logram parcial êxito em suas demandas, culminando em abatimento automático de créditos oriundos de direitos reconhecidos em sentença para quitação de honorários sucumbenciais, ainda que o acréscimo financeiro obtido em juízo passe longe de representar alteração na qualidade de sua vida.

A concessão de Justiça Gratuita implica necessariamente no reconhecimento de que o beneficiário não possui condições de litigar sem prejuízo de seu sustento e de sua família, na linha do art. 14, § 1º da Lei 5.584/70, encontrando alicerce nas garantias constitucionais de acesso à jurisdição e do mínimo material necessário à proteção da dignidade humana (CF/88, art. 1º, inciso III e art. 5º, inciso LXXIV). Por conseguinte, os créditos trabalhistas auferidos por quem ostente tal condição não se sujeitam ao pagamento de custas e despesas processuais, salvo se comprovada a perda da condição.

Semelhante compreensão acerca do comando legal em análise é compartilhada tanto pelo Enunciado n. 100, da 2º Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, como pelo Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, ao reconhecerem a inconstitucionalidade da previsão de utilização dos créditos trabalhistas reconhecidos em juízo para o pagamento de despesas do beneficiário da justiça gratuita, como honorários sucumbenciais.

Se observa com frequência que o não reconhecimento da inconstitucionalidade do §4º, do artigo 791-A, caminha associado ao argumento de que tal comando legal traduz verdadeira conquista da classe advocatícia para o processo do trabalho, oportunizando o recebimento de honorários sucumbenciais, em aproximação ao que já se praticava no processo civil.

Todavia é imperativo ponderar que o Código de Processo Civil, de aplicação dispensada aos litigantes na Justiça Comum, que em regra se encontram em equidistância, não estabelece tal possibilidade de utilização dos créditos reconhecidos em juízo para o pagamento de despesas do beneficiário da justiça gratuita, constatando-se assim que o legislador ordinário trouxe tratamento mais gravoso, restritivo e prejudicial ao demandante na Justiça do Trabalho, que ao destinado ao litigante na Justiça Comum, o que nos remete à constatada crise de identidade.

Tal qual dispõe Plá Rodriguez2, em sua obra Princípios de Direito do Trabalho, o Princípio de Proteção se refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, inspirado em um propósito de igualdade, ao efetivamente reconhecer a necessidade de minimizar os efeitos nocivos que a troca desigual – Dinheiro x Vida – que o Estado permite e incentiva, provoca no homem trabalhador e na sociedade em que ele está inserido.

Como bem pondera Valdete Souto Severo3, “os juízes não podem ser ‘pró’ essa ou aquela parte, mas havendo optado por atuarem como Juízes do Trabalho, têm dever de reconhecer e aplicar as regras a partir do princípio da proteção, com o qual assumem compromisso, ao jurarem aplicar a Constituição, que tanto no primeiro dos seus artigos, quanto em todo seu texto, teima em insistir na necessidade de proteção à relação de Trabalho”.

Acrescenta ainda que “a proteção não está à disposição do intérprete, para ser afastada no caso concreto, a partir da ponderação com outra norma jurídica. A proteção é o que legitima a regra trabalhista, está nela necessariamente ‘grudada’, sob pena de invalidade, em razão da quebra da função do ordenamento jurídico trabalhista”.

Os avanços e conquistas de outrora hão de perdurar, sob argumento inclusive da observância ao princípio da vedação ao retrocesso social.

Mas eis que o Supremo Tribunal Federal, provocado a analisar a alteração legal em comento, por intermédio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5766, surpreende a todos e em uma decisão histórica, com um placar apertado de 6 x 4, com votos favoráveis dos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber culmina reconhecendo não só a inconstitucionalidade do artigo 791-A, § 4º, da CLT, como também do artigo 790-B, que estabelecia também ao beneficiário da gratuidade de justiça o ônus de arcar com os honorários periciais, quando sucumbente no pedido em que originou a perícia.

Parafraseando Arnaldo Antunes, “não é o que não pode ser que não é”, pois não reconhecer a inconstitucionalidade do § 4º, do artigo 791-A, da CLT seria no mínimo negar a própria essência protetiva em que se funda o Direito do Trabalho.

Por ora o pulso ainda pulsa… Mas este já é assunto para um outro disco.

1 SCHWARTZ, Germano. Direito & Rock. O BRock e as expectativas normativas da Constituição de 1988 e do Junho de 2013. Livraria do Advogado Editora Ltda. Porto Alegre. 2014.

2 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Editora LTr. São Paulo. 2ª edição. 1978, pág. 27.

3 SEVERO, Valdete Souto. Resistência. Aportes Teóricos Contra o Retrocesso Trabalhista. Artigo: A Hermenêutica Trabalhista e o Princípio do Direito do Trabalho. Editora Expressão Popular. 1ª edição. São Paulo. 2017, pág. 37.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

4 comentários em “NÃO É O QUE NÃO PODE SER – UMA ANÁLISE ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO § 4ª, DO ARTIGO 791-A, DA CLT

  1. “Meu pai um dia me falou
    Pra que eu nunca mentisse
    Mas ele também se esqueceu
    De me dizer a verdade”

    Enfim, a justiça se fez justa…
    Parabéns pela publicação Dr Oscar.
    Pelo tema escolhido e pelo belo e “titânico” artigo do adv Felipe Guimarães.

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