DIREITO – mas em que mundo tu vive? – DO TRABALHO: UM TOQUE DE FALERO A OPERADORAS E DORES DO DT

Oscar Krost

O Direito é um meio de regulação social composto por normas, gênero do qual fazem parte, como espécies, as regras e os princípios. Miguel Reale, pela teoria tridimensional, contraditoriamente representada por uma figura plana e triangular, entende ser a combinação de fato, valor e norma, cada termo ocupando um dos vértices. Há um sem número de definições sobre o que possa ser Direito, inexistindo uma definitiva e que agrade a todos, sendo impossível não lembrar das palavras do Ministro Potter Stewart, da Suprema Corte Norte-Americana: “Eu não sei definir pornografia, mas reconheço-a quando a vejo“.1

Embora a ninguém seja dado descumprir a lei sob a alegação de desconhecê-la, fato é que as pessoas não só a ignoram, como, mesmo conhecendo, não a entendem. A literatura é pródiga em exemplos, tais como “Diante da lei” e “O processo”, ambos de Franz Kafka.2

Eis o grande nó de um Direito que não admite ser ignorado: de forma dissimulada, aspira a universalidade em sua aplicação, seguindo inerte em relação a se fazer compreender pelos destinatários. Nó absoluta e ideologicamente proposital.3

Aí tem início a missão de Doutas e Doutos, Bacharelas e Bacharéis, diplomad@s em Ciências Jurídicas e Sociais, não de tornar o Direito palatável, enquanto tecnologia estatal de controle social por meio da linguagem, mas seguro, previsível e estável. Nada de rupturas ou desconstruções, causa provável do emprego eufemístico do termo “reforma” para designar a revogação de leis de proteção social, a exemplo da trabalhista.

E como nada é tão ruim que não possa piorar, o Brasil, além de pentacampeão de futebol masculino e 9º colocado no ranking mundial de desigualdade social,4 tem o maior número de instituições de ensino oferecendo o curso de “Direito”. Exatamente: HUM MIL, QUINHENTAS E DUAS (1.502) faculdades. Mesmo com avaliações de alunos e instituições pelo Ministério da Educação, não é possível assegurar patamares mínimos de qualidade. Vide os índices de aprovação – ou seriam reprovação? – nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual recomenda apenas TREZE POR CENTO (13%) do total.5

Passamos, então, à próxima fase: não são apenas dout@s que precisam explicar o Direito à população, pois para isso precisariam, primeiro, entendê-lo minimamente para além da letra da lei. Uma dica: se alguém usa “lei” e “Direito” como sinônimos, das duas, uma: não concluiu o curso de Direito ou não aprofundou os estudos.

Não entendam isso como uma crítica ao Positivismo Jurídico, na medida em que não há Direito Estatal sem ele e, por consequência, Estado Democrático de Direito. A ponderação se orienta exatamente em sentido contrário.

Mais do que importante, faz-se essencial que Operadoras e Operadores jurídicos tenham presente a ideia de Direito enquanto sistema normativo estruturado a partir da Constituição, com regras e Princípios. Esqueçam, por ora, a pirâmide de Kelsen, substituindo-a por algo mais parecido com feixes de neurônios e suas sinapses em interação ou com os sistemas dinâmicos e abertos, tal como a Internet.

Desse eixo elementar, tudo mais não passa de mera consequência, atraindo a máxima atenção do Estado, de particulares e até mesmo de entes despersonalizados, não admitindo exceções. Para além do jurídico em sentido estrito, é preciso que se atente à vida e à política não partidária, conectando às fontes materiais e ao tecido social pulsante.

Qualificar os saberes jurídicos exige dosar a forma da linguagem, elemento que em excesso, envenena, mas que na medida adequada, resolve.

A simplificação da linguagem jurídica já foi pauta de diversas associações de Magistrad@s, com praticamente a mesma insistência com que alguns redutos pregam seu uso técnico/preciso. “Menos blá-blá-blá e mais Foucault” poderia ser o título deste texto, diante do “cabo de guerra” sobre o uso do vernáculo, o que não ocorreu por receio de afugentar leitoras/es.6

Foucault não foi e jamais será um expoente do Direito. Sorte a dele, sorte do mundo.

Graças a isso, sua obra contribuiu e segue contribuindo com múltiplas áreas do conhecimento. Mas Foucault, gente jurídica, vai muito além do clássico “Vigiar e punir”.

Sua obra abrange a “microfisica do poder” e “as palavras e das coisas”,7 revelando como forças transitam para além de prédios, togas e brasões. Demonstra como as trocas acontecem, no dia a dia, de modo quase invisível, como o vento, por intermédio das relações.

Não são estruturas físicas que aprisionam, ou não apenas elas, mas fundamentalmente as relações de poder em torno de tudo e de tod@s. O poder não sai de um e chega até outro pelo chicote, mas atravessa um, atravessa outro, perpassando a própria História sem barreiras.

Foucault é uma leitura densa, complexa e, por vezes, um tanto longa. Chega a doer em alguns trechos, pois para curar, muitas vezes é preciso que seja assim.

Mas como alternativa, confirmando a riqueza do Direito, ao não possuir respostas únicas para cada situação, pode-se desfazer falácias e entendê-lo a partir do olhar não jurídico, dando oportunidade à prosa e à poesia.

Eduardo Galeano pode ajudar, poetas em geral, na mesma medida e, por que não, Franz Kafka? Recomendo, sem dúvida alguma, um pensador específico: José Falero, autor da nova geração e cuja apresentação já foi feita no instagram no perfil @direitodotrabalhocritico, na postagem de 06 de janeiro de 2022.

Ao invés de conceituar os Princípios da Primazia da Realidade e da Razoabilidade, como aqueles pelos quais os fatos prevalecem sobre as formas, e tudo o que fugir a um padrão médio de qualidade e quantidade em determinado tempo e espaço deve ser modulado segundo um juízo de proporcionalidade, Princípio maior, que tal ir além e agregar a leitura de “Mas em que mundo tu vive?” Um confronto entre a ideia e a realidade.

Embora este seja o título do mais recente livro de Falero,8 a referência feita se dirige ao texto de abertura da obra, uma coletânea de crônicas, especificamente a um subcapítulo de “assalariados”, com suas sete potentes páginas. Sem dar spoilers, o “Mas em que mundo tu vive?” trata da experiência de dois trabalhadores da construção civil e suas reflexões diante das agruras de sua condição. O ponto alto da narrativa é a pergunta que lhe dá nome e também ao livro, repetida várias vezes, mas em um bruto tom único.

Assinar documentos sem ler ou lendo, mas precisando do emprego para sobreviver é razoável?

Mas em que mundo tu vive?

Encontram-se sob o manto da primazia da realidade anotações em cartões-ponto variáveis, com minutagem não superior a 5 por registro?

Curto e grosso: mas em que mundo tu vive?

Trabalhar sem folga, intervalo ou respiro por 12h ao longo de um ano inteiro é viável a motoristas, camareiras, vendedores e auxiliares de serviços-gerais?

Poxa vida: mas em que mundo tu vive?

Lido de outro modo e direto da fonte, com pitadas de spoiler:

Se a máquina vai derrubar o bagulho, passei o dia martelando essa porra pra quê? Sou palhaço, por acaso?’”9

-Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Tu pensa que água é de graça?”10

A cereja do bolo foram os sacos de cimento. Trezentos sacos de cimento, pra ser preciso”11

Basta! Não cabe mais nos contentarmos em resolver processos. É preciso educar e sermos educad@s, pacificar conflitos, humanizando relações. Quem busca justiça, clama, antes de qualquer coisa, por atenção e cuidado.

Mas atenção: de nada adianta sair do mundo paralelo do Direito, como chamava Pontes de Miranda, e mergulhar em um metaverso qualquer. O upgrade deve ser do olhar, como uma ignição a outros sentidos, forjando novos sentidos, em ressignificações, voltadas para a alteridade.

E como ensina a letra de “Herdeiro da Pampa pobre”, canção de Gaúcho da Fronteira e Vaine Darde, regravada por Engenheiros do Havaii no início da década de 90, “porque eu não quero deixar pro meu filho a pampa pobre que herdei do meu pai!

Mas, antes de encerrar, me diz, numa boa, em que mundo tu vive?

1 PEDRA, Marcelo Nogueira. A insensatez da marcha midiática, disponível em <https://www.anamatra.org.br/artigos/1014-a-insensatez-da-marcha-midi-tica-045699089249315755>. Acesso em: 20 jan. 2022.

2 KROST, Oscar. Diante da lei” de Kafka e as audiências por videoconferência na Justiça do Trabalho, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/07/31/diante-da-lei-de-kafka-e-as-audiencias-por-videoconferencia-na-justica-do-trabalho/>. Postado em: 31.07.2020. Acesso em: 20 jan. 2022.

3 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. Capítulo 2, “ideologias jurídicas”, p. 13.São Paulo: Brasiliense, 1999 (Coleção primeiros passos; 62).

4 MACEDO, Nat. Brasil é o nono país com mais desigualdade social no mundo, Edição do Brasil, disponível em <http://edicaodobrasil.com.br/2021/07/09/brasil-e-o-nono-pais-com-mais-desigualdade-social-no-mundo/#:~:text=O%20Brasil%20%C3%A9%20o%20nono,do%20Banco%20Mundial%20(Bird)>. Publicado em: 09 jul. 2021. Acesso em: 20 jan. 2022

5 FREITAS, Hyndara. Basil tem mais de 1.500 cursos de Direito, mas só 232 têm desempenho satisfatório. JOTA Carreira, disponível em <https://www.jota.info/carreira/brasil-tem-mais-de-1-500-cursos-de-direito-mas-so-232-tem-desempenho-satisfatorio-14042020&gt;. Públicado em: 14 abr. 2020. Acesso em: 20 jan. 2022.

6 Ver KROST, Oscar. Direito do Trabalho descomplicado para adultos, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/09/16/direito-do-trabalho-descomplicado-para-adultos/&gt>. Postado em: 16 set. 2021. Acesso em: 20 jan. 2022.

7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica Roberto Machado. 9ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019 e FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. 10ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2016 (coleção tópicos).

8 São Paulo: Editora Todavia, 2021.

9 FALERO, José. Mas em que mundo tu vive? São Paulo: Todavia, 2021, p. 18.

10FALERO, p. 19.

11FALERO, p. 20.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

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