TETO DE VIDRO, PISO PEGAJOSO E SÍNDROME DA ABELHA RAINHA: METÁFORAS DA “ECONOMIA FEMINISTA” NUMA PERSPECTIVA FEMINISTA AMEFRICANA*

Helena Pontes dos Santos – Mestranda e Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Estudos Afrolatino-americanos e caribenhos pelo Clacso. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP), da Equipe de Estudos em Direito do Trabalho e História (USP) e do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras (UNIFESP). Militante do Movimento Negro Unificado.

São Paulo, 07 de julho de 2023.

Boa tarde a todes, todas e todos.

Gostaria de consignar meus agradecimentos1 pela possibilidade de estar em espaço composto por pessoas comprometidas a pensar e debater sobre as condições de trabalho a que está submetida a advocacia assalariada, em especial as mulheres que são parte desse quinhão da categoria, expostas além da discriminação de gênero.

Agradeço a todas as entidades organizadoras pelo convite nas pessoas da Dra. Ana Lucia Marchiori e do Dr. Erazê Sutti, colegas de especialização na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e da luta por uma sociedade verdadeiramente justa.

Saúdo as demais mulheres da mesa – Isabela de Castro e Castro, Patrícia Tuma Martins Bertolin, Eidy Lian Cabeza – e gostaria de registrar que é uma alegria dividir esse espaço de fala com vocês a quem admiro pelas produções intelectuais e militância.

Gostaria de agradecer não só as pessoas que pensaram e desenvolveram ciência da qual parto em minhas pesquisas, mas também a todas as colegas e aos colegas que expuseram pela manhã suas perspectivas. Desejo com elas encruzilhar e fazer emergir novas ideias e percepções sobre experiências ou vivências.

E, como somos todos herdeiros dos que vieram antes de nós e eu sou uma feminista amefricana militante do Movimento Negro Unificado, sendo hoje dia 07 de julho, não posso deixar de falar de mulheres e homens que em 1978, em plena ditadura militar, ousaram tomaram as escadas no Teatro Municipal de São Paulo para denunciar o racismo no Brasil e a falácia da democracia racial.

O estopim da revolta foram as denúncias de segregação de atletas negros, jogadores de vôlei do Clube de regatas Tietê, impedidos de entrar na piscina do clube e o assassinato, mediante tortura por parte do braço armado do Estado, de Robson Silveira da Luz, em Guaianazes, zona Sul da cidade de São Paulo. Um crime que aconteceu há 45 anos, mas que vitimou uma mulher negra. Sueli Alves da Luz, casada com Robson, a si imposto o silêncio por quarenta anos, em face das ameaças de morte que ao longo desse período sofreu.

Por Sueli e tantas mulheres negras silenciadas ao longo da nossa história eu estou aqui para tentar contribuir com o debate das mulheres na advocacia assalariada trazendo outra perspectiva, que pode não ser confortável a todes, todas e todos, mas que precisa ser posta se queremos superar de fato as discriminações que estão presentes, vivas e geram muitos danos nos dias atuais, ainda.

O exercício de escuta a quem sempre foi garantida a fala muitas vezes é exercício difícil, penoso e doloroso, que aponta que por mais sensíveis que se seja é impossível estar no lugar de quem sofre uma opressão que a gente não enfrenta. Sentir, de fato, é impossível. No entanto, negrito e destaco que é possível e necessário se colocar solidário, o que é uma prática e não um sentimento ou discurso. Estou certa de que isso é precisamente o que nos une nesse debate hoje: vontade de práticas de superação de condições múltiplas de explorações de trabalhos.

Eu confesso que ainda estou surpresa com o convite para participar da mesa cujo tema é “Teto de vidro. Piso Pegajoso. Abelha rainha.”, já que meus estudos versam sobre a categoria de asseio e conservação, uma categoria composta majoritariamente por mulheres negras e terceirizadas e nos quais meus referenciais teóricos são feministas negras como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, dentre outras. A categoria com que dialogo é composto majoritariamente por mulheres negras que, apesar de precarizadas, pasmem, ainda estão em lugar de menos assédio e desrespeito do que as irmãs que estão no trabalho doméstico remunerado.

Essas mulheres negras, periféricas em sua imensa maioria, estão lutando por direitos e garantias fundamentais, por cidadania mínima para si e para os seus, afinal, como é sabido, o braço armado do Estado – ao arrepio da garantia da inviolabilidade do domicílio e da proibição de pena de morte como regra – segue nas periferias invadindo casas e matando jovens negros.

Como se pode imaginar, nosso “piso pegajoso” não nos prende a profissões femininas e desvalorizadas financeiramente só, mas nos prende a funções que são essenciais ao funcionamento social mas são tidas como degradantes por pessoas brancas. Num país de capitalismo periférico como o nosso, com histórico de escravização de mulheres e homens negros e a forte presença de racismo por denegação o “piso pegajoso” nos anexa ao lugar de desproteção social desde o período do escravismo tardio.

Lélia Gonzalez, em 1982, no texto E a trabalhadora negra, cumé que fica?2 traz importante consideração sobre o lugar que a mulher negra ocupa no mercado de trabalho e o quanto a sua situação muda somente na forma como se nomeia seu trabalho, porém não faticamente,

Nossa situação atual não é muito diferente daquela vivida por nossas antepassadas: afinal, a trabalhadora rural de hoje não difere muito da escrava de eito” de ontem; a empregada doméstica não é muito diferente da “mucama” de ontem; o mesmo poderia dizer-se da vendedora ambulante, da “joaninha, da servente ou da trocadora de ônibus de hoje e a “escrava de ganho” de ontem.

Nesse país em que mulheres brancas recebem maiores salários e têm mais postos de chefia do que negras e negros, o “piso pegajoso” nos coloca em trabalhos tidos como terceirizáveis, atividades meios, sem destaque, dito geralmente que qualquer um pode fazer pois não requer muita habilidade ou preparo, ainda que saibamos que trabalhos supérfluos em uma empresa não são terceirizados, mas sim suprimidos e que se fossem trabalhos simples, certamente não seria renegados a nós fazermos.

Dentro da advocacia assalariada, em que lugar estão as mulheres? Estão como celetistas ou como sociedade unipessoal, que devem emitir nota fiscal por dia trabalhado e ficam numa espécie de vira de três em três meses em cada escritório? Quantas dessas mulheres são negras? Temos dados, pesquisas, estudos realizados sobre o tema com incentivo da OAB?

Não temos espaços para competir por postos nas hierarquias, é notório, pois as imagens de controle, como muito bem aciona a intelectual Winnie Bueno3, não permite. A qualquer divergência de opinião em que nos colocamos ou competimos para afirmarmos nosso pensamento somos tidas como rudes e arrogantes (o que um homem branco que se porte igual não seria chamado) e também somos acusadas de termos modos não civilizados, de sermos grosseiras e malucas. A mulher negra é barraqueira até para as manas brancas empoderadas. Ante a realidade apresentada será que o “teto de vidro” não é mais embaixo? As mulheres negras estão chegando a esbarrar nessa barreira? Qual o seu lugar social de origem, sua raça, seu território das mulheres que esbarram? O Censo da Advocacia de 2020 não traz dados com perspectiva interseccional ou encruzilhada.

Essas são questões que me vêm à mente quando penso nessa questão, apesar de não desconsiderar que das poucas mulheres que sobrepujam essa barreira é exigido muito mais conhecimento do que um homem. Certamente, no entanto, elas não cresceram ouvindo de pais “filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor” para não deixar de citar Racionais MCs e, por consequência, reverenciar as tantas donas Anas da periferia de São Paulo.

Quanto a Síndrome de Abelha Rainha – essa teoria cuja formulação penso ser bastante contaminada por uma ideia de performance de feminilidade eurocentrada – o que mulheres negras enfrentam no mercado de trabalho, se chegam a posto melhor remunerado no Brasil, é a Síndrome do Token, na qual se é a única mulher negra nas mesas, nos espaços, nos restaurantes e nos quadros das empresas.

Essas mulheres, tão excepcionais quanto as que ultrapassam o teto de vidro (apesar de nem sempre chegarem a sócias), são acionadas nos meses de julho e novembro para credenciar espaços que são extremamente violento com as nossas ideias, epistemologias, filosofias, cultura, cosmovisão, enfim, com tudo o que se refere a negritude. Espaços, inclusive, que impõem sua política de embranquecimento com seu conjunto de regras de como se vestir, se portar e trazer o cabelo.

Trazer outras mulheres negras para os espaços é uma questão de sobrevivência, porém são poucas com tal poder de mando. Não podemos nos dar ao luxo de ficarmos sós em espaços embranquecidos uma vez que o racismo nos destrói completamente.

Nossos irmãos negros, que como sabemos recebem abaixo e estão em menos cargos de chefia e gestão do que mulheres brancas, ainda que estejam em situação melhor do que as mulheres negras, também passam por essa síndrome do token.

Então essas metáforas tão caras à economia feminista são realmente figuras que albergam realidades de todas as mulheres para serem tão centrais assim? PcDs são atingidas por elas? E mulheres negras? E as mulheres trans? Esses problemas trazidos por essas teorias são algo que atinge a maioria das mulheres advogadas ou uma pequena parte, justamente a parte que tem, por suas condições sociais, melhores condições de participar da construção e estar presente nos espaços de decisão da advocacia organizada?

A falta de diversidade nos órgãos representativos da advocacia, no Poder Judiciário, Legislativo e Executivo explica a condição da pessoa trabalhadora negra exposta à superexploração com o aval de tais instituições? Certamente não. A representatividade (tão reivindicada por movimentos liberais pós-modernos) tem seus limites, mas é hipótese que sua presença dentre os que compõem a classe reinante resultasse na melhora da condição de vida de certas pessoas trabalhadoras, visto que é mais fácil assimilarmos melhoras de nossos semelhantes como concebível. Daí entender-se como projeto (e não desvio) a ausência de mulheres, negras e negros de tais poderes.

A ausência de diversidade de mulheres nesses locus, portanto, faz com que somente se considere nas análises a realidade enfrentada pela mulher, branca, das classes mais favorecidas? Quantas mulheres negras, dentro e fora dos escritórios seguem sustentando o êxito e desbravamentos de mulheres brancas em sua disputa por espaço com homens brancos? É como aponta Lélia Gonzalez como questão essencial “ a libertação da mulher branca tem sido feita às custas da exploração da mulher negra”4.

Não são só as violências que atingem as vossas semelhantes o central nos debates, tampouco são as ferramentas que vão garantir somente às brancas a possibilidade de competir com seus parceiros de opressão racial o que todas nós mulheres devemos nos meter a forjar.

Tem muitos dragões e o que as mulheres negras enfrentam não são de komodo. No mais, a superação das discriminações e opressões ou se dão coletivamente ou não se dão, como se pode observar ao longo da história e no debate sobre as questões de gênero mesmo. É preciso romper com a lógica neoliberal individualista.

É tarefa que se impõe em nossos tempos que a pessoa humana deve ser tida como bem supremo do direito e das lutas sociais e coletivas, independente de nossa identificação narcísica com ela. Quando a mesa de gênero traz tantas figuras que só dialogam com a realidade de mulheres brancas, cis, pessoa sem deficiência e que performam heteronormatividade, estamos fazendo isso?

Em “Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher” Lélia Gonzalez nos alerta sobre o problema presente no feminismo de desconsiderar significativa parte de vivências de mulheres e como, quando tais experiências de vida e reivindicações são colocadas, o discurso é rechaçado sem reflexão por ser agressivo, tomado como cobrança, e demasiado emocional. Pois nas palavras de Lélia, “para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam uma renúncia à razão, mas, ao contrário, são um modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão”5.

Nossa fala não é de outro lugar que não o da realidade da maioria das mulheres e não é emocional, mas extremamente racional pois não parte do abstrato, mas da vida vivida. Hoje assumimos nossa voz e estamos aqui para apontar a necessidade de que se amplie, e muito, a perspectiva do que é central para as mulheres como um todo e os debates sobre gênero desse espaço, pois nós também somos mulheres.

É preciso que a gente se abra para aprender, penso, com a perspectiva com a qual foi construída o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que veio como ferramenta que auxilia a calibrar os olhares a realidades diversas, experienciadas por pessoas cujas vidas são atravessadas por distintas discriminações encruzilhadas, lhes garantindo uma devolutiva jurisdicional que não coaduna com a reprodução das desigualdades e discriminações presentes em nossa sociedade. A advocacia assalariada como um todo, e não só no debate relacionado a gênero, deve adotar o mesmo olhar que rompe a uma só vez com o pacto narcísico da branquitude, com as leituras de mundo LGBTQIAPN+fóbicas, capacitistas e abraçar os debates e questões que desde há muito tempo o feminismo negros apresenta como contribuição a superação da visão colonial do feminismo branco de classe média norteado por teorias dos países de capitalismo central.

É preciso aprender com a práxis negra de quilombismo (na qual, homens, mulheres, negros, brancos e indígenas se unem para contestar o modo de produção em vigor e vivenciar uma outra experiência de organização social e de produção do necessário à vida), das mulheres negras pelo bem viver, com as epistemologias de terreiros, experiências capazes de fazer de espaços mistos potências de crescimento coletivo a partir da diversidade e da unidade pela superação das opressões.

Pela oportunidade de falar, agradecida!

* Exposição realizada no 1o Congresso da Advocacia Assalariada realizado na Ordem dos Advogados de São Paulo no dia 07 de junho de 2023 no Painel 5 “Teto de Vidro. Piso Pegajoso. Abelha Rainha. Gênero e Raça.” O evento foi promovido pela Comissão da Advocacia Assalariada da Secional, pelo Sindicato dos Advogados de São Paulo (SASP) e pela Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT), com o apoio da Cultural OAB, da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv) e do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (MATI).

1 Toda minha produção e militância é ancorada na ideia de que conhecimento é sempre construção coletiva de saberes, com base em valores diametralmente opostos ao referencial acadêmico colonial, competitivo, individualista, eurocentrado e subserviente aos interesses imperialistas. Assim, contou com a contribuição essencial da colega acadêmica e amiga de vida Viviane Vidigal, com quem os caminhos encruzilharam a partir do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital, coordenado pelo Professor Dr. Jorge Luiz Souto Maior.

2 GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. São Paulo: Editora Filhos da África. 2018, p. 127 e ss.

3 Em vários de seus textos pulicados Winnie Bueno trata sobre imagens de controle, dos quais destaco dois, os quais recomendo fortemente a leitura a toda pessoa que se interessa pelo tema, ou que aciono quando vejo as imagens de controle sendo mobilizada contra mulheres negras: A Lacradora: Como imagens de controle interferem na presença de mulheres negras na esfera pública. <https://medium.com/neworder/a-lacradora-como-imagens-de-controle-interferem-na-presen%C3%A7a-de-mulheres-negras-na-esfera-p%C3%BAblica-cb26f5edbb59 > e A quem serve omito da agressividade da mulher negra.’ <https://medium.com/@winniebueno/a-quem-serve-o-mito-da-agressividade-da-mulher-negra-da59ef1fcb89&gt;.

4 GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: Por um feminismo afro latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios e Marcia Lima – 1 edição. Rio de Janeiro: Zahar. 2020, p. 43.’

5 GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: Por um feminismo afro latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios e Marcia Lima – 1 edição. Rio de Janeiro: Zahar. 2020, p. 44.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

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