Joana Rêgo Silva Rodrigues – Advogada feminista. Mestra em Políticas Sociais e Cidadania. Conselheira e Vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada, OAB/BA, Professora da Ucsal e da Escola da Abrat.
O título deste escrito surge a partir do reconhecimento do poder da linguagem no processo de construção social e de subjetivação da mulher mãe em nossa sociedade. Junto a outras expressões, como, por exemplo, “gravidez não é doença”, “mãe é mãe” e “nasce o filho, nasce uma mãe”, vai se construindo um arquétipo materno que, na realidade, serve apenas para oprimir mulheres e fortalecer o patriarcado.
Em tempos em que a luta antifeminista ganha notoriedade nos debates sobre a posição da mulher na sociedade, a frase do título não poderia ser mais apropriada para fazer oposição à festejada premissa feminista de que “lugar de mulher é onde ela quiser.”
Ora, quando o patriarcado afirma cotidianamente que “quem pariu é quem deve embalar” — ou dito em outras palavras, “quem pariu é quem vai cuidar” — ele busca reforçar a maternagem como espaço compulsório e exclusivo da mãe. Logo, ao alçar a mulher à categoria de mãe, se esvai o pretenso desejo por autonomia e liberdade, restando-lhe, por sua vez, o “natural” lugar de, no dizer de Vera Iaconelli, “guardiãs do cuidado.”
A prova de que o capitalismo patriarcal tem sido bem-sucedido na manutenção dessas “guardiãs do cuidado” como operárias do trabalho (quase invisível) de cuidado e reprodutivo foi dada por meio da pesquisa publicada pelo jornal Folha de S.Paulo no início de maio de 2024, apontando que, para 69% dos brasileiros, as mulheres devem ser as principais cuidadoras de filhos recém-nascidos. Dados que corroboram outras estatísticas, como o fato de que as mulheres dedicam quase o dobro de tempo para a realização de tarefas não remuneradas (mulheres 21h x 11,6h) durante a semana. Também se destaca a taxa de ocupação entre mulheres que vivem em domicílios com crianças menores de 3 anos, que é de 54,6% (dado inclusive majorado quando considerado o marcador racial), enquanto, no caso dos homens, o índice sobe para 89,2%.
A interpretação desse cenário de desigualdade passa, necessariamente, pela análise de dois aspectos centrais: em primeiro lugar, a sobrecarga materna, ainda que se reconheça que as práticas de cuidado envolvem um conjunto amplo e diverso de atividades; e, em segundo lugar, o impacto da presença dos filhos — especialmente em idade pré-escolar — sobre as condições de inserção e permanência das mulheres no mercado de trabalho. A maternidade, assim, segue sendo um dos principais vetores de desigualdade de gênero na esfera laboral.
Assim, o tradicional cenário de exclusão, desigualdade de gênero e discriminação é intensificado quando adensadas as questões atinentes à maternidade. Dentre todas as desigualdades no ambiente de trabalho que, natural ou culturalmente, delimitam a relação entre homens e mulheres, a gestação e a maternidade se demonstram as mais resistentes de ultrapassar.
Neste ponto, é fundamental evidenciar o papel do Estado e das políticas neoliberais na reprodução dessas desigualdades de gênero, especialmente ao manter a figura da mulher atrelada ao cuidado como um dever quase natural. A lógica neoliberal, ao valorizar a autonomia individual e a responsabilização privada, esvazia a noção de responsabilidade coletiva e desonera o Estado do dever de garantir políticas públicas de suporte ao cuidado — como creches públicas, licença parental igualitária, jornadas reduzidas e serviços sociais de base.
Como destaca Nancy Fraser, o neoliberalismo se apropriou de discursos feministas de emancipação para justificar a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, sem, no entanto, romper com a lógica patriarcal da divisão sexual do trabalho. Na prática, isso significa que as mulheres passaram a acumular a exigência de serem produtivas e competitivas no mercado, sem que houvesse redistribuição efetiva das tarefas de cuidado, que seguem sendo desvalorizadas, invisibilizadas e, muitas vezes, não remunerada, ou então delegadas a outras mulheres, majoritariamente negras, periféricas e em condições de maior vulnerabilidade econômica, que realizam esse trabalho essencial sem qualquer reconhecimento, valorização ou garantia de direitos. Essa dinâmica revela como a divisão sexual e racial do trabalho é estruturante do sistema de exploração que sustenta tanto o patriarcado quanto o capitalismo neoliberal.
Essa realidade, contudo, começa a ser tensionada por iniciativas institucionais que buscam reposicionar o cuidado no centro do debate público. Ao reconhecer o cuidado não remunerado como trabalho, a Política Nacional de Cuidados, instituída pela Lei n. 15.069/2024, apresenta uma nova lente interpretativa para que se compreenda a sobrecarga de trabalho de cuidados que recai desproporcionalmente sobre as mulheres. Na perspectiva adotada pela política, o cuidado é entendido como um direito humano universal, o que significa reconhecer que todas as pessoas têm o direito de cuidar, de ser cuidadas e de exercer o autocuidado. Tal concepção desloca o cuidado do âmbito privado e o reconhece como bem público essencial para o funcionamento da sociedade e da economia (Araújo, 2024), abrindo espaço para sua valorização e para a construção de uma infraestrutura pública de suporte.
Nesse contexto, é necessário refutar, com veemência, o discurso machista e maternalista, que, apesar dos avanços, ainda serve como fundamento normativo de políticas públicas no Brasil e permanece operando como uma engrenagem silenciosa das desigualdades. É o que se observa, por exemplo, nas discrepâncias entre as licenças maternidade e paternidade, que continuam a reforçar a centralidade da mulher nos cuidados e a ausência do homem nesse processo, naturalizando a sobrecarga feminina e perpetuando a divisão sexual do trabalho.
No ambiente laboral, esses arranjos normativos se desdobram em discriminações estruturais, que dificultam a inserção, a permanência e a ascensão das mulheres, sobretudo das mães, no mercado de trabalho formal. Em suma, o cuidado, embora essencial à reprodução da vida, continua sendo tratado como responsabilidade individual, feminina, e não como um direito coletivo, compartilhado e sustentado por políticas públicas eficazes.
Enquanto a maternidade rearranja nossas fronteiras e, em muitos casos, nos atravessa como um cataclisma violento e silencioso, nos fazendo outras, o mercado de trabalho nos vira as costas como quem não aceitasse essa outra que agora somos. Reafirma-se, portanto, o lugar que nos cabe: o da maternagem guerreira, quase abnegada e, obviamente, sempre afetuosa.
Que fiquemos, então, atentas a esses arranjos estereotipados (maternalistas) que, ao mesmo tempo em que desprestigiam a ética do cuidado, se valem da romantização da maternidade para manter o “pacto de gênero” e colocar as mulheres, mães, no espaço da invisibilidade, subalternização e precariedade de trabalho e vida.
Que a sociedade entenda que “embalar (ninar) Mateus” deve ser responsabilidade coletiva e alegria, em vez de solidão, sobrecarga e culpa.
