Por Lediane Aparecida Mazzini – Advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho, com atuação para empregados e sindicatos há mais de 15 anos. Secretária-Adjunta da Comissão de Direito Sindical OAB/SC. Presidente da Comissão de Direito do Trabalho OAB/SC Rio do Sul/SC. Conselheira da OAB Rio do Sul/SC.
Tive a honra de participar do 9º Congresso Internacional de Direito Sindical, realizado em Fortaleza, compondo mesa ao lado da Subprocuradora-Geral do Trabalho, Dra. Maria Aparecida Gugel e da Viviane Pessoa de Azevedo, Coordenadora da Excola. Nosso tema foi: “Prevenção contra o assédio e restauração do ambiente de trabalho: construindo um espaço de respeito para todos”.
A partir da minha vivência na advocacia e na assessoria sindical, compartilhei a realidade de uma crise profunda nas relações laborais. O avanço da precarização das condições de trabalho, a intensificação de metas inalcançáveis, a instabilidade contratual e o medo constante da dispensa formam o pano de fundo para práticas abusivas que, muitas vezes, sequer são reconhecidas como assédio.
O assédio moral, sexual, institucional e organizacional, infelizmente, têm se naturalizado em muitos ambientes. É importante lembrar que o assédio, em todas as suas formas, é também um fator de risco psicossocial — e, como tal, pode provocar adoecimento mental no trabalho. Ele contribui diretamente para o surgimento de transtornos como depressão, ansiedade, síndrome de burnout, fobias sociais, entre outros.
Por isso, a alteração recente da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que passou a exigir o mapeamento e gerenciamento dos riscos psicossociais no Programa de Gerenciamento de Riscos, representa um avanço normativo essencial. Essa norma tem por objetivo enfrentar o que já pode ser chamado de epidemia de adoecimento mental no trabalho no Brasil.
Somente em 2024, mais de 472 mil trabalhadores foram afastados por transtornos mentais, segundo dados do INSS. E entre 2020 e 2024, a Justiça do Trabalho recebeu mais de 450 mil ações relacionadas a dano moral decorrente de assédio. Apenas entre 2023 e 2024, esse número aumentou 28%, demonstrando o agravamento da crise.
Infelizmente, a aplicação de multas para empresas que não cumprirem a nova exigência foi adiada para maio de 2026. Mas, para o Ministério Público do Trabalho e outros órgãos técnicos, a exigência já existia implicitamente, e a nova redação da NR-1 apenas tornou explícita a obrigação de identificar e controlar os riscos psicossociais.
A norma reconhece que o sofrimento mental e o assédio não são questões individuais ou de foro íntimo, mas sim problemas organizacionais e estruturais, que precisam ser enfrentados preventivamente. E os sindicatos podem — e devem — atuar nesse processo.
Para isso, é essencial desconstruir o mito de que os riscos psicossociais são subjetivos ou que sua identificação expõe os trabalhadores. Pelo contrário, o gerenciamento desses riscos é medida de proteção coletiva e está no centro da promoção da saúde no trabalho.
E os fatores psicossociais são novos? Certamente, não. Eles sempre existiram. Mas foram potencializados nas últimas décadas por processos como as reestruturações produtivas, novas formas de gestão, pressão exacerbada por produtividade, políticas de metas inatingíveis e avanço de lógicas neoliberais — como a terceirização, a rotatividade e a desresponsabilização do empregador.
Desde 1984, a OIT já alertava para a importância de abordar os riscos psicossociais nas políticas de segurança e saúde no trabalho. Mas o cenário só se agravou. Em 2024, por exemplo, houve um aumento de 68% nos afastamentos previdenciários por doenças mentais em comparação a 2023. A maioria das pessoas afastadas são mulheres — mais de 60% dos casos.
Esse dado revela desigualdades estruturais que afetam a saúde mental das trabalhadoras: as mulheres são mais assediadas, dificuldade de ascensão profissional, disparidade salarial (ainda em torno de 20%), sobrecarga pela dupla ou tripla jornada, racismo estrutural (ainda mais acentuado para mulheres negras) e ausência de redes de apoio.
Como exemplos dos fatores de risco psicossocial elencados pelo Guia de Fatores de Risco Psicossocial do Ministério do Trabalho, destacam-se:
- Assédio de qualquer natureza;
- Má gestão de mudanças organizacionais;
- Baixa clareza de papel/função;
- Baixas recompensas e reconhecimento
- Baixa justiça organizacional
- Falta de suporte/apoio no trabalho;
- Baixa demanda no trabalho (subcarga);
- Excesso de demanda no trabalho (sobrecarga);
- Trabalho remoto e isolado.
A tabela é exemplificativa, sendo que podemos citar vários outros fatores de riscos psicossociais que podem ser encontrados no trabalho a exemplo do teletrabalho com dificuldade de desconexão; trabalho monótono, repetitivo ou sem sentido; jornadas imprevisíveis e longas, com mudança constante de turnos e pressão constante por metas e resultados.
Esses fatores podem produzir consequências não apenas individuais, mas sociais e econômicas: aposentadoria precoce, aumento de suicídios, custos crescentes com o sistema de saúde, desemprego prolongado e exclusão social.
É por isso que a alteração da NR-1 precisa ser vista como um marco regulatório importante, mas que deve vir acompanhado de pressão institucional, atuação sindical ativa e compromisso político com a saúde mental no trabalho.
E, diante de tudo isso, é urgente reabrir o debate sobre a extinção da jornada 6×1, que impede o descanso social, compromete o convívio familiar e agrava os fatores de risco psicossociais.
O papel dos sindicatos na prevenção do assédio e na promoção da saúde mental
A atuação sindical é essencial para transformar o ambiente de trabalho em um espaço de respeito, dignidade e proteção à saúde dos trabalhadores. A prevenção do assédio começa com proximidade com a base, por meio de visitas aos locais de trabalho, canais acessíveis de escuta (como WhatsApp, ouvidoria no site, plantões presenciais), campanhas educativas permanentes e negociação coletiva qualificada.
As negociações coletivas devem avançar na inclusão de cláusulas específicas voltadas à prevenção do assédio e ao enfrentamento dos riscos psicossociais, como por exemplo:
- Treinamentos obrigatórios e periódicos sobre assédio e saúde mental;
- Canais de denúncia independentes, com garantia de sigilo e proteção à vítima;
- Afastamento preventivo de agressores durante apuração;
- Constituição de comitês paritários com representantes da categoria;
- Negociação de pausas, intervalos e rotatividade para atividades com alto grau de estresse ou repetitividade.
Além disso, é fundamental atuar sobre a cultura organizacional das empresas. Isso passa, especialmente, por ações voltadas às lideranças. É preciso treinar, informar, sensibilizar. Afinal, “o líder precisa ser sensível, empático e consciente do impacto que tem na saúde mental de sua equipe”. A forma como se lidera pode prevenir ou agravar o sofrimento psíquico.
É necessário que o sindicato se firme também como um espaço de formação política, jurídica e emocional. Muitas vezes, o trabalhador só compreende que está sendo assediado ou adoecido quando tem acesso a informação de qualidade, compreensível e contextualizada com sua realidade. Por isso, é dever do sindicato oferecer esse conhecimento de forma acessível e constante.
No suporte direto às vítimas, os sindicatos podem — e devem — prestar:
- Acolhimento jurídico e psicológico, mediante estrutura interna ou parcerias com psicólogos, médicos, clínicas e farmácias;
- Apoio institucional como testemunha em procedimentos internos ou ações judiciais;
- Mobilização da base trabalhadora em solidariedade à vítima, quebrando o isolamento que o assédio costuma provocar.
Por fim, os sindicatos podem — com amparo no artigo 8º, III da CF e do Tema 823 do STF — ajuizar ações coletivas para reparar danos ou prevenir abusos, além de buscar mediações no Ministério Público do Trabalho quando identificarem práticas reiteradas de assédio, metas abusivas ou ambientes adoecedores.
A atuação sindical, portanto, é uma frente indispensável na luta contra o assédio organizacional e na construção de ambientes laborais mais humanos, inclusivos e respeitosos.
Exemplos práticos: quando o assédio é estrutural
Durante minha fala, citei casos concretos que defendemos e acompanhamos:
- Câmeras em Vestiários: a empresa foi condenada por instalar câmeras nos vestiários, captando imagens de trabalhadores em situação de nudez parcial ou total. A sentença reconheceu assédio organizacional e determinou indenização por dano moral.
- Restrição ao uso de banheiros: restrições reiteradas ao uso de banheiro, com destaque para situações envolvendo mulheres em período menstrual. A sentença, com base no Protocolo CNJ de Gênero, reconheceu assédio moral e fixou indenização de R$20 mil.
- Etarismo: trabalhador com mais de 25 anos de casa foi alvo de humilhações e rigor excessivo por não dominar ferramentas digitais. O assédio visava sua saída. A empresa foi condenada por dano moral com fundamento na discriminação por idade.
- Assédio eleitoral: foram apresentados dois casos emblemáticos, um deles coletivo, com publicações em murais e redes sociais da empresa pressionando trabalhadores a votar em determinado candidato, sob ameaça de demissões. A outra ação, individual, reconheceu a dispensa discriminatória de uma trabalhadora por convicção política. Ambos foram julgados na 12ª Região.
Além desses exemplos, há ainda numerosos casos de assédio religioso, nos quais trabalhadores são obrigados a participar de orações ou discriminados por suas crenças — prática inaceitável e cada vez mais denunciada no ambiente corporativo.
Também é crescente a ocorrência de xenofobia nas relações de trabalho, especialmente dirigida a trabalhadores migrantes, como venezuelanos e haitianos, que enfrentam exclusão, hostilidade e preconceito racial e linguístico. Vale lembrar que xenofobia é crime, e a omissão diante dela também compromete a responsabilidade institucional da empresa.
De forma geral, tem se tornado cada vez mais comum nas ações trabalhistas a identificação de práticas sistemáticas de assédio organizacional, como:
- Metas abusivas e prazos impossíveis;
- Perseguições dirigidas a trabalhadores mais velhos (etarismo);
- Discriminação contra pessoas com deficiência;
- Assédio e isolamento de gestantes;
- Condutas racistas contra pessoas negras;
- Pressão e retaliações contra representantes sindicais.
Esses grupos frequentemente se tornam alvos de práticas discriminatórias estruturais, voltadas à sua exclusão ou ao enfraquecimento de seus vínculos profissionais, sob uma lógica empresarial que invisibiliza direitos e reforça desigualdades.
Esses exemplos demonstram que o assédio organizacional não é uma falha individual isolada, mas uma expressão concreta da forma como o trabalho é estruturado, dirigido e fiscalizado. É por isso que seu enfrentamento exige resposta institucional, ação coletiva e atuação sindical articulada.
Há um longo caminho a percorrer. O mais grave é que muitos trabalhadores sequer reconhecem que estão sendo assediados ou expostos a riscos psicossociais elevados. O grito, a ameaça velada, o isolamento e a desumanização cotidiana acabam naturalizados sob o rótulo da “cultura da produtividade” ou da exigência de “alta performance”.
Por isso, a prevenção passa necessariamente por formação, escuta ativa, acolhimento e ação coletiva — pilares fundamentais de uma atuação sindical comprometida com a transformação do mundo do trabalho.
Reconstruir o ambiente
Prevenir é urgente, mas restaurar também é necessário. O ambiente de trabalho violado pelo assédio precisa ser reconstruído com escuta coletiva, revisão de práticas, proteção efetiva às vítimas e participação ativa do sindicato.
O enfrentamento do assédio exige coragem — das vítimas, dos colegas, das instituições. Mas sobretudo exige a ação organizada da coletividade.
Seguimos firmes na construção de um mundo do trabalho que respeite a dignidade, promova saúde e garanta respeito. Esse é o papel transformador do movimento sindical.
