Sonilde Lazzarin – Doutora em Direito (PUCRS), com Pós-Doutorado em Democracia e Direitos Humanos (Human Rights Centre – Ius Gentium Conimbrigae – Coimbra, Portugal); Advogada Sócia no escritório Lazzarin Advogados Associados; e Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
Helena Lazzarin – Doutora em Direito (UNISINOS), com Pós-Doutorado em Direito do Trabalho (PUCRS); Advogada Sócia no escritório Lazzarin Advogados Associados; e Professora e Coordenadora do Núcleo de Direito Público e Social na Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
O número de doenças emocionais ocupacionais, ou seja, causadas ou agravadas pelo trabalho, está crescendo exponencialmente – e o debate sobre este fenômeno é urgente e necessário.
Atualmente, o Brasil tem o maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos. Dados de 2024 demonstram que o país registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais. Trata-se do maior número desde 2014.
Estamos diante de uma crise de saúde mental, o que impacta diretamente a vida de trabalhadores e trabalhadoras: dados estatísticos do Ministério da Previdência Social, sobre afastamentos do trabalho, evidenciam este cenário. Os dados explicitam que, no último ano, 2024, os transtornos mentais chegaram a uma situação incapacitante jamais presenciada anteriormente. Em comparação com o ano anterior, no qual foram registrados 283 mil afastamentos, as 472.328 licenças médicas concedidas representam um aumento de 68%.
E muitos desses casos têm origens ou agravamentos em função do trabalho exercido. Cobranças por metas inatingíveis, assédio moral, hiperconectividade, imediatismo ao atender demandas e ameaças constantes de demissão estão entre os fatores mais comuns, capazes de contribuir efetivamente para o adoecimento dos trabalhadores (Han, 2015).
Contudo, o número de adoecimentos emocionais é muito maior, se considerarmos os casos que não são notificados. Isso porque são considerados nos dados estatísticos apenas os trabalhadores com vínculo formal de emprego ou que, autônomos, contribuem para o Regime Geral da Previdência Social. Excluem-se dos dados os servidores públicos (vinculados aos Regimes Próprios de Previdência Social), e, também, os trabalhadores informais que, ao adoecerem, não fazem jus a qualquer benefício, pois não são vinculados a nenhum sistema previdenciário.
Com relação aos casos notificados, as enfermidades psíquicas que mais geraram concessão de benefícios por incapacidade temporária são ansiedade (141 mil), depressão (113 mil), transtorno bipolar, transtornos devidos ao uso de drogas, estresse grave e transtorno de adaptação.
Observa-se que a Síndrome de Burnout não está inserida neste rol. Em 2024, foram 4 mil afastamentos em função da enfermidade; mas estima-se que o número seja muito maior, porque, no caso da síndrome de burnout, há maior dificuldade em constatar o diagnóstico.
A Síndrome de Burnout, também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, corresponde a um distúrbio com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. O Ministério da Saúde (2024) salienta que a principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho.
Faz-se importante mencionar que, em 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a Síndrome de Burnout na CID 11, com o código QD85. Com isso, a síndrome passou a ser reconhecida como doença ocupacional.
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por sua vez, esclareceu que os segurados passaram, em média, três meses afastados, recebendo cerca de R$ 1.900,00 por mês. Considerando esses valores, o impacto pode ter chegado a quase R$ 3 bilhões em 2024. Isso significa que o impacto atinge, além do trabalhador adoecido e seus familiares, a sociedade como um todo, que arca com esse elevado custo.
O maior número de licenças está nos estados mais populosos, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No entanto, proporcionalmente, ao considerarmos o número de afastamentos em relação à população, os maiores índices foram registrados no Distrito Federal, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.
Não há uma explicação exata para o índice de cada estado, mas é preciso lembrar que, no caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, houve uma tragédia em 2024: a enchente que causou mortes e deixou milhares sem casa, afetando diversas esferas da vida dos trabalhadores.
Ainda, além de evidenciar diferenças entre estados, os dados do INSS permitem traçar um perfil dos trabalhadores atendidos: o maior percentual é de mulheres (64%), com idade média de 41 anos, com quadros de ansiedade e de depressão.
Mas por que as mulheres são a maioria? Isso se deve a fatores sociais, como sobrecarga de trabalho, menor remuneração, maior responsabilidade com o cuidado familiar e exposição a situações de violência.
Este cenário é evidenciado a partir da análise de outro conjunto de dados estatísticos: de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2024), as mulheres recebem salários inferiores, se comparadas aos homens, em 82% das áreas. Mesmo em atividades com maior presença feminina no Brasil, como Saúde, Educação, Artes, Cultura, Esporte e Recreação, registram-se salários médios menores para elas do que para eles.
Estima-se que o salário médio das mulheres é 17% menor que o dos homens. Essa situação é ainda mais agravada ao levar outros fatores em consideração – como ao comparar mulheres negras com homens brancos, por exemplo. Neste caso, mesmo em se tratando de iguais atividades, a diferença salarial passa para, em média, 56%.
Isso ocorre porque, conforme Crenshaw (2002), esses “eixos da subordinação” (gênero e cor da pele, por exemplo) se sobrepõem ou se entrecruzam, criando intersecções complexas. Uma mulher negra é atingida por opressões distintas, porém interconectadas, que a colocam em maior vulnerabilidade em comparação com as demais.
Ainda com relação à remuneração, a área em que as mulheres ganharam 309,4% menos do que os homens foi a de “fabricação de mídias virgens, magnéticas e ópticas”. No setor, homens ganharam R$ 7.509,33, enquanto mulheres ganharam, para a mesma função, R$ 1.834,09.
Além disso, o total de casos de feminicídio cresceu 10% nos últimos cinco anos. De dezembro de 2022 a dezembro de 2023, a violência sexual teve um aumento de 28%, e 59% dessas vítimas eram meninas de 0 a 14 anos.
A violência física, por sua vez, teve alta de 22% em todo o país. E há, ainda, crimes silenciosos, como a violência patrimonial – quando a vítima depende financeiramente do agressor –, que cresceu 35%; e a violência psicológica, que cresceu 20%. Por fim, mulheres também foram as mais afetadas pela pandemia, com maior índice de desemprego e trabalho não remunerado.
São exemplos que refletem o padrão social existente sobre as mulheres, que podem ser traduzidos em sobrecarga: ao mesmo tempo, elas têm salários menores, carga de trabalho não remunerado e, segundo o último censo do IBGE, as mulheres mantêm financeiramente 49,1% dos lares brasileiros. Isso significa 35 milhões de famílias no país. A maioria está na faixa etária a partir de 40 anos – a mesma idade média dos afastamentos por doença emocional. É possível observar, desse modo, como essas situações estão relacionadas entre si.
Conforme referido anteriormente, o racismo é também um complicador – especialmente para os transtornos mentais na população negra. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o número de suicídios é 45% maior entre pessoas pretas e pardas, em comparação às brancas.
Assim, considerando os dados estatísticos mencionados, demonstra-se a urgência de refletir e debater sobre os impactos do ambiente de trabalho na saúde emocional das pessoas; e também do impacto desse adoecimento em toda a sociedade. É preciso, pois, evidenciar essa crise e, sobretudo, enfrentá-la, combatendo suas origens.
Nesse sentido, recentemente o Ministério do Trabalho anunciou a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), com diretrizes sobre saúde emocional no ambiente do trabalho.
A NR-1 foi atualizada pela Portaria nº 1.419, publicada em 27 de agosto de 2024. Estabeleceu-se, inicialmente, que as alterações entrariam em vigor a partir de 25 de maio de 2025, contudo, posteriormente, a NR-1 teve sua entrada em vigor adiada para 25 de maio de 2026.
Com as atualizações, o Ministério do Trabalho passa a fiscalizar os riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (SST), o que pode, inclusive, acarretar multa para as empresas, caso sejam identificadas questões como metas excessivas, jornadas extensas, ausência de suporte, assédio moral, conflitos interpessoais, falta de autonomia no trabalho e condições precárias de trabalho.
Pela primeira vez, há a inclusão dos riscos psicossociais no Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO), tornando obrigatórias medidas preventivas para proteger a saúde mental dos trabalhadores. O objetivo da atualização é trazer mais clareza sobre o tema saúde mental dos empregados; e os critérios serão exigidos independentemente do tamanho da empresa.
Salienta-se que as Normas Regulamentadoras (NRs) têm como base legal a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e definem padrões mínimos que devem ser observados por empregadores e empregados. A NR-1, em particular, tem como foco principal estabelecer diretrizes gerais para a gestão da segurança e saúde no trabalho, servindo como base para as demais regulamentações.
Com a atualização que entrará em vigor em maio de 2026, essa norma ganhou novos contornos ao reformular o capítulo 1.5, intitulado “Gerenciamento de Riscos Ocupacionais”, e revisar o “Anexo I – Termos e Definições”. As alterações reafirmam o compromisso de promover um ambiente de trabalho mais seguro, inclusivo e adaptado às realidades contemporâneas do mundo laboral.
Entre as principais inovações promovidas pela Portaria nº 1.419, destacam-se: (a) a inclusão e consideração de novos riscos, que envolvem fatores como estresse, pressão por resultados e assédio moral, os quais podem impactar profundamente a saúde mental dos trabalhadores; (b) a gestão obrigatória desses riscos psicossociais, ou seja, as empresas devem mapear e mitigar fatores como estresse ocupacional, assédio moral, sobrecarga de trabalho e falta de apoio organizacional (nesse sentido, a norma também incentiva a implementação de políticas preventivas, como treinamento de lideranças e campanhas de conscientização); (c) a participação ativa dos trabalhadores no processo de gerenciamento de riscos; e (d) a adoção de estratégias eficazes para prevenir situações de assédio e violência no trabalho.
Destaca-se que, caso as empresas não atualizem o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) – no prazo estabelecido, serão notificadas e terão prazos para regularização. Em caso de descumprimento, estarão sujeitas a multas proporcionais ao número de funcionários, ao grau de infração e aos itens descumpridos. Por outro lado – e para incentivar consumidores –, empresas que cumprirem integralmente as diretrizes poderão ser certificadas com o selo de “Empresa Promotora de Saúde Mental”, concedido pelo Governo Federal, nos termos da Lei nº 14.831/24.
A inclusão dos riscos psicossociais como elemento central do PGR representa uma evolução no campo da segurança e saúde no trabalho. Ao reconhecer que a saúde mental é tão importante quanto a saúde física, a norma reflete uma preocupação com o bem-estar integral dos trabalhadores.
Ademais, conforme os preceitos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Lei nº 8.080/90, “saúde” não corresponde apenas à ausência de doenças físicas, mas a condições de bem-estar físico, mental e social.
Evidentemente, a atualização da NR-1 não será a solução para todos os problemas relacionados às atuais formas de trabalho e ao fenômeno do adoecimento emocional, contudo, inegavelmente, a atualização representa pequenos passos que, embora tímidos, contribuem para mudanças muito necessárias. Conforme Dejours (1992), a sensibilidade às cargas intelectuais e psicossensoriais do trabalho e a preocupação com a saúde mental precisam ser consideradas. A contestação, atualmente, não é mais pela sobrevivência ou pela saúde, como na época das sociedades industriais, e sim pelo modo de vida como um todo. Existe uma nova procura onde interessa, sobretudo, o modo de viver.
Com isso, em que pese não tenham, na sua integralidade, o alcance objetivado, a existência dessas normas é fundamental, na medida em que servem como base para decisões, bem como para a criação de novas leis e medidas que tenham como objetivo a proteção da saúde de todos os trabalhadores.
REFERÊNCIAS:
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DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho. Estudo de Psicopatologia do Trabalho. Tradução de Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. 5ª ed. ampliada. São Paulo: Corteza – Oboré, 1992.
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