“Água mole em pedra dura”: primeiras impressões sobre o relatório do GTI sobre Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático no Brasil

Oscar Krost – Juiz do Trabalho (TRT12)

 

Em meio a uma verdadeira epidemia silenciosa promovida pela disseminação da prática de apostas via bets (plataformas virtuais voltadas ao jogo em dinheiro), cujos efeitos há algum tempo ocupam os noticiários, os portais de notícias e este blog,[1] o Governo Federal adotou medidas efetivas de enfrentamento do problema. Independente do posicionamento pessoal de cada um e de cada uma, fato é que estamos diante de uma questão de saúde pública, cujos efeitos afetam todas as áreas da vida, da família à economia, passando pela educação, trabalho e meio ambiente.

Fruto de uma atuação conjunta dos Ministérios da Fazenda, Saúde e Esporte, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático, trouxe a público relatório dos trabalhos iniciados em dezembro de 2024, pelo qual apresenta um plano de ação para tutela da saúde mental de pessoas envolvidas em apostas. Nele, prevê “ações de prevenção, redução de danos e assistência a pessoas em situação de comportamento de jogo problemático persistente e recorrente, no contexto da exploração comercial das apostas de quota fixa”.[2]

Embora o marco regulatório do fenômeno remonte o ano de 2018, pela publicação da Lei nº 13.756, criadora da modalidade aposta por quota fixa, após diversas ações e iniciativas do Poder Público, inclusive no campo legislativo, somente em 06 de dezembro de 2024, pela Portaria Interministerial MF/MS/MESP/SECOM nº 37, foi instituído o GTI, cujas conclusões vêm a público no apagar das luzes de setembro de 2025.[3] O documento conta com 30 laudas e é dividido em 04 partes: contextualização, plano de ação, participação de convidados externos e considerações finais.

Pelos limites do comentário aqui apresentado e diante da relevância/qualidade do relatório como um todo, cuja leitura recomendo, restrinjo a análise ao segundo item, sobre o plano de ação. A proposta se divide em 07 tópicos e busca enfrentar a questão sobre diversos focos:

Elaboração de modelo de autoteste de saúde padronizado: pautado na Portaria SPA/MF nº 1.231/24, art. 4º, VII,[4] sugere que o agente de apostas (bets), independentemente de solicitação, promova medidas de limites, vinculados a alertas ou bloqueios, de determinadas pessoas, após testagem e avaliação dos respectivos dados. Propõe a criação de uma “classificação de perfil”, a ser avaliada e tratada em conformidade com uma “política de jogo responsável”.

Plataforma de Autoexclusão Centralizada: também com fundamento na Portaria SPA/MF nº 1.231/24, art. 4º, IV e VII, e art. 11, VII, apresenta a ideia de estender a autoexclusão do consumidor-apostador, atualmente disponível sob modalidade individual (um comando por casa de aposta), a um nível coletivo (comando único com alcance a todas as operadoras autorizadas). Bastaria uma única ação para assegurar a salvaguarda do sujeito a todo o sistema legalizado de apostas online.

Qualificação dos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para acolhimento e cuidado de pessoas com problemas relacionados às apostas: diante do alarmante aumento do número de casos que bate às portas das instituições que formam o Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive em busca de benefícios previdenciários, sugere a imediata capacitação dos profissionais que nele atuam. O objetivo é oferecer cuidado e realizar encaminhamentos adequados, especialmente em sede de saúde mental, de modo integrado e contínuo.

Estabelecimento de diretrizes mínimas de atendimento ao apostador, com ênfase à saúde: em virtude da gravidade e da sensibilidade com que as apostas alcançaram no país, recomenda a criação de canais de atendimento e ouvidoria da pessoa que aposta. A proposta é franquear um serviço em tempo real, aprimorando as vias existentes, em um modelo semelhante ao ofertado pelos conhecidos “Disque 100” e “Disque 180”.

Elaboração de material educativo sobre integridade esportiva e prevenção à manipulação de resultados em apostas esportivas, voltados a atletas: a preocupação da proposta é promover a educação voltada para ações que protejam a higidez mental dos atletas envolvidos nas modalidades abrangidas pelo sistema de apostas. Leva em conta as pressões social e midiática feita sobre esses profissionais, em ameaça ao desenvolvimento equilibrado da prática esportiva profissional, além de apresentar duas cartilhas complementares, elaboradas pelo Ministério do Esporte.[5]

Campanha de comunicação institucional: reconhece a urgência de informar e de conscientizar a população sobre os riscos e as consequências das apostas por meio de publicações e de campanhas publicitárias de amplo alcance. A sugestão busca por em evidência a regulação, a saúde e a educação financeira, entendidas como “pilares” da ação do Poder Público.

Criação de Comitê de Prevenção e Redução de Danos Relacionados a Aposta de Quota Fixa cuidados em saúde mental: propõe a criação, após a dissolução do GTI, de um agente perene para estudo, análise e atuação sobre o tema, reconhecendo sua relevância e complexidade. A partir de um ideal de  cooperação, visa à criação de um ambiente institucional consultivo que garanta a continuidade da articulação interministerial, o monitoramento e a avaliação da implementação de políticas públicas de prevenção/cuidado, a promoção de campanhas educativas e de conscientização e o estreitamento do diálogo entre governo, sociedade civil e especialistas.

Pautado em tecnologia de vanguarda, a exemplo da programação algorítmica, IA e ciências comportamentais, e impulsionado por ações de marketing agressivas, ostensivas e onipresentes, o fenômeno das apostas desafia e ameaça toda a sociedade. Nenhum campo do saber humano, sozinho, possui a menor chance de apresentar respostas, sequer contando com condições de compreender, de modo razoável, o que vem acontecendo e está por acontecer.

A ludopatia – acometimento de vício ou compulsão por apostas –, topo da escalada de envolvimento nocivo com jogos a dinheiro, embora diagnosticável e tratável, não tem cura. Não pode, portanto, ser menosprezada, minimizada e enfrentada como moda ou tendência.

E justamente por isto, mas não apenas, louvável, na trilha do relatório do GTI, a publicação da Instrução Normativa SPA/MP nº 22, em 30 de setembro de 2025,[6] proibindo o cadastramento em plataformas de apostas de pessoas beneficiárias de Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do bolsa-família. As bets terão 30 dias (art. 15), para implementar a medida de proteção a sujeitos em situação de maior vulnerabilidade social e, portanto, expostos a chance de desvio da finalidade de subsistência básica das quantias recebidas.

É imprescindível que cada ator social assuma, por menor que seja, sua responsabilidade no enfrentamento das mazelas causadas pela prática desenfreada de apostas online, como o vício, a compulsão, o adoecimento e até mesmo a morte. Constância, continuidade e firmeza são atributos essenciais na tentativa de reequilibrar o “jogo” em andamento.

No campo laboral, especificamente, “deve-se aventar, dadas a complexidade, profundidade e amplitude do problema, a possibilidade de ações conjuntas e interinstitucionais, de todos os sujeitos trabalhistas”,[7] considerando a natureza difusa da saúde e do meio ambiente, bens jurídicos tutelados e ameaçados. Empregadores, CIPAs, sindicatos, Ministério Público do Trabalho são agentes essenciais no processo de enfrentamento do fenômeno que também atinge a integridade das relações laborais.

Que do campo das ideias, brotem as ações e, daí, as mudanças.

A sorte está lançada.


[1] MATOS, Larissa; KROST, Oscar, Apostas online e Direito do Trabalho: autonomia da vontade, justa causa ou patologia incapacitante?, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2025/01/11/apostas-online-e-direito-do-trabalho-autonomia-da-vontade-justa-causa-ou-patologia-incapacitante/>,  publicado em 11 jan. 2025, e KROST, Oscar. Ludopatia não é piada, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2025/06/28/ludopatia-nao-e-piada/&gt;, publicado em 28 jun. 2025.

[2] BRASIL, Ministério da Fazenda. Grupo de Trabalho de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático publica relatório com plano de ação, disponível em <https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/grupo-de-trabalho-de-saude-mental-e-de-prevencao-e-reducao-de-danos-do-jogo-problematico-publica-relatorio-com-plano-de-acao&gt;. Acesso em: 05 out. 2025.

[3] Íntegra do relatório disponível em <https://www.gov.br/fazenda/pt-br/composicao/orgaos/secretaria-de-premios-e-apostas/publicacoes/relatorio-gt-interministerial-final.pdf>. Acesso em: 05 out. 2025.

[4][4] Portaria SPA/MF nº 1,231/24, disponível em < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-spa/mf-n-1.231-de-31-de-julho-de-2024-575670297>. Acesso em: 05 out. 2025.

[5] Cartilha de Saúde Mental e Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático e Cartilha de Integridade Esportiva e Prevenção à Manipulação de Resultados.

[6] Inteiro teor da Instrução Normativa disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-spa-/mf-n-22-de-30-de-setembro-de-2025-659602369>. Acesso em: 05 out. 2025.

[7] MATOS, Larissa; KROST, Oscar. Impactos de apostas online no Direito do Trabalho. Leme/SP, Mizuno, 2025, p. 135.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

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