APLICATIVO DE TRANSPORTE – RELAÇÃO DE EMPREGO: DECISÃO 374 DA CORTE DE CASSAÇÃO, SALA SOCIAL, FRANÇA

Rafael da Silva Marques – Juiz do Trabalho (TRT4) e Membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia)

Recentemente foi publicada (04 de março de 2020), pela Corte de Cassação da França2, uma decisão a respeito da existência ou não de relação de emprego entre um condutor e um aplicativo de transporte. No arrazoado, a dita Corte repete e dispõe como legalmente justificada a sentença da Corte de Apelação. É interessante perceber a forma como a Corte de Cassação trata da questão. Ela efetivamente analisa a matéria que lhe foi devolvida, fazendo, antes, um resumo dos argumentos do recurso, no caso da empresa de aplicativo, para, após, decidir, concluindo, no caso, como acertada a decisão da Corte de Apelação.

A demanda envolve um condutor autônomo (chauffeur VTC) que apresenta, em primeiro grau (jurisdition prud´homale), pedido de vínculo de emprego com uma plataforma de transporte (UBER), alegando entre outras coisas, trabalho subordinado e requerendo a condição de trabalhador assalariado e suas consequências além das indenizações por rompimento do pacto. A empresa defende-se aduzindo não se tratar, conforme pacto contratual, de relação de emprego, mas sim de trabalho autônomo, sem qualquer vínculo de sujeição, pois que não estava o trabalhador sujeito as ordens, podendo, a seu critério, conectar-se ao aplicativo e trabalhar. Aduz ainda, que não lhe era exigida a exclusividade e que poderia ele recusar corridas. Mostra que o condutor tinha registro junto à autoridade competente como trabalhador por conta própria e que poderia atender clientes também de forma privada fora dos aplicativos.

A decisão da Corte de Apelação, reconhecendo o vínculo de emprego, encaminha o processo para que o primeiro grau de jurisdição (conseil de prud´hommes) analise as demais questões, entre elas salários, indenizações pela despedida e etc. O dito conselho havia decidido tratar-se de relação comercial e não de emprego, decisão esta reformada pela Corte de Apelação, com recurso à Corte de Cassação.

No caso, para este breve texto, apenas serão mencionados os argumentos da Corte de Cassação. Para esta, confirmando a decisão da Corte de Apelação, o laço de subordinação dá-se pelo fato de se laborar sobre a autoridade de outrem, recebendo ordens quer diretas quer por diretivas, além do controle na execução do trabalho e do poder disciplinar.

No caso sob análise o condutor trabalhou de forma subordinada. Isso porque estava integrado a um serviço de transporte criado e administrado/organizado exclusivamente pela UBER, serviço este que não existe no mundo vivido, salvo pelo aplicativo. Acrescentam os julgadores que o trabalhador não possuía clientela e não fixava o preço pelo seu trabalho ou as condições de prestação laboral. Soma-se a isso o fato de o itinerário não ser de escolha do condutor, e que o percurso ou destino final não era de conhecimento dele, ao menos até a chegada do passageiro (cliente) no veículo. Para a Corte de Cassação este fato não permitia tivesse ele liberdade de escolha. Ainda, o fato de a empresa poder deixar o trabalhador desconectado após três recusas, anulações ou reclamações comprova que o trabalho era subordinado, sujeito às ordens e diretivas do aplicativo, que controlava a execução e que, ao contrário do que defende a empresa, evidencia o poder punitivo, típico da relação empregado/empregador. Por fim, informa que em nada altera o fato de o trabalhador poder estar desconectado pois que em se conectando, tem limites a recusas, caso típico de sujeição às demandas do aplicativo, permanecendo, assim, à disposição dele (no caso da UBER).

Para reforçar, na nota explicativa sobre a decisão3 consta que pela jurisprudência estabelecida, a relação de emprego independe da vontade das partes ou do nome dado ao pacto havido entre elas, mas das condições de fato em que foi exercida. Soma-se a isso que desde 13 de novembro de 1996 a Corte de Cassação (pourvoi n° 94-13.187, Bull. V n° 386) tem jurisprudência no sentido de que a relação de subordinação, como aliás já foi dito antes, está caracterizada pela execução de um trabalho sob a autoridade de um empregador que tem o poder de dar as ordens e as diretivas, de controlar a execução e punir os erros de seu subordinado e que o trabalho no seio de um serviço organizado pode constituir um indício do laço de subordinação, isso quando o empregador determina unilateralmente as condições de execução do trabalho. Com base nestes conceitos e como se pode ver, a já citada autoridade judiciária francesa não pode afastar-se de reconhecer como de emprego a relação entre o condutor e a UBER.

Na mesma nota explicativa consta, ainda, e vale a pena reproduzir que “em efeito, o critério do laço de subordinação se decompõe em três elementos:

– o poder de dar as instruções;

– o poder de controlar as instruções dadas (execução);

– o poder de sancionar o desrespeito das instruções dadas.

Quanto ao trabalho independente, ele se caracteriza pelos elementos seguintes: a possibilidade de constituir clientela própria, a liberdade de fixar as tarifas, a liberdade de fixar as condições de execução da prestação do serviço4.

Consta do mesmo documento, ainda, que a Corte de Apelação constatou que o trabalhador: a) integrou um serviço de prestação de transporte criado e inteiramente organizado pela UBER e que não existe, salvo graças ao aplicativo e que, por isso, a clientela não é própria do trabalhador, sem que pudesse fixar livremente as tarifas ou condições de trabalho; b) teve a si imposto um itinerário particular sem que tivesse a possibilidade de livre escolha e para o qual os descontos tarifários são aplicados se não segue este itinerário; c) não lhe é, as vezes, disponibilizado o destino final da corrida, o que impede a livre escolha, como seria o caso de um condutor independente; e d) pode ser desconectado temporariamente pela sociedade a partir da terceira recusa, podendo perder, além disso, o acesso à sua conta em caso de ultrapassar certo número de cancelamentos de corridas ou receber sinais de comportamento problemático.

Por fim a nota faz referência que na França, ao contrário de outros países europeus onde há um tipo de contrato intermediário entre o de emprego e o independente (Inglaterra “workers” e Itália “collaborazione coordinata e continuativa”, “collaborazione a progetto”), há apenas dois tipos de contrato o independente e o de emprego. Aqui recomendo a leitura do relatório da conselheira Marie-Anne Valéry5.

A decisão francesa faz valer conceitos de subordinação estrutural e sujeição às ordens organizacionais, nos exatos termos do artigo 6º, parágrafo único, da CLT6. Demonstra, igualmente, que, ao contrário do que se pode entender, os “ganchos”, são prova do poder hierárquico, organizacional e punitivo, típicos da relação de emprego. Chama atenção, ainda, o fato de a decisão tratar do tempo de trabalho e conexão. Não é o fato de o trabalhador escolher quando se conectar que afasta o vínculo. Ao contrário, o que o confirma é que uma vez conectado tem limitadas recusas, estando, portanto, à disposição da estrutura UBER.

Esta decisão é importante. Confirma que ainda seguem vivos os conceitos de subordinação direta e estrutural/reticular e que não basta simples contrato para a afastar o laço subordinativo. O que conta, como se pode bem ver na decisão, é que a prestação do trabalho ocorre sob as ordens de outrem, quer diretas quer por diretivas, caso em que a empresa mantém, também, o poder organizacional e punitivo de trabalhador que uma vez conectado, está a sua disposição.

1 https://www.courdecassation.fr/jurisprudence_2/chambre_sociale_576/374_4_44522.html acesso 04 de agosto de 2020, às 13h30min. A decisão consta em línngua francesa. Há, contudo, no próprio link da Corte de Cassação a opção de leitura nas línguas inglesa e espanhola.

2 Mais alta jurisdição dentro da ordem judiciária francesa. https://www.courdecassation.fr/ – acesso 05 de agosto de 2020, às 11h24min.

3 https://www.courdecassation.fr/jurisprudence_2/notes_explicatives_7002/relative_arret_44525.html – acesso 04 de agosto de 2020, às 22h05min. Assim como a sentença a nota explicativa está disponível nas línguas inglesa e espanhola.

4 Tradução livre.

5 https://www.courdecassation.fr/IMG/20200304_rapport_ano_19-13.316.pdf – acesso 05 de agosto de 2020, às 11h22min. O relatório é verdadeiramente informativo e extenso.

6 Art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único.  Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.               

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

6 comentários em “APLICATIVO DE TRANSPORTE – RELAÇÃO DE EMPREGO: DECISÃO 374 DA CORTE DE CASSAÇÃO, SALA SOCIAL, FRANÇA

  1. Muito positivo entendimento reforçando que não é o nome que se dá à “coisa” que muda seu caráter.
    Também serve para adaptar o direito aos “modernismos” pós liberais.

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  2. Caro Oscar, por incrível que pareça eu nunca tive um caso de Uber para julgar, mas sempre me perguntei o que decidiria. Essa decisão, extremamente embasada e embalada nos mais firmes e imperecíveis conceitos jurídicos,
    a princípio me parece quase invencível e o mais importante é que é de alcance universal, haja vista ser o mesmo sistema em todo o mundo. Creio que em alguns países, como os EUA, o entendimento é outro, mas dentro do que
    prevê a CLT e diante de toda a nossa construção doutrinária e jurisprudencial, aplica-se a nós como…uma perfeita máscara, eheheh. Parabéns e obrigado!

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  3. Decisão muito recente e importante para os estudiosos e tribunais brasileiros. Infelizmente, as Cortes Superiores mantêm concepções de subordinação fordista. Espero que haja, em breve, essa virada intelectual, muito bem desenhada pelo colega Rafael.

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