ASSALARIADOS*

José Falero – Escritor, autor de “Vila Sapo”, “Os supridores” e “Mas em que mundo tu vive?”

Pedra Bonita: condomínio da zona sul de Porto Alegre, onde o apartamento mais barato é um milhão. Ajudante de gesseiro: lá tava eu, ajudando o Michel e o Matheus. Ajudando a fazer um forro, ajudando a levar a vida. Correr atrás do ouro com o mano que tu te criou tem seu valor. Quem sabe, sabe. Nem se compara a entrar numa empresa grande e construir amizade do nada com um bando de colega desconhecido.

Gente de bem: família tradicional, brancos que nem papel, bem-alimentados, pele saudável, mãos macias, donos do mundo, donos da porra toda, donos do forro que a gente tava fazendo. O pai era rato graúdo (alto cargo da Polícia Civil). Até pediu o nosso RG e pesquisou os nossos antecedentes criminais antes de decidir se a gente era digno de entrar no apartamento dele para trabalhar. A esposa conseguia ser ainda mais indigesta. Reclamava da sujeira a cada cinco minutos, e a cada dez reclamava da demora pro serviço ficar pronto. O filho era um bicho-preguiça. Toda vez que eu via aquele guri, parecia que ele tinha recém-acordado. Andava de arrasto. Acho que nunca lavou um copo na vida. E acho que nunca vai lavar.

Uma história absurda: a mulher tava tentando conseguir alguns benefícios pro guri na faculdade. Teve algumas conversas acaloradas por telefone com algum funcionário de lá. Pelo que eu entendi, o problema passava por comprovação de baixa renda. Não sei o que ela tava tentando garantir pro filhote dela, mas, para conseguir o que ela queria, precisava comprovar, de algum jeito, que a família era pobre. E não deve ser fácil fazer isso morando num apartamento de um milhão.

Numa dessas, a mulher desligou o telefone e foi conversar com o marido, indignada.

– Que raiva dessa gente! Esses assalariados! Amanhã eu vou lá! Vou lá conversar bem de pertinho com eles, e aí eu quero ver! Ora, onde já se viu? Esses assalariados!

O marido concordava.

– É. É um absurdo mesmo.

Gostaria que houvesse algum recurso gráfico que me permitisse expressar aqui, neste texto, toda a repugnância que aquela mulher colocava na voz quando dizia “assalariados”.

– Esses assalariados!

Ela dizia “assalariados” com a mesma careta de nojo que a gente faz pra explicar que pisou na merda.

Até hoje a gente brinca com isso, eu e os guri. Quando um de nós faz algo reprovável, a gente diz: “Tinha que ser esse assalariado!”. Mas, apesar do nosso bom humor no trato com esse tipo de coisa, a gente tem, sim, consciência do que aquele episódio representou, e também da tragédia de o mundo ser como por enquanto é. A gente sabe. A quebrada sabe.

Vivemos tempos sombrios, e o povo parece que perdeu a capacidade de se enxergar no espelho no meio de tanta escuridão. Parece que perdemos a capacidade de perceber as coisas mais óbvias: nossos interesses nunca serão defendidos por aqueles que não experimentaram nossas dores. Mas eu boto fé. No momento certo, na hora que o bicho pegar, todos vão lembrar direitinho quem é que tem as mãos calejadas e quem é que peidou dormindo a vida inteira.

“Hei, pé de breque!/Vai pensando que tá bom…/Todo mundo vai ouvir, todo mundo vai saber.”

Em tempo: quando contei essa história a Dalva, perguntei:

– Será que a mulher não ficou com vergonha de dizer “assalariados” daquele jeito, com aquele nojo, sendo que tinha três assalariados ali, trabalhando no apartamento dela e ouvindo tudo? Ou será que ela falou de propósito, pra nos humilhar?

A resposta da Dalva, como sempre, não podia ser mais lúcida:

– Não. Vocês não importavam pra ela. Eram invisíveis. Foi como se vocês não estivessem ali.

* FALERO, José. Assalariados. In: Mas em que mundo tu vive? Crônicas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2021, p. 44-46.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

5 comentários em “ASSALARIADOS*

  1. Ninguém defende o que não conhece. Trabalhar todos os dias com os “assalariados” oprimidos nos faz entender pelo menos 1% dos que eles passam. 100% de compreensão, nem eles têm..

    Curtir

  2. Esses são, mesmo, invisíveis. Ninguém se importa com eles. Esses que vivem numa bolha, nunca passaram por nenhuma dificuldade, são assim. Em que mundo vivem? Triste.

    Curtir

Deixe um comentário