ESCLARECIMENTOS
Nem tudo está na internet, como dizem os jovens, atualmente. Há coisas que, para o bem e para o mal, simplesmente não existem para as redes. Pelo menos não existem na íntegra, notando-se apenas alguns rastros quase imperceptíveis.
O artigo ora postado é um exemplo dessa realidade. Publicado apenas no distante ano de 2003 na Revista Justiça do Trabalho (Porto Alegre: HS Editora, nº 239, novembro/2003, p. 62-73), à época impressa e com volumes antigos passíveis de consulta em “CD-Rom”, acabou não digitalizado para a posteridade, sendo, vez por outra, tema de perguntas e debates, os quais me levam a revirar os baús virtuais.
Mesmo aos atuais assinantes do periódico – hoje Revista Fórum Justiça do Trabalho -, cujo acesso a números antigos ocorre via site, não é franqueada a leitura por se tratar de texto que atingiu a maioridade e não mais figurando no banco de dados.
Embora a Súmula no 207 do TST tenha sido cancelada pela Resolução no 181/2012, a questão sobre a lei aplicável a contratos celebrados e executados em países diversos ganha cada vez mais importância em virtude da intensidade dos fluxos migratórios e da prestação desterritorializada de serviços.
Assim, optei por manter o estudo em seus termos originais, sequer retificando eventuais erros formais ou o atualizando, em respeito ao autor da época e à história por ele e pelo Direito do Trabalho traçada dali em diante.
Oscar Krost – Técnico Judiciário do TRT da 4ª Região – RS, Bacharel em Direito pela UFRGS
“O juiz decide sempre dentro de uma situação histórica determinada, participando da consciência social de seu tempo, considerando o direito todo, e não apenas um determinado texto normativo”.
Eros Roberto Grau1
1. Introdução
Iniciado o século XXI, ainda sob forte influência dos espectros de superação de modelos deixados pelo “breve século XX”2, percebe-se que conceitos até então utilizados como referenciais para compreensão da estrutura e das bases da civilização ocidental, como Estado Nacional e soberania, são amplamente relativizados, face o complexo fenômeno transnacional conhecido por “globalização”.
Segundo a consciência criada a respeito de tal processo, o mundo de distâncias oceânicas e fragmentado em continentes, tal como conhecido até idos de 1970, não mais existiria, dando lugar à chamada “aldeia global”, na qual, em decorrência do avanço dos meios de transporte e de transmissão de informações, se verifica o encurtamento das distâncias, possibilitando a difusão instantânea de notícias, bem como um fluxo intermitente de capitais e serviços, em velocidade inimaginável3.
A partir daí, surgem inúmeras questões pertinentes ao campo do Direito, em especial ao Direito do Trabalho, até então inexistentes ou de menor relevância, causadas pela fluidez com que tendem a se revestir as relações de produção, desatreladas dos conceitos de nacionalidade e territorialidade, sendo a figura que melhor representa tal fato, as empresas chamadas “multinacionais”.
Sob tal enfoque, se propõe o presente estudo a analisar criticamente o entendimento sumulado pelo Tribunal Superior do Trabalho, em relação a qual o sistema normativo regente da relação jurídica de emprego, quando distintos os países da celebração e da execução do contrato, lançando mão, para tanto, de elementos de doutrina, legislação e jurisprudência. Refira-se, por fim, que não será feito qualquer apreço de questões envolvendo o Direito Processual, eis que o mesmo refugiria ao âmbito do proposto.
2. Contrato de trabalho internacional. Aspectos gerais. Hipótese do Enunciado 207 de Súmula do TST.
Inicialmente, cumpre desvendar o significado do elemento central da análise que se inicia, qual seja, do contrato de trabalho internacional, assim entendido o “acordo tácito ou expresso, correspondente a relação de emprego”4, caracterizado por possuir um ou mais elementos vinculados a ordenamentos jurídicos distintos, também chamados de elementos de estraneidade.
Em regra, o que adjetiva o contrato de trabalho como internacional, diferenciado-o dos demais pactos laborais, é a distinção existente entre os países em que ocorrem os atos de formação e de execução do negócio jurídico propriamente dito – contratação e prestação -, dando margem a questões acerca de qual a legislação que regeria tal relação.
No Direito Brasileiro existem duas fontes normativas gerais disciplinando a matéria, e que emprestam tratamentos divergentes à mesma: a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42) e o Código de Bustamante5 (internalizado no país pelo Decreto nº 18.871/29).
Segundo o artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil,“Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. De outro lado, o artigo 198 do Código de Bustamante dispõe: “Também é territorial a legislação sobre acidentes de trabalho e proteção social do trabalhador”.Breve leitura dos dispositivos transcritos permite a constatação de que utilizam critérios distintos na determinação da lei regente do contrato de trabalho internacional: de um lado, a legislação do local em que ocorrida a constituição da obrigação, enquanto que de outro, a de sua execução.
Entende maciçamente a doutrina que, em se tratando de relação jurídica de emprego, deva prevalecer a solução oferecida pelo Código de Bustamante, que adota como critério o Princípio da Territorialidade, também conhecido por Princípio da lex loci executionis, ao fundamento de que regeria especificamente o conteúdo obrigacional em sede trabalhista, sendo a Lei de Introdução ao Código Civil diploma de aplicabilidade mais ampla, incidente sobre as demais espécies contratuais6.
Chancelando o entendimento consagrado pela doutrina, editou o TST o Enunciado 207 de Súmula, com a seguinte redação:
“CONFLITOS DE LEIS TRABALHISTAS NO ESPAÇO. PRINCÍPIO DA LEX LOCI EXECUTIONIS. A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação”. (grifei)
Em que pese o consistente fundamento que abaliza a posição doutrinária/jurisprudencial atualmente assentada, não há como aplicá-la à integralidade das situações envolvendo a contratação e prestação de trabalho, quando ocorridas em países diversos, de forma indiscriminada, vez que em inúmeras situações tal procedimento implica manifesta afronta aos Princípios orientadores do Direito do Trabalho, enquanto ramo da legislação social de caráter tuitivo, bem como ao disposto nos artigos 1º, incisos III e IV e 7º, caput da Constituição da República e 9º da CLT e aos cânones da ordem pública e da soberania nacional, na forma prescrita no artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil7.
Justamente neste ponto, de riqueza e de diversidade fática, que reside a contribuição crítica que se almeja proporcionar no presente, pela constatação da existência de pelo menos cinco hipóteses não aventadas pelo entendimento consagrado nas vias doutrinária e jurisprudencial, não sendo demais alertar para os riscos potencialmente gerados ao Direito, enquanto ramo das ciências humanas, caracterizado pelo constante estado evolutivo, pelo fenômeno da sumulação, idealizado pelos Pretórios de todo o país, em especial pelas Cortes Superiores, sedimentando alguns de seus posicionamentos, inclusive com efeito vinculativo às decisões proferidas em instâncias inferiores.8
Feitas tais considerações, passa-se, então, à análise das hipóteses contratuais peculiares, nas quais se centram as divergências já ventiladas.
3. Aspectos específicos. Hipóteses sui generis.
3.1 Transferências temporárias para o exterior.
A primeira espécie de contrato de trabalho internacional à qual não seria satisfatório a aplicação do entendimento consubstanciado no Enunciado 207 de Súmula do TST, refere-se à transferência para o exterior de trabalhadores contratados no Brasil, para prestação de serviços de engenharia, excluídos os de natureza transitória, por período de até 90 (noventa) dias.
Tal hipótese resta regulada pela lei 7.064/82, a qual assegura expressamente aos trabalhadores contratados nas referidas condições “a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”. (art. 3º, II)
Pela análise da referida lei nota-se que esta excepciona em parte o Princípio da lex loci executionis, na medida em que impõe ao empregador a aplicação aos contratos celebrados no Brasil de todo complexo legal brasileiro de proteção ao trabalho, no que compatível com a ordem jurídica vigente no país em que efetivamente vier a ocorrer a execução do pacto, sobrepondo regras de ordens distintas, no fenômeno explicado pela teoria da irradiação9.
Pertinente destacar que a própria norma estabelece um limite máximo de duração da transferência para o exterior do trabalhador contratado em solo brasileiro, no caso, de até 3 (três) anos, nos termos de seu art. 7º, parágrafo único, alínea “a”, justificando a manutenção do atrelamento da relação de emprego estabelecida com a legislação nacional trabalhista, face o caráter de temporariedade da execução do negócio em território estrangeiro.
Com efeito, não haveria como aceitar a aplicação do Princípio da Territorialidadeaos pactos firmados em determinado país, mas temporariamente executados em outro, na medida em que aquele que presta labor, ainda que fisicamente tenha modificado o local da prestação, permanece, em sentido jurídico, vinculado ao ordenamento em que se deu a celebração do negócio e que, em condições habituais, se dá todo o tráfego de suas relações, singeleza captada pelo legislador. Admitir como absoluto o Princípio da lex loci executionis redundaria na esdrúxula possibilidade de se retirar do empregado, ainda que em caráter não definitivo, direitos mínimos incorporados a seu patrimônio pela ordem juslaboral brasileira apenas pela alteração circunstancial do local da sua execução, de parte de suas obrigações. Tem-se, portanto, por valorizado o Princípio Protetivo, em sua projeção da aplicação da norma mais favorável, mesmo em seara internacional.
Ainda que a iniciativa do legislador seja merecedora de inúmeros elogios ao produzir a norma em exame, tal fato, per se, não tem o condão de eximir o texto legal das críticas cabíveis. Neste particular, refira-se a excessiva restrição dos destinatários da regra protetiva – empregados de empresas de engenharia – o que não encontra justificativa em um sistema aberto de garantias, como o constitucional brasileiro, na forma assegurada pelos artigos 5º, §2º e 7º, caput da Constituição Republicana. Não seria demais recordar que o escopo precípuo da legislação trabalhista é a proteção do sujeito trabalhador, razão pela qual, entende-se que a aplicação da lei 7.064/82 deve ser permeada pelos valores que integram o Princípio Isonômico ou da Não-Discriminação10, estendendo-se as garantias ali asseguradas a todos os trabalhadores que em condição de transitoriedade venham a prestar labor fora do país, observadas as condições próprias do caso concreto11.
Assim, diante de autêntico conflito normativo no espaço, frente à transferência temporária ao estrangeiro do trabalhador contratado no Brasil, perfeitamente aplicáveis, de forma cumulativa, as legislações brasileira e a estrangeira, com o fim de assegurar todos os direitos fundamentais trabalhistas, arrolados no artigo 7º da Lei Maior.
Nesse sentido vem se posicionando parte da jurisprudência, consoante se constata do apreço dos seguintes precedentes:
“EMENTA: Aplica-se a lex loci executionis sempre que, ‘…consideradas no conjunto para cada matéria…’, as disposições legais do país da prestação de serviços forem minimamente compatíveis com o sistema jurídico nacional de proteção ao trabalho. Se, entretanto, as normais locais forem primitivas e incipientes, aplica-se a lei brasileira”.
(Processo nº 1.953/94 – RO, TRT 6ª Região/PE, 1ª Turma, Relator Juiz Luiz Carlos Bomfim, grifei)
“EMENTA: Demanda trabalhista que envolve empregado contrato de fato no Brasil, enquanto o instrumento tenha sido formalizado no exterior, em vista do princípio da primazia da realidade, atrai a incidência da Lei n. 7.064/82, que, por sua vez, faz incidir a legislação material brasileira no que for mais favorável ao obreiro. Recurso dos reclamantes provido. Recurso da OSEL LTDA. Não conhecido por deserção. Recurso da CNO Construtora Norberto Odebrecht S/A parcialmente provido.”
(Processo 5520/200 – RO, TRT 6ª Região/PE, 3ª Turma, Relatora Juíza Zeneida Gomes da Costa, Data do julgamento: 03/10/2001, grifei)
“EMENTA: CONFLITO INTERESPACIAL DE NORMAS. A solução do conflito interespacial de normas trabalhistas não fica jungida à doção rígida e predeterminada da –lex executionis-, mas admite a busca de critérios flexíveis, que atendam ao ideal de proteção do indivíduo, de acordo com as circunstâncias concretas. Avulta o raciocínio expresso na abalizada doutrina de Otávio Bueno Magano – A prioridade atribuída à ‘lex laboris’ não exclui a aplicação concomitante da lei comum das partes contratantes, quando seja esta mais favorável ao trabalhador. Explica-se porque o Estado de origem não permite que seu súdito se submeta a condições de trabalho inferiores ao padrão mínimo por ele estabelecido (Conflito de Leis Trabalhistas no Espaço-Lineamentos-Revista LTr-vol. 51, pág. 917)”.
(Processo 6.268-95 – RO, TRT 9ª Região/PR, 2ª Turma, Relatora Juíza Rosalie Michaele Bacila Batista, publicado em 05/07/1996 – grifei)
“EMENTA: CONTRATO DE TRABALHO AJUSTADO NO BRASIL – PERÍODO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS NO EXTERIOR – INAPLICABILIDADE DO ENUNCIADO Nº 207, DO COLENDO TST. Em se tratado de contrato de trabalho ajustado no Brasil e iniciando-se aqui a prestação de serviços, ainda que o empregado tenha trabalhado em outro estabelecimento da mesma empresa situado no Paraguai, é inaplicável o Enunciado nº 207/TST, pelo que deve ser aplicada a lei brasileiro em todo o período contratual”.
(Processo 0001306/96 – RO, TRT 24ª Região/MS, Relatora Juíza Geralda Pedroso, publicado em 24/03/1997 – grifei)
3.2 Execução do contrato em território de diversos países
Outra hipótese não abarcada pelo entendimento sedimentado pelo Enunciado 207 de Sumula do TST diz respeito aos trabalhadores submetidos à execução do contrato de trabalho em territórios de diversos países, cujos maiores expoentes são os ferroviários e os rodoviários.
De forma semelhante ao item anteriormente analisado, verifica-se que na situação em que a prestação laboral impõe ao obreiro o trânsito por Estados-Nacionais variados inocorre modificação do centro de interesses privados da vida do sujeito subordinado, o qual se mantém conectado a um dado ordenamento jurídico. Não há como admitir, por contrário a qualquer juízo de razoabilidade minimamente formulado, que o simples fato de um condutor de veículo automotivo rodoviário atravessar um continente inteiro de norte a sul tenha por efeito a incidência das normas jurídicas de cada um dos países pelo qual transitou ao executar as obrigações atinentes ao contrato de trabalho.
O critério que, aparentemente, melhor se presta para resolver tais situações, é o da aplicação da legislação vigente no país em que estiver situada a chamada “sede de subordinação” do empregado, ou seja, o estabelecimento ao qual este presta contas e recebe ordens, denotando a utilização, ainda que pela via indireta, do prescrito no art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil. Poder-se-ia, ainda, por uma interpretação analógica, justificar tal entendimento pelo uso do critério do art. 651, §1º da CLT, que fixa a competência territorial do Juiz do Trabalho com base na localidade em que o empregador tenha agência ou filial e a esta o empregado agente ou viajante comercial esteja subordinado.
Dita posição é compartilhada pela doutrina credenciada de Arnaldo Süssekind, que leciona:
“Já registramos, no item anterior, que tanto os Congressos Internacionais de Genebra (1957) e de Abgre (1971), como o mestre BATIFFOL, recomendam a aplicação da lei do local onde o empregado trabalhar em caráter permanente; mas quando ele for designado para prestar serviços ocasionais ou nitidamente transitórios em outro país, ou o trabalho for prestado intermitentemente em dois países, aplicável será a lei do domicílio do estabelecimento ao qual estiver diretamente subordinado.
(…)
Nos demais casos, isto é, no transporte internacional por estradas de rodagem ou ferroviárias, a norma prevalente é a de que a execução do contrato de trabalho se rege pelo sistema aplicável ao estabelecimento a que o empregado está diretamente subordinado”.12 (grifei)
Em sentido análogo, Délio Maranhão, porém por fundamento diverso:
“Pode acontecer, ainda, que o trabalho, por sua natureza, deva ser exercido em diferentes países. Escreve HENRI BATIFFOL, que ‘importa observar que um salariado, ocupado ‘tour à tour’ em vários países, é freqüentemente ‘rataché’ a um estabelecimento fixo onde se determinam suas prestações sucessivas e onde êle se encontra à disposição do empregador depois de terminadas as prestações. Êste estabelecimento pode ser considerado como o lugar da execução do trabalho. O caso não oferece dificuldade para o pessoal rolante das emprêsas de transporte, que, embora trabalhando em uma linha que atravessa vários países, depende de um centro determinado”. 13(grifei)
3.3 Trabalho fronteiriço.
A figura do trabalho conhecido por “fonteiriço”, assim entendido aquele realizado em zonas de fronteira do Brasil com outros países, sendo em um destes o da residência do trabalhador, e em outro o da efetiva prestação laboral, situação bastante comum em um Estado Nacional de dimensões continentais, também pode ser enquadrada como exceção ao entendimento consagrado no Enunciado 207 de Súmula do TST.
Arnaldo Süssekind, com a precisão que lhe é peculiar, define esta espécie singular de prestação como:
“(…) o prestado em território diverso daquele em que o trabalhador tem domicílio. Segundo definição do já citado relatório elaborado pelo BIT para o II Congresso Internacional de Direito do Trabalho, entende-se como trabalhadores fronteiriços os que ‘conservando seus domicílios, numa zona fronteiriça de um Estado, para onde retornam, em princípio, cada dia, vão trabalhar na qualidade de empregados na zona fronteiriça do outro Estado. A característica do trabalho fronteiriço é, portanto, que tenha sua residência num país o seu local de trabalho em outro’ (‘Rapport Général’, cit., pág. 140)”14(grifei)
Ocorre, no mais das vezes, que tanto o empregador quanto o empreagdo são domiciliados no mesmo país, desenvolvendo os atos de execução da relação obrigacional em outro, apenas, para tanto, tendo que atravessar uma via pública, como no caso da cidade gaúcha de Santana do Livramento, separada de Rivera, no Uruguai, por poucos metros.
Destaque-se que o apreço de questões ligadas a esta categoria sui generis exige redobrada atenção ao aplicador do Direito, eis que caracterizada pela riqueza de nuanças, as quais podem se modificar caso a caso .
Tal qual manifestado por ocasião do exame das hipóteses de transferência temporária para o exterior e de execução do contrato em território de diversos países, itens 3.1 e 3.2, supra, há que se ter presente a quais ordenamentos jurídicos estão atrelados os centros de gravitação da vida civil dos sujeitos subordinante e subordinado do liame de emprego, para fins de determinação da lei aplicável à relação trabalhista formada entre os mesmos.
Neste particular, a jurisprudência tem despendido especial trato aos trabalhadores de fronteira, consoante se denota dos seguintes julgados:
“EMENTA: TRABALHADOR FRONTEIRIÇO. TRABALHO FLUTUANTE. Segundo a melhor doutrina, o enunciado 207 da SJTST, que adota o princípio da Lex Loci Executionis, há de sofrer temperamentos na aplicação, nos casos de trabalhador fronteiriço que preste trabalho em país estrangeiro sem que se desvincule fisicamente do país de origem”.
(Processo nº 01085.811/95-6, TRT 4ª Região/RS, 6ª Turma, Relatora Juíza Beatriz Zoratto Sanvicente, Data do Julgamento: 02/07/2003 – grifei).
“EMENTA: Fronteiriço – Competência da Justiça do Trabalho no Brasil – Incidência do disposto no §2º do art. 651 da CLT – alcance do preceito insculpido no Enunciado 207 do C. TST – aplicação da legislação pátria. Patente é a competência da Justiça Brasileira Especializada para dirimir conflitos de interesse de empregado brasileiro, que prestava serviços em filial de empregadora no estrangeiro, cuja sede é no Brasil, segundo preceito insculpido no §2º do art. 651 da CLT. O domicílio do autor e da ré, ‘in casu’, torna indiscutível a competência ‘ratione loci’ exercitada pela E. JCJ. O princípio da ‘lex loci executionis’, adotado como regra pelo Enunciado nº 207 da mais alta Corte Trabalhista deve ser excepcionado no caso da ‘travail frontalier’. Com efeito, trabalhador brasileiro, aqui domiciliado e contratado por empresa igualmente brasileira, e que adentra o território do país vizinho somente para laborar e filial da empregadora, define a aplicação da legislação pátria e afasta a da alienígena, ao caso vertente, invocando-se, para tanto, inclusive, o princípio protetor”.
(Processo nº 1.525/95 – RO, TRT 24ª Região/MS, Juiz Relator André Luis Moraes de Oliveira, publicado em 01/03/1996 – grifei)
“EMENTA: TRABALHADOR FRONTEIRIÇO – LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. Trabalhador brasileiro fronteiriço, aqui domiciliado, que presta serviços para o mesmo empregador rural em propriedades distintas, uma delas situada em país limítrofe, deve ter todo o seu contrato de trabalho regido pela legislação brasileira. Exceção imposta pelo princípio de proteção à regra da ‘lex loci executionis”.
(Processo 0000059/97 – RO, TRT 24ª Região/MS, Juiz Relator Márcio Eurico Vitral Amaro, publicado em 03/07/1997 – grifei)
Destaque-se que não se está advogando pelo afastamento integral e irrestrito do Princípio da Territorialidade, consubstanciado no Enunciado 207 de Súmula do TST, a todo e qualquer contrato de trabalho celebrado em região de fronteira, para fins de determinação da lei aplicável ao mesmo, mas sim, pela possibilidade de fazê-lo de forma casuística e tópica, segundo critérios flexíveis e disponíveis ao intérprete, com base nos valores que orientam o sistema protetivo constitucional pátrio. Sendo brasileiros a nacionalidade e o local do domicílio do trabalhador, mesmo que a prestação laboral se dê em país vizinho, não há como negar que se fazem sensíveis alguns traços de que sua vida civil permanece atrelada ao ordenamento jurídico brasileiro, atraindo a aplicação da normatividade nacional. Entretanto, se constatado que a pessoa que assume os riscos da atividade econômica, seja ela física ou jurídica, na condição de empregadora, também for brasileira, possuindo filial em Estado Nacional lindeiro, cuja legislação reguladora do trabalho é mais branda do que a CLT e leis extravagantes, afasta-se, por completa, qualquer dúvida porventura remanescente a respeito da utilização das leis nacionais de proteção ao trabalho, rejeitando-se, por completo, a aplicação do Princípio da lex loci executionis.
Em sede doutrinária o tema é praticamente ignorado, limitando-se os estudiosos a apreciar questões voltadas à formação e ao desenvolvimento do MERCOSUL, em seus aspectos econômicos e de uniformização legislativa, bem como à celebração de Tratados Internacionais de Colaboração entre países integrantes de um mesmo continente, deixando a cargo de Comissões Intercontinentais e Fóruns de Debates Temáticos o seu enfrentamento.15
3.4 Marítimos e aeronautas
Os trabalhadores tripulantes de embarcações marítimas ou aéreas, também se encontram em zona gris no que concerne à lei regente de seus contratos de trabalho, merecendo, pois, tratamento diferenciado.
Aos marítimos e aeronautas se aplica o critério disposto nos artigos 274 e seguintes do Código de Bustamante, Título III, capítulo I, o qual consagra o uso da lei do pavilhão, ou seja, da legislação vigente no país em que matriculado o navio ou a aeronave em que há a entrega da força de trabalho, como se o meio de transporte fosse uma extensão daquele.
Na doutrina clássica, tal entendimento resta inteiramente pacificado, conforme lições de Evaristo de Moraes Filho e Arnaldo Süssekind, respectivamente:
“Quanto às relações de trabalho da tripulação, da equipagem, em suma, do pessoal que trabalha em navios e aeronaves, o princípio dominante é o do pavilhão, isto é, o da aplicação da lei do local de matrícula dos navios ou das aeronaves. (…) A doutrina e a legislação consideram os navios e as aeronaves como verdadeiros estabelecimentos unitários e extensivos da própria empresa de navegação”.16
“A lei do país onde estiver matriculado o navio e a aeronave, aplicável aos respectivos tripulantes não constitui, propriamente, uma exceção àquele princípio, porque, por ficção legal, esses meios de transporte são considerados estabelecimentos móveis da empresa cuja nacionalidade resulta do seu registro”. 17
Mais do que simplesmente afastar a incidência da normatividade territorial aos contratos de trabalho, pelo menos sob o prisma tradicional, a adoção do critério da lei do pavilhão demostra a opção clara pela aplicação do estatuto da nacionalidade ou da bandeira do meio de transporte. Novamente, percebe-se que a vinculação dos sujeitos que integram a relação contratual de trabalho a determinado ordenamento jurídico, em regra de suas nacionalidades, se dá com tamanha força que, mesmo fisicamente distantes deste, se mantêm sob sua influência.
Representaria nítida extravagância a aplicação da lex loci executionis aos contratos de trabalho dos integrantes de tripulações de embarcações e aeronaves, em hipóteses de viagens internacionais, acabando por inviabilizar uma definição mínima dos direitos trabalhistas tutelados, o que não se coaduna com a segurança jurídica, valor sobre o qual assenta-se grande parte, senão a integralidade, das ordens jurídicas vigentes nos dias de hoje.
3.5 Técnicos estrangeiros
Os técnicos estrangeiros, prestadores de serviços especializados, em caráter provisório no território nacional, por força da aplicação do Decreto-Lei 691/69, também estão fora do alcance do critério consagrado no Enunciado 207 de Súmula do TST.
A estes trabalhadores restam assegurados o direito à remuneração em moeda estrangeira, nos termos ajustados em seus países de origem, bem como aqueles previstos no contrato individual de trabalho, necessariamente celebrado a termo certo para viger no Brasil, prorrogável por apenas uma vez (art. 1º, caput). Ademais, garante-se, ainda, o pagamento de salário em valor equivalente ao mínimo legal, repousos semanais remunerados, férias anuais, duração, higiene e segurança do trabalho, seguro contra acidente do trabalho e previdência social (art. 2º), nos termos previstos na legislação brasileira.
Mesmo atrelado ao ordenamento jurídico de sua nacionalidade, o técnico estrangeiro prestador de serviços especializados, nas condições antes referidas, sofre a incidência de determinadas e específicas normas de proteção ao trabalho, de natureza cogente e inderrogáveis,.
Caberia, diante de tais circunstâncias, questionar acerca da revogação do Decreto-Lei nº 691/69, em face da Constituição da República de 1988, mais especificamente pelo disposto no caput de seu art. 5º c/c os incisos XXX e XXXII do 7º, que garantem aos brasileiros e estrangeiros identidade de tratamento, em termos isonômicos e não-discriminatórios, delineando um núcleo mínimo de direitos fundamentais trabalhistas a todos aqueles que em território brasileiro se encontrem.
Outra questão pertinente seria a respeito da compatibilidade do tratamento previsto no Decreto-Lei em questão com o escopo da Lei 7.064/82, já analisada no item 3.1, supra, que em seu artigo 3º, II assegura expressamente a aplicação da normatividade brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto na própria lei, quando mais favorável do que a normatividade territorial, em que se dá a prestação do trabalho, no conjunto normativo e em relação a cada matéria. Data venia, não há como desprezar a existência de trato legislativo diferenciado a dois trabalhadores expostos a situações análogas, o que se mostra impraticável e incoerente no sistema juslaborista pátrio: de um lado, estariam os técnicos estrangeiros, titulares de pontuais e esparsos direitos trabalhistas mínimos, na condição de “sub-sujeito” trabalhador, com status similar ao do doméstico, verdadeiro renegado no mundo do trabalho, enquanto que de outro, situar-se-ia o “super sujeito” trabalhador, empregado de empresas prestadoras de serviços de engenharia, tutelado não apenas por um, mas por dois ordenamentos jurídicos tuitivos, naquilo que mais favorável em um e em outro.
Frente a tal dilema, resta apenas recordar que dentre os fundamentos da República Brasileira, encontra-se a dignidade da pessoa humana, inscrita no art. 1º, inciso III da Constituição, elemento que por si só aponta para o caminho a ser seguido pelo aplicador do Direito do Trabalho diante da legítima situação teratológica delineada, pela extensão da gama de Direitos, face à incidência do Princípio Protetivo, em sua projeção da Aplicação da Norma Mais Favorável.
4. Conclusão
Em um mundo de distâncias relativizadas, atualmente chamado de “aldeia global”, em que verificado um fluxo intermitente de capitais e serviços em caráter transnacional, não mais se justifica a aplicação ou mesmo o afastamento irrestrito do Princípio da Territorialidade, consubstanciado no Enunciado 207 de Súmula do TST, a todo e qualquer contrato de trabalho celebrado em dado país e executado em outro, para fins de determinação da lei aplicável ao mesmo.
Na realidade, a posição que melhor se coaduna com uma visão sistêmica e moderna de Direito estaria, justamente, no ponto intermediário, pelo qual a determinação da normatividade incidente ao caso concreto deve se dar de forma casuística e tópica, pelo uso de critérios flexíveis, com base nos valores que orientam o sistema protetivo constitucional pátrio.
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GRAU, Eros Roberto.“Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito”. São Paulo: Malheiros, 2002.
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SÜSSEKIND, Arnaldo. “Conflitos de leis do trabalho”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979.
___________________ “Conflitos de leis do trabalho no espaço”, in Revista de Direito do Trabalho, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 103, julho/setembro de 2001.
1 In “Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito”. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32.
2 Expressão cunhada por Eric Hobsbawm, e que empresta nome ao subtítulo de uma de suas maiores obras: “Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991”, São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
3 A respeito do fenômeno da globalização, ver SANTOS, Milton, “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal”. Rio de Janeiro: Record, 2000 e, mais especificamente em matéria trabalhista, SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social”. São Paulo: LTr, 2000, p. 127 et seq.
4 Segundo dicção do artigo 442 da CLT, caput, que dispõe: “Art. 442. Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente a relação de emprego”.
5 O Código de Bustamante consiste em uma Codificação de Direito Internacional Privado, originado de inúmeras Conferências Pan-Americanas a partir de 1889, ano no qual foram aprovados os Tratados de Montevidéu, de autoria do jurista cubano Antonio Sánchez y Bustamante, ratificado por Brasil, Bolívia, Chile, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru, El Salvador e Venezuela. A respeito do tema, ver DOLINGER, Jacob, “Direito Internacional Privado, parte geral” Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 74 et seq.
6 Faz-se tamanha a pacificação acerca de tal entendimento, a ponto de Rodrigo Giostri da Cunha, em valiosa monografia sobre o tema, intitulada “Contrato Internacional de Trabalho – Transferência de Empregados”, Prêmio LTr de melhores estudos em Direito do Trabalho, em 1999, referir: “Da mesma forma, a doutrina é unânime em afirmar que não aplicação sobre os contratos de trabalho o artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil”. In http://www.socejur.com.br, capturado em 12.08.2003.
7 Em sede de doutrina, destaque-se a posição minoritária, mas crítica e de vanguarda, de Raymundo Antônio Carneiro Pinto, a respeito do entendimento consagrado no Enunciado 207 de Súmula do TST: “O curto texto do Enunc. não esgota as várias hipóteses que podem ocorrer na prática. Como regra geral é aceitável. O Código de Bustamante (art. 198) contém norma semelhante (…) Em suma, a interpretação só tem validade se o serviço for executado predominantemente num único país e o empregado não tiver domicílio no Brasil”. In “Enunciados do TST comentados”, São Paulo: LTr, 1999, p. 144.
8 Sobre o fenômeno das súmulas com efeito vinculante, destaque-se a opinião autorizada de Ovídio Baptista, ao referir: “(…) seu propósito não é propriamente contribuir para a evolução do sistema jurídico, mas ao contrário, aprisioná-lo ao passado, impedindo que a elaboração jurisprudencial lhe permita progredir, em constante convivência com a realidade social que lhe caiba disciplinar”. In “Sentença e coisa julgada (ensaios e pareceres)”. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 299.
9 GIOSTRI DA CUNHA, ob. cit. p. 09
10 Positivado no preâmbulo e artigos 3º, inciso IV, 5º, caput e 7º, incisos XXX e XXXII da Constituição.
11 Na doutrina, comunga do entendimento de que a proteção da lei 7.064/82 deva ser ampliada Octávio Bueno Magano, ao sustentar: “Cumpre registrar, ainda, que a Lei nº 7.064/82 possui campo de incidência circunscrito aos trabalhadores vinculados a empresas prestadoras de serviços de engenharia e outros serviços conexos (…) por analogia, deve ser aplicada em qualquer hipótese em que trabalhadores domiciliados no Brasil sejam mandados para o exterior, ou em virtude de transferência ou em decorrência de contrato adredo celebrado para o apontado efeito”. (in Revista LTr. Vol. 51, nº 8, agosto/1987, p. 917/920, “Conflito de Leis Trabalhistas no Espaço (lineamentos)
12 “Conflitos de leis do trabalho”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979, p. 31 et seq.
13 “Instituições de Direito do Trabalho”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971, p. 130.
14 Ob. cit., p. 33.
15 Neste particular, merecem destaque a Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 1996, em seu relatório anual, art. 66, in www.cidh.oas.org e Declaração de Foz do Iguaçu, resultado do 1º Fórum de Debates sobre Integração Fronteiriça, in www.consulex.net, ambos capturados em 25/08/2003.
16 In “Introdução ao Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 1995, p. 176.
17 In “Conflitos de leis do trabalho no espaço”, Revista de Direito do Trabalho, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 103 julho/setembro de 2001, p. 24.
