UBER: O HOMEM ABSURDO

Almiro Eduardo de Almeida – Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Santa Cruz do Sul, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Professor Universitário na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay. Especialista em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

“Eu me matarei para provar a minha insubordinação, minha nova e terrível liberdade.” Albert Camus, O mito de Sísifo.

“[Os deuses] pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”. Assim Albert Camus inicia sua análise do mito de Sísifo, considerado pelo escritor francês como o arquétipo do herói absurdo.

O mito só é trágico porque o herói é consciente: “O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo.” Seu cotidiano é avassalador: “acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo.” A ausência de vírgulas entre os dias da semana somada à expressão “no mesmo ritmo” nos remete à noção de um trabalho sem pausas, ditado pela inércia da necessidade.

O operário do início da década de 1940 referido por Camus encontra seu ápice no trabalhador de plataformas digitais de hoje. Se Sísifo, condenado a trabalhar eternamente é o herói do absurdo, “o Uber” pode ser considerado o trabalhador do absurdo. Não apenas porque o sentido de seu trabalho lhe é retirado – isso ocorre com todos os trabalhadores no modo capitalista de produção. Com “o Uber” ocorre mais.

A fetichização de que nos fala Karl Marx chega ao seu extremo quando o trabalhador não é mais identificado como um ser humano, mas como o aplicativo que o emprega – e a palavra emprega aqui deve ser compreendida para além de seu sentido jurídico. Não esqueçamos que empregar significa usar: efetivamente o motorista é empregado da plataforma, uma vez que lhe vende a sua força de trabalho; mas também é empregado (usado) pela Uber para a obtenção de lucro.

Como dizia, com “o Uber”, a fetichização atinge o seu ponto mais alto, uma vez que o trabalhador não é mais identificado como um ser humano, mas como o aplicativo que o emprega: não chamamos uma pessoa, nem mesmo um motorista, para nos transportar de um lado para o outro – chamamos “um Uber”. E se o aplicativo faz questão de que saibamos o nome de quem está realizando o trabalho, não é por uma questão de humanidade, ou de reconhecimento do ser humano que está trabalhando, mas para a segurança da carga.1

As recentes decisões judiciais, que não apenas negam a existência de vínculo de emprego, mas também a competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações, e o recente Projeto de Lei enviado ao Congresso Nacional por um executivo, ocupado pelo “Partido dos Trabalhadores”, que praticamente se limita a cobrar “contribuições” previdenciárias, nos faz lembrar de outra passagem d’O Capital. Nesta, Marx sustenta que o empregado é um trabalhador livre em dois sentidos: primeiro porque, dispondo livremente de sua força de trabalho, não está preso ao seu senhor como o antigo escravo; em segundo lugar porque, não dispondo dos meios de produção, não está “preso” a eles, como o servo medieval. Assim, duplamente livre, não lhe cabe outra opção, a não ser vender a si mesmo, enquanto vende sua força de trabalho, podendo – às vezes – escolher quem será o seu patrão.

Pois bem, a tecnologia criou uma nova forma de trabalhador: o trabalhador triplamente livre: agora, além de ser livre para dispor de sua força de trabalho como bem entender (e necessitar); ser livre por não possuir os meios de produção; também é livre de direitos trabalhistas. Com efeito, a pessoa que trabalha em plataformas como a Uber, etc. pode ser considerado um trabalhador que atingiu o ápice da liberdade. Assim, livre de todas as amarras sociais, acaba sendo livre também do “peso” de sua dignidade.

Em face do velho dilema – sempre renovado – do emprego sem direitos ou direitos sem emprego, a escolha não deveria ser difícil.

Mas [como adverte Camus] não há escolha e então começa a amargura. O absurdo não liberta, amarra. Não autoriza todos os atos. Tudo é permitido não significa que nada é proibido. O absurdo apenas dá um equivalente às consequências de seus atos. Não recomenda o crime, seria pueril, mas restitui sua inutilidade ao remorso.

Diante dessa realidade sem esperança, pode parecer inútil, ou até mesmo ridículo, “perder” tempo escrevendo (e lendo) sobre isso. Entretanto, é mais uma vez Camus quem nos lembra de que “todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo ridículo”.

Poderíamos discorrer páginas e mais páginas sobre a evidente existência dos requisitos do vínculo de emprego na relação existente entre os motoristas e as plataformas. Esse, entretanto, não é o espaço para isso. Ademais, esse trabalho de imenso valor já foi realizado por inúmeras pessoas, dentre as quais devo destacar Viviane Vidigal e Oscar Krost, autores cujos livros e artigos sobre o tema recomendo fortemente.

A questão não é jurídica. Nunca o foi. Obviamente não se trata de ausência dos elementos jurídicos necessários para a configuração do vínculo de emprego. Esses sempre estiveram presentes. Sequer se trata de uma nova forma de exploração da força de trabalho, intermediada pela tecnologia. O capitalismo já surgiu, há trezentos anos, tendo a exploração da força de trabalho intermediada pelas máquinas.

Para tratar desse “homem (trabalhador) absurdo”, não há necessidade de novas regras. Sequer seria necessário a Lei dizer que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica” (parágrafo único do Art. 6º da CLT). Como diz a expressão latina, “legem habemus”, basta apenas a vontade de aplicá-la. Ainda citando Camus, “não se trata de dissertar sobre a moral. (…) a honestidade não precisa de regras”.

A questão é mais profunda e, justamente por isso, mais singela. E eis que

um belo dia, surge o “por que” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. ‘Começa’ isso é importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento de consciência. […] Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode bater no rosto de um homem qualquer.

Talvez não seja à toa que o autor de O mito de Sísifo comece a obra que serviu de epígrafe e fio condutor dessas breves reflexões afirmando que a pergunta fundamental que devemos nos fazer é se a vida vale a pena ser vivida. A resposta sugerida pelo próprio Camus não está na esperança transcendente de uma vida melhor amanhã; mas na necessidade da revolta hoje, agora! “O tema da revolução permanente se transfere assim para a experiência individual” e o homem absurdo passa a ser O homem Revoltado. Mas esse já é o título de outro livro do filósofo do absurdo.

Santa Cruz do Sul, 1º de abril de 2024.

1 Tal instrumentalização do ser humano me remete há alguns anos, em que se sustentava que o tacógrafo colocado nos veículos não servia para controlar a jornada de trabalho dos motoristas, mas apenas para garantir a segurança da carga (OJ 332 da SDI-I do TST). Estranhamente após a Lei dos motoristas “criar” a tecnologia capaz de controlar a jornada desses trabalhadores: a papeleta(!), não mais se argumenta acerca da aplicação da exceção do Art. 62 da CLT para esse tipo de atividade. Dias desses, em uma audiência, a empresa de transporte argumentava que não havia necessidade de controle de jornada, já que o tacógrafo registrava fidedignamente os horários em que o caminhão estava rodando. Meu contra-argumento foi singelo: o tacógrafo não serve para controlar a jornada, apenas para garantir a segurança da carga.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

2 comentários em “UBER: O HOMEM ABSURDO

  1. Sensacional! Esse é um daqueles textos que instigam a estudar e a lutar, parabéns! Destaque para a análise do fetiche de Marx em seu mais alto grau – até agora – e para a tripla amarra, travestida de liberdade.

    “Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir; Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir; E pelo grito demente que nos ajuda a fugir; Deus lhe pague!”.

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  2. Brilhante posicionamento, e olha que nem vamos chamar a atenção para a data da publicação (1º de abri) pois, infelizmente, “mentiras” ou “ilusões” é a reflexão inevitável que fica da leitura.

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