Oscar Krost
Franz Kafka (Praga, 1883-1924) é mundialmente conhecido como um dos maiores escritores do século XX. Se a Literatura pudesse ser dicionarizada, não haveria exagero em reconhecer que a página de rosto da letra “K” contaria com a imagem do autor tcheco.
Como destaca o Professor Tomaz Amorim,1 a obra de Kafka exige uma postura nada passiva e apenas contemplativa do leitor e da leitora, praticamente impondo-lhes a busca por sentidos possíveis, dada a insuficiência de sua literalidade. Sobre tal peculiaridade, se encontram os elementos da consagração da escrita kafkiana como universal e atemporal.
Sendo a comunicação, especialmente sob a forma escrita, um processo complexo e dialético, parte de seu conteúdo se encontra no texto de quem redige e o restante, no contexto de quem lê. Algo como a travessia de uma ponte até o encontro em um ponto médio do caminhar-escrever com o caminhar-ler.
Para alguns, os conflitos entre pai e filho presentes em textos como “O veredito” e “Carta ao pai”, nenhum de todo ficcional, tampouco sem algum traço autobiográfico, representam a relação entre o ser humano e Deus (análise teológica).
Max Brod, amigo, testamenteiro e salvador de grande parte do que hoje lemos de Kafka, ao receber os manuscritos e não atender ao desejo do autor de destruí-los, assim entendia. Judeu, sionista e religioso, compartilhava a leitura feita por praticantes de outras fés, a exemplo de cristãos, que agregavam a figura de Jesus às cartas e aos diálogos entre ascendente e descendente.
Outros traduzem os conflitos em questão como alegorias para as várias manifestações do que Sigmund Freud nominou “Complexo de Édipo”. Uma relação tão íntima, quanto conflitiva, marcada por impulsos antagônicos e pulsões de vida e morte (análise psicanalítica).
Proponho, como Juiz trabalhista e aficionado confesso pelo acervo do autor de Praga, há anos lançando mão de seus textos para entender e também explicar questões complexas no http://www.direitodotrabalhocritico.com, um olhar laboral pela ótica do vínculo estabelecido entre a pessoa trabalhadora subordinada e a pessoa empregadora subordinante (análise jurídico-trabalhista).
Mesmo sob risco de soar bizarro, estranho e até mesmo kafkiano, não é demais recordar a formação jurídica do próprio Kafka e o emprego por ele mantido junto a duas Companhias Seguradoras (Assicurazione Generali e Companhia semi-oficial de seguros operários contra acidentes), aposentado precocemente, em 1922, por problemas de saúde que o levariam a óbito, em 03 de junho de 1924. Em seu ofício, lidava como empregado e com empregados e sofria por não poder exercer a seu gosto o direito à desconexão para se dedicar à escrita, principal, senão único, interesse da vida.2 Padecia, ainda, pela exposição às agruras das vítimas de doenças e de acidentes de trabalho, nos primórdios da regulação da matéria, de modo real e cru.
“Certa manhã, quando Gregor Samsa, abriu os olhos, após um sono inquieto, viu-se transformado num monstruoso inseto”.3 Assim tem início “A metamorfose”.
Assimilada a condição absurda, externa o protagonista o desejo de dormir um pouco mais, dados o cansaço causado por seu ofício de caixeiro-viajante e a situação em que se encontrava. Seu desejo é imediatamente repelido pelo receio de se atrasar para o trabalho, pois “o próximo trem saía às sete: para pegá-lo teria de correr como um alucinado” e “nem assim escaparia da cólera do patrão, pois o rapaz do armazém, que teria esperado por ele no trem das cinco, seguramente já dera parte da falta na firma”.4
Na sequência, quando os pais e a irmã se deparam com o quadro de G., se apresenta inevitável o questionamento sobre como seriam o presente e o futuro de todos, diante da inaptidão produtiva do arrimo da família. O ser da pessoa trabalhadora é desconsiderado quando em comparação com o trabalho que deixaria, sabe-se lá até quando, de realizar.
The show must go on, pouco ou nada importando o bem-estar do artista.
Haveria quadro mais detalhado sobre os prejuízos e males experimentados sob as mais variadas formas por empregados e empregadas acometidos de doenças ou vitimados por acidentes, ambos do labor?
A partir daí, refina-se a compreensão dos critérios contidos no art. 223-G da CLT5 a serem observados na quantificação da reparação por danos extrapatrimoniais, assim entendidos os que afetam a esfera humana moral, estética e até mesmo existencial, para mencionar as hipóteses mais comuns.
“Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo”.6O agrimensor contratado para trabalhar como tal, quase nada sabia a respeito do que exatamente faria, apenas que seria para um Conde que habitava “o castelo”.
A trama se desenvolve com meandros semelhantes a labirintos sem saída e paredes de pura angústia. Pouco depois da chegada, o trabalhador recebe um bilhete: “Prezado senhor: como sabe, o senhor foi admitido nos serviços administrativos do conde. Seu superior imediato é o prefeito da aldeia, que lhe comunicará todos os detalhes sobre o trabalho e as condições de pagamento e a quem o senhor também prestará contas. Mas não obstante isso eu também não o perderei de vista”.7
Daí em diante, entre idas e vindas, nada fica evidente ou compreensível. Tudo é muito misterioso e assim se mantém ao longo da narrativa. K. não entende por que permanecer, mas teme ir embora, de modo que o único sentido parece ser a falta de sentido!
Os exemplos do mundo do trabalho cabíveis em “O castelo” são inúmeros e remetem à falta de transparência. Podem servir de ilustração sobre a ausência de clareza sobre os critérios de apuração de comissões/atingimento de metas/promoções, práticas de gestão por terror, assédio moral e até mesmo política de tratamento de dados. Impossível ler o texto e não se abalar em um meio ambiente tão desequilibrado, nebuloso e hostil.
Em “A preocupação de um pai de família”, Odradek é apresentado como um vocábulo de origem eslava ou alemã, sem qualquer certeza sobre uma ou outra versão. Designa algo com “um aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios”,8 animado e com vontade própria, portanto, vivo. “Como você se chama?, pergunta-se a ele. ‘Odradek’, ele responde. ‘E onde você mora?’ ‘Domicílio incerto.”9
Chega-se ao final dos cinco parágrafos que compõem o conto com mais incertezas do que em seu começo: “Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e nela se desgastou; não é assim com Odradek. (…) Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa”.10
Não raro, questões controvertidas no mundo do trabalho exigem a realização de perícias para sua elucidação. Contudo, esse tipo de prova, ao invés de desvendar os fatos desconhecidos, pode torná-los ainda mais nebulosos a Operadores e a Operadoras do Direito.
Elementos qualitativos, quantitativos, funcionalidade, ergonomia, índices, percentuais…os indicadores são inúmeros, complexos e, mais do que se pode imaginar, envolvem juízos de valor subjetivos. Assim, a fim de de evitar o acirramento das dúvidas, imprescindível que os profissionais busquem, na comunicação, a linguagem mais simplificada e ampla possível, ficando atentos à incompreensão pelos demais, prestando os esclarecimentos requeridos.
O mesmo valeria para a prova testemunhal, quando o questionamento é compreendido a partir da realidade do interlocutor a que se dirige, levando a uma resposta dúbia, insuficiente ou equivocada. “Batia cartão-ponto? O horário estava no ponto? Sem mais perguntas”. Em momento algum foi perguntado se toda a jornada estava consignada, inclusive as horas extras, levando a um entendimento um tanto Odradek.
“Veja, estamos em um navio alemão, que pertence à Linha Hamburg-Amerika, e por que é que não somos todos alemães por aqui? Por que o maquinista-chefe é um romeno? Ele se chama Schubal. Não dá para acreditar. E esse cão sarnento nos esfola, a nós, alemães, num navio alemão! Não creia – perdia o fôlego, agitava a mão – que reclamo por reclamar. Sei que não tem influência, que é só um pobre rapazinho. Mas isso é demais!”11”O foguista”, título do capítulo de abertura da obra “O desconhecido ou Amerika” e alcunha da personagem sem nome próprio que realiza o serviço correspondente na embarcação queixa-se para Karl Rossmann sobre a opressão imposta pela chefia, a ausência de diálogo com os superiores e diversas outras práticas degradantes.
Karl se compadece com a situação do compatriota, se dirige ao comandante do navio ao qual argumenta em prol de uma mudança das condições de trabalho. A fala é contestada e a questão se desenvolve com a participação de outros agentes.
No campo do direito material, há diversos elementos que podem ser relacionados ao exercício do direito de resistência, a práticas discriminatórias e a condições indignas de trabalho ou, ainda, ao senso de pertencimento de categoria profissional de modo a compor a “expressão social elementar”.12 Em sede processual, está-se diante de explícito exemplo da inobservância dos Direitos à Ampla Defesa e ao Contraditório, bem como de acesso à Justiça, esse em sentido não publicista.
Exemplos não faltam e mesmo considerando apenas o Direito e o Processo do Trabalho, a leitura pelas lentes de K. tendem a se mostrar multifocais. “A metamorfose” pode ser utilizada, por exemplo, para examinar o tratamento dispensado pela Reforma Trabalhista (Lei no 13.467/17) sobre o diálogo das fontes e a Ação de Homologação de Acordo Extrajudicial.13
“A preocupação de um pai de família” e Odradek se prestam a auxiliar na reflexão sobre um proceder com cautela, juridicamente falando, no campo trabalhista, em meio aos desafios do isolamento social impostos pela Pandemia de Covid-19.14
“O desaparecido ou Amerika”, cujo capítulo 1 chama-se “O foguista”, pode contribuir para o entendimento sobre as contradições e os produtos do conflito sem solução entre capital e trabalho. Mais do que compreender, podem auxiliar na busca por novos enfrentamentos em prol do todo social.
Assim, partindo da ideia de que a jurisprudência e os precedentes que a constituem formam um romance em cadeia (Dworkin), mais do que importante, essencial aguçar e refinar a (s) leitura (s) não só dessa obra. Relevante o exame de toda e qualquer Literatura, seja em prosa, verso ou canção que, em alguma medida, nos aproxime do que o ser humano carrega de universal e atemporal.
Para além – e apesar – do texto legal, o contexto da justiça em uma relação estabelecida entre quem manda e quem obedece.
* título inspirado em LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: IARGS, 1983.
1 Como interpretar A metamorfose?, parte 1, Canal Antofágica, disponível em <https://youtu.be/jBUUZVcM9gc?si=oRZYflQvTaB55pqb>. Acesso em: 14 jul. 2024.
2 Em 21 de julho de 1913, Kafka escreveu: “Odeio tudo que não tenha a ver com literatura, entedia-me conversar (mesmo que a conversa seja sobre literatura), entedia-me fazer visitas, os sofrimentos e as alegrias dos meus parentes entendiam-me até o fundo da alma. Conversas subtraem a importância, a seriedade e a verdade de tudo aquilo que penso.” (KAFKA, Franz. Diários: 1909-1923. Tradução Sergio Tellaroli. 1a edição. São Paulo: Todavia, 2021, p. 300).
3KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução Maques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro S.A., 1971, p. 25.
4Ob. cit., p. 29.
5 CLT, art. 233-G:
Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:
I – a natureza do bem jurídico tutelado;
II – a intensidade do sofrimento ou da humilhação;
III – a possibilidade de superação física ou psicológica;
IV – os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;
V – a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;
VI – as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;
VII – o grau de dolo ou culpa;
VIII – a ocorrência de retratação espontânea;
IX – o esforço efetivo para minimizar a ofensa;
X – o perdão, tácito ou expresso;
XI – a situação social e econômica das partes envolvidas;
XII – o grau de publicidade da ofensa.
6KAFKA, Franz. O castelo. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 07.
7Ob. cit., p. 31.
8 KAFKA, Franz. A preocupação de um pai de família.In: Um médico rural. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 43.
9Ob. cit., p. 44.
10Ob. cit. p. 44.
11 KAFKA, Franz. O desaparecido ou Amerika. Tradução, notas e posfácio Susana Kampff Lages. São Paulo: Ed. 34, p. 2003, p. 17-18.
12CLT, art. 511:
Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.
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§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional. (grifei)
13 KROST, Oscar. Metamorfose da competência trabalhista: contribuições de Kafka à interpretação dos artigos 8º, §3o, e 855-B da CLT, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/04/14/metamorfose-da-competencia-trabalhista-contribuicoes-de-kafka-a-interpretacao-dos-artigos-8o-%C2%A73o-e-855-b-da-clt/>. Acesso em: 14 jul. 2024.
14 KROST, Oscar. Lições de Odradek de Kafka a um Direito do Trabalho em pandemia, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2020/07/06/licoes-do-odradek-de-kafka-a-um-direito-do-trabalho-em-pandemia/>. Acesso em: 14 jul. 2024.
