CONSTITUIÇÃO EM ESSÊNCIA E FORÇA: REFLEXÕES SOBRE RESPOSTAS ÓTIMAS PELO DIREITO

Oscar Krost

Textos clássicos não alcançam tal status apenas pela passagem do tempo ou pelo renome de seus autores, embora tais fatores possam contribuir em alguma medida. Uma obra atinge um nível excepcional quando se destaca em comparação a outras, semelhantes, sem que a passagem do tempo ou a mudança do contexto em que produzida afetem seu diferencial. São atemporais, embora a cada leitura, devam ser contextualizados alguns fatores essenciais, como tempo e espaço.

Dito isto, recorro a dois exemplos do Direito Constitucional alemão, frutos de exposições orais. Embora “distanciados” entre si por quase um século, ambos se mostram dotados de potencial para contribuir ao enfrentamento dos desafios postos ao mundo contemporâneo, especialmente ao Brasil. São eles: “A essência da Constituição” (Über die verfassung, que em tradução literal significa “Sobre a Constituição”, 1863), de Ferndinand Lassalle, e “A força normativa da Constitição” (Die normative kraft der verfassung, 1959), de Konrad Hesse.

Lassalle (1825-1864) foi Advogado e Sindicalista, um dos precursores da social-democracia germânica, com contribuições no campo da filosofia. Não se notabilizou como intectual ou jurista erudito, sendo contemporâneo de Karl Marx, o que talvez explique tamanho rigor no dimensionamento de seu legado.1 Viveu em um país em processo de unificação, tardio em relação aos vizinhos próximos, com elevados níveis de exploração da classe trabalhadora, em uma economia Liberal em que germinavam as sementes da I Guerra Mundial. Hesse (1919-2005) foi um dos maiores nomes do constitucionalismo moderno, Professor Catedrático de Direito Público na Universidade de Freiburgo (1956-1987), Magistrado do Tribunal Administrativo de Baden-Wüttemberg (1961-1975) e do Tribunal Constitucional Federal alemão (1975-1987).2Foi contemporâneo de uma Alemanha marcada por instabilidade política e econômica, protagonista principal de duas Guerras Mundiais, cuja capital, Berlim, foi literalmente dividida por um muro físico por quase 30 anos (1961-1989). Neste período, o Estado inicia um afastamento do modelo Liberal, aproximando-se de uma ideia de Bem-Estar Social. A Constituição de Weimar (1919) foi ao lado da Carta Mexicana (1917) a primeira a elevar os Direitos Sociais ao nível constitucional.

Juristas, alemães, frutos de seus respectivos séculos e realidades, mas cujas ideias se entrelaçam e, até mesmo, se complementam, em um embate dialético. Para Lassalle, a essência da Constituição e de todas as regras dos sistemas normativos decorrem de uma “força ativa” também chamada “fatores reais de poder”. Por eles, entende o somatório dos vetores produzidos, por exemplo, pela ação da monarquia, aristrocracia, burguesia, banqueiros e classe operária. Uma vez escritos, passariam a ”verdadeiro direito – instituições jurídicas”, de modo que aquele que “atentar contra eles, atenta contra a lei, e por conseguinte é punido”.3Corresponderiam àquilo que entendemos por fontes materiais do Direito.

Hesse, por sua vez, tece críticas a Lassalle, para quem “questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas”.4A Constituição não passaria de um pedaço de papel, cuja “capacidade de regular e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real”5 (fatores reais de poder). À tamanha descrença, Hesse opõe a ideia de haver uma dualidade entre a Constituição real (fatores reais de poder) e a Constituição jurídica (texto), as quais se condicionam mutuamente, sem a configuração de dependência. Cada face da Lei Maior, por assim dizer, deve ter “voz” e “vez”, como o “ser” e o “dever ser”. Imagem e reflexo, cara a cara diante do espelho, do modo com que se relacionam as fontes formais e materiais do Direito.

As reflexões sobre a Constituição feitas por um Advogado militante no século XIX e por um Juiz Professor no século XX, em um país como a Alemanha, em fases diversas de sua história, podem agregar muito à tomada de decisões no Brasil, em pleno século XXI. Lembremos que a Carta Política vigente é fruto da retomada do regime democrático, após 21 anos. Consagra expectativas dos mais variados grupos, primando pela intervenção do Estado no domínio econômico e pela tutela da liberdade, igualdade e fraternidade, bem como pelo reconhecimento de Direitos Fundamentais de Primeira, Segunda e Terceira dimensão. Assim, podemos apontar como pontos de partida, após contextualizar as falas de Lassalle, Hesse e da Lei Maior brasileira:

  1. A centralidade da Constituição na estruturação social: enquanto projeto de Estado, não apenas de governo, a Constituição, produzida de modo plural e democrático, como ocorrido pelo advento da Assembleia Nacional Constituinte de 1986, apresenta planos não apenas jurídicos, mas políticos, econômicos e culturais, envolvendo questões de cidadania e nacionalidade. Serve de norte ao agir público e privado, como “fiel da balança” às esferas individual, coletiva e transindividual.
  2. As limitações e possibilidades do Direito: por não abranger toda a realidade, focando em aspectos essenciais e de maior relevância, o Direito, assim entendido não apenas o conjunto de regras, mas toda a estrutura jurídica e judicial, especialmente Princípios, Poder Público, Advocacia, Ministério Público e demais atores, prescreve condutas, disciplina relações e propõe mudanças. Porém, tal qual ocorre com a política, escolhas jurídicas, sozinhas, não moldam, por completo, a realidade.
  3. A busca por harmonia entre o “ser” e o “dever ser”: fontes formais e materiais raramente encontram correspondência quando comparados os respectivos planos, cabendo à sociedade civil e às instituições mediar ruídos causados pela dissonância entre discurso e ação. Pluralidade e democracia fazem parte do núcleo da Constituição, prevalecendo a vontade da maioria sobre a das minorias, sempre respeitando-as naquilo que as caracteriza.

A Constituição é a projeção dos fatores reais de poder, dotada, também, de uma força normativa. Não há dúvidas. Ou, pelo menos, não deveria haver. O que difere o texto constitucional do contido nas demais leis? A função principal de elemento de validação de todo o ordenamento jurídico, síntese dos anseios comuns, nos âmbitos social, político, econômico e jurídico. Na Norma Ápice estão os projetos e valores passados, presentes e futuros do Estado, formando um mapa útil em qualquer momento, seja de normalidade ou de exceção.

É preciso, conforme as palavras de Hesse, se fazerem presentes na consciência geral – especialmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional – “não só vontade de poder (Wille zur Macht), mas também vontade de Constituição (Wille zur Verfassung),6para que se converta em força ativa. Inegável o papel do Supremo Tribunal Federal, na estrutura judicial brasileira, de guardião do texto constitucional. Mas não há como deixar de reconhecer o dever de todas e todos de tornar realidade as promessas de 1988, caso a caso, interpretação por interpretação, sem trégua.

Em termos práticos, podemos entender como opções centrais do Constituinte Orginário brasileiro, mesmo após 107 Emendas ao texto:7

  • FORTALECER o Estado Democrático de Direito como meio de assegurar direitos individuais e sociais, além da liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça como valores supremos, seus fins (preâmbulo),
  • REAFIRMAR o compromisso com a construção e manutenção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo),
  • PRIMAR pela harmonia social e pela solução pacífica de controvérsias internas e externas (preâmbulo),
  • EFETIVAR, como valores fundamentais, a soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (art. 1o),
  • GUARDAR a harmonia e a independência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 2o),
  • GARANTIR a igualdade de todas e todos, juntamente com a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, esta atendendo à sua função social (art. 5º , caput, e inciso XXIII),
  • IMPEDIR o retrocesso social das condições de trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput),
  • IMPLANTAR uma ordem econômica pautada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, meio, de modo a garantir a qualquer pessoa uma existência digna, fim (art. 170, caput) e
  • ESTRUTURAR a ordem econômica sobre os Princípios da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor/meio ambiente, redução das desigualdades, busca do pleno emprego e tratamento diferenciado a empresas de pequeno porte brasileiras (art. 170).

Tantos exemplos tornam desnecessárias considerações outras sobre o papel e a relevância do Direito do Trabalho na concretização das promessas do Estado Constituicional e Democrático de Direito brasileiro.8 Tal observação, de evidente simplicidade, diz respeito à adoção de medidas e políticas em geral, inclusive e principalmente para enfrentamento de momentos de crise, como o atual.

Afinal, sabemos que inexiste resposta única em matéria de Direito. Há, contudo, soluções mais adequadas, assim entendidas as de maior aderência ao conteúdo constitucional, não apenas ao texto. Estas são decisões ótimas, a serem almejadas por coerência à ideia de sistema normativo ou, ainda, por consciência histórica. Assim se apresentou nos séculos XIX e XX, na Alemanha, assim creio seguir se dando em pleno século XXI, no Brasil.

1 BASTOS, Aurélio Wander. Prefácio de LASSALLE, Ferndinand. A essência da Constituição. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1998, p. 07.

2 Informações disponíveis em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Konrad_Hesse>. Acesso em: 10 ago. 2020.

3 LASSALLE, Ferndinand. A essência da Constituição. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1998, p. 32.

4 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 09.

5 Ob. cit. p. 09.

6 Ob. cit. p. 19.

7 A mais recente Emenda, no 107, de 02.07.2020, adia as eleições municipais de outubro e os prazos eleitorais em virtude da pandemia do Covid-19. Texto na íntegra disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc107.htm>. Acesso em: 10 ago. 2020.

8 Sobre o tema, essencial a leitura de SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O Direito do Trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

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