Juliete Lima do Ó – Advogada, Mestranda em Direito Social e da Inovação pela Nova School of Law (Lisboa, Portugal) e Especialista lato sensu em Direito material e processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura do Trabalho da Paraíba (ESMAT 13)
Cerca de um ano após a OMS ter classificado a Covid-19 como uma pandemia mundial, cuja doença já foi responsável pela morte de mais de dois milhões de pessoas ao redor do planeta, Portugal, assim como todos os demais países, tiveram que se adaptar à situação de “novo normal” instaurada pela pandemia.
Mesmo o país estando em Estado de Emergência e tendo as suas fronteiras fechadas, não implica que os nômades digitais não possam fixar a sua residência, bem como trabalhar remotamente a partir das terras lusitanas.
Mas, afinal, quem seriam esses nômades digitais? São profissionais que exercem a sua profissão a partir de qualquer parte do mundo, necessitando apenas do seu notebook e de uma boa conexão com a internet. A referência de nômade digital (digital nomad) foi marcada e conhecida pela primeira vez num texto presente no livro Digital Nomad, de Tsugio Makimoto e David Manners, lançado em meados de 1997.
Desde desse tempo, que os autores já vinham debatendo que através dos avanços tecnológicos surgiriam possibilidades de os trabalhadores executarem as suas tarefas a partir de qualquer lugar mundo, usando apenas os dispositivos eletrônicos. Assim, podem laborar para uma (sendo funcionário ou prestador de serviço) ou para várias empresas, atuando como freelancer (são profissionais autônomos que laboram prestando serviço de modo temporário, sem estar vinculado a uma empresa). Apesar de existirem uma grande quantidade de trabalhadores laborando através desse modelo de trabalho nomeado freelancer, ainda há empresas que procuram por nômades digitais para integrar as suas equipes.
Sabendo dessa possibilidade, as empresas globais, sobretudo, da área tecnológica, não hesitam em contratar esses profissionais, isto é, elas até incentivam a contratação, justamente por ter essa mudança de mentalidade empresarial que favorece os cidadãos do mundo afora e que até incentivam a independência dos colaboradores. Vale salientar que os nômades digitais, além de se fixarem em certos países por um período pré-determinado, acabam se moldando à cultura local. Além do mais, levam o seu conhecimento, inteligência e poder de consumo ao país onde escolheram passar a temporada de trabalho, estimulando, assim, a economia local.
Foi pensando nessa nova tendência de trabalho que Portugal passou a empenhar-se em promover a transição para a economia digital. Criou-se, até mesmo, um órgão específico revestido de status ministerial para tratar dessa matéria, o Ministério da Economia e Transição Digital, onde foi aprovado o Plano de Ação para a Transição Digital, estabelecido pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/200, de 21 de abril.[1]
Nesse sentido, já existem alguns hotéis que contam com programas direcionados para estes profissionais que são: a Aldeia dos Capuchos, localizada em Almada, a bela e pacata freguesia de Ericeira, no You and the sea, Czar Lisbon Hotel em Lisboa, Placid Village, no Carvoeiro ou no Algarve Race Resort em Portimão.[2] Todavia, destacamos a vila de Ericeira, que existe atualmente uma considerável concentração de nômades oriundos de diversos países. Pessoas que, por causa da pandemia, lá se estabeleceram com o intuito de conciliar trabalho e lazer, em local onde se pode, após um dia de trabalho, curtir o clima, a natureza e consumir os produtos locais.
Nessa mesma tendência, já foi aberta também a primeira Vila Nómada Digital em Portugal, localizada na Ponta do Sol, na Ilha da Madeira.[3] Gonçalo Hall, mentor da ideia e também nômade digital, comentou para a revista ZAP que o projeto piloto visa “criar uma comunidade de nômades digitais” e ainda pontuou que o país “tem tudo para ser líder”.
Para dar mais credibilidade ao projeto da Vila, o nômade digital Gonçalo Hall, cofundador da Remote Europe, pontou ainda que já avançou com a parceria com a Startup Madeira e o Governo Regional da Madeira, com a finalidade de trazer uma “nova fonte de rendimentos para os negócios locais”, uma vez que os “nômades consomem muito mais e por mais tempo” do que os turistas habituais.
Nesse diapasão, o Governo Regional entendeu que tal iniciativa justificaria o seu envolvimento com as empresas da Startup Madeira, uma vez que a Digital Nomads Village, é um projeto piloto inovador jamais visto em qualquer parte do mundo, inserido no “Digital Nomads Madeira Island”[4] e desenvolvido pela Secretaria Regional da Economia. Ademais, o projeto é fruto de um evento que reuniu mais 800 participantes sobre o trabalho remoto – “Future of Work Portugal”, realizado em Setembro do ano passado.
Atualmente, já existem 60 nômades digitais instalados na Ponta do Sol, município português localizado na Ilha da Madeira, onde, somados à população restante, já vivem 250. Se não fosse a pandemia e o fato de as fronteiras ainda estarem fechadas, possivelmente haveria ainda mais pessoas na região, uma vez que existem 4.376 inscritos a instalar-se na Vila Nómada Digital na Madeira.[5]
Todavia, os nômades digitais encontrarão na Vila um ambiente de trabalho voltados para eles, contendo mesas de trabalho, acesso gratuito a internet das 8h às 22h[6] e um local para a realização de eventos de negócio e de socialização entre os participantes do projeto. Entretanto, a hospedagem não estará disponibilizada no projeto, mas se escolherem a Ilha da Madeira terão acesso a hotéis, pousadas, alojamentos locais a preços acessíveis.
Vale salientar que, na Europa, o primeiro visto para nômades digitais foi aprovado na Estónia logo no início da pandemia. O novo Digital Nomad Visa[7] foi criado em junho de 2020, com autorizações de residência pelo prazo de até 1 (um) ano para os nômades que tenham um salário mínimo mensal de 3.000€. Após o deferimento do primeiro visto, o Governo estónico começou a receber dezenas de pedidos de visto provenientes dos Estados Unidos, Canadá, Rússia e países da Ásia.
Em julho do ano passado, a Georgia foi o segundo país europeu a criar o programa especial chamado “Remotely from Georgia”[8], com a finalidade de atrair nômades digitais de 95 países, por períodos iguais ou superiores a 180 dias. Para tanto, exige-se que estes tenham um rendimento mínimo mensal de 2.000€.
Portugal, atualmente, possui um visto direcionado aos nômades digitais[9], que pode ser utilizado pelos freelancers e empresários. Após a concessão do visto podem ficar no país por um período maior que 1 (um) ano com direito a prorrogação do visto.
Nesse sentido, o Secretário de Estado para a Transição Digital, André de Aragão Azevedo, comentou em uma entrevista a Eco, que já foi apresentado o programa e-Residency (“um conceito de cidadania virtual assente em serviços públicos desmaterializados que passam a estar disponíveis para os estrangeiros”)[10] que permitirá que os cidadãos não residentes possam gozar dos serviços públicos nacionais, como a criação de empresa com Número Fiscal Português (equivalente ao CNPJ do Brasil) ou abertura de contas bancárias.
O intuito é que esse programa seja inovador e que vá além do programa conhecido pela Estónia, mesmo que ainda implique o deslocamento do nômade digital a um consulado ou a uma embaixada, ressaltou André de Aragão Azevedo. Entretanto, o fator diferencial que o Governo pretende implementar, mas que requer muita complexidade em concluir o programa é fazer tudo de forma digital, mas para isso “implica um trabalho técnico de desenvolvimento de ferramentas tecnológicas que deem garantias de segurança”, acrescentou o secretário de Estado para a Transição Digital. Assim, a Startup Portugal, está promovendo, bem como desenhando o e-Residency, onde a finalidade é atrair mais de 5000 nômades digitais, empreendedores e investidores estrangeiros.[11]
Ademais, de acordo com o site Nomadlist.com[12], verifica-se que, no ranking dos locais mais desejados pelos nômades digitais, Lisboa ocupa o primeiro lugar e Ericeira já chegou a estar entre os três primeiros no ano passado.
Desse modo, Portugal (sobretudo no interior) enfrenta um grande problema demográfico, com população envelhecida e forte êxodo dos jovens para outros países. A chegada de nômades digitais – atraídos muitas vezes pelo clima, natureza e pelo custo de vida acessíveis – pode gerar impactos bastante positivos para as economias locais.
Para tanto, não existe qualquer legislação específica para tal categoria na seara trabalhista, e por essa razão a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social de Portugal, Ana Mendes Godinho, confirmou que o Governo apresentou, bem como discutiu com os parceiros sociais “uma base do Livro Verde[13] (que já fora finalizado no final do ano de 2020) sobre o futuro do trabalho, que identifica várias áreas de desenvolvimento e de necessidade de regulação”. Na conferência de imprensa nomeada ‘O Futuro do Trabalho – Garantir que Ninguém é Excluído’, organizada pela agência Lusa, a ministra, mencionou, ainda, que uma das regulações que se encontram em pauta e que é considerada importante são as questões de “teletrabalho e das relações laborais do trabalho em plataformas digitais chegando até ao enquadramento do trabalho dos chamados nômades digitais.”[14]
Essa será uma das grandes prioridades para o primeiro semestre de 2021 da presidência portuguesa da União Europeia, conforme foi dito no pronunciamento da Ministra do Trabalho após Reunião da Comissão Permanente de Concertação Social.[15][16]
Notas:
PORTUGAL. Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020. Diário da República n.º 78/2020, Série I de 2020-04-21 Disponível em: https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/132133788/details/maximized – acesso em: 08/03/2021
Livro Verde: são documentos publicados pela Comissão Europeia destinados a promover uma reflexão a nível europeu sobre um determinado assunto especial. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt acesso em: 08/03/2021.
Artigo 9.º 1 da Lei n.º 108/91 – Compete à Comissão Permanente de Concertação Social, em especial, promover o diálogo e a concertação entre os parceiros sociais, contribuir para a definição das políticas de rendimentos e preços, de emprego e formação profissional. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/58853699/201704192334/58928872/diploma/indice acesso em: 08/03/2021
Referências:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Freelancer – acesso em: 08/03/2021
https://www.womenshealth.pt/nomadas-digitais-teletrabalho-por-opcao-moda/living/399867/ – acesso em: 08/03/2021
https://zap.aeiou.pt/primeira-vila-nomada-digital-portugal-380150 – acesso em: 08/03/2021
https://digitalnomads.startupmadeira.eu/ – acesso em: 08/03/2021
https://www.youtube.com/watch?v=pydwGDsMKvA&t=15s – acesso em: 08/03/2021
https://www.dnoticias.pt/2021/2/17/251071-primeira-digital-nomad-village-da-madeira-abre-amanha-na-ponta-do-sol/ – acesso em: 08/03/2021
https://viagens.sapo.pt/viajar/noticias-viajar/artigos/a-primeira-aldeia-nomada-digital-da-europa-encontra-se-numa-ilha-em-portugal – acesso em: 08/03/2021
https://e-resident.gov.ee/nomadvisa/ – acesso em: 08/03/2021
https://agenda.ge/en/news/2020/2654 – acesso em: 08/03/2021
https://www.etiasvisa.com/etias-news/digital-nomad-visas-eu-countries – acesso em: 08/03/2021
https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/noticia?i=e-residency-e-balcao-do-empreendedor-apresentados-no-1-dia-da-semana-digital – acesso em: 08/03/2021
https://nomadlist.com/ acesso em: 08/03/2021
[1]] PORTUGAL. Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020. Diário da República n.º 78/2020, Série I de 2020-04-21. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/132133788/details/maximized acesso em: 08/03/2021
[2]]Disponível em: https://www.womenshealth.pt/nomadas-digitais-teletrabalho-por-opcao-moda/living/399867/ acesso em: 08/03/2021
[3]]Disponível em: https://zap.aeiou.pt/primeira-vila-nomada-digital-portugal-380150 acesso em: 08/03/2021
[4]]Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pydwGDsMKvA&t=15s acesso em: 08/03/2021
[5]] Disponível em: https://www.dnoticias.pt/2021/2/17/251071-primeira-digital-nomad-village-da-madeira-abre-amanha-na-ponta-do-sol/ acesso em: 08/03/2021
[6]] Disponível em: https://viagens.sapo.pt/viajar/noticias-viajar/artigos/a-primeira-aldeia-nomada-digital-da-europa-encontra-se-numa-ilha-em-portugal acesso em: 08/03/2021
[7]] Disponível em: https://e-resident.gov.ee/nomadvisa/ acesso em: 08/03/2021
[8]] Disponível em: https://agenda.ge/en/news/2020/2654 acesso em: 08/03/021
[9]]Disponível em: https://www.etiasvisa.com/etias-news/digital-nomad-visas-eu-countries acesso em: 08/03/2021
[10]]Disponível em: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/noticia?i=e-residency-e-balcao-do-empreendedor-apresentados-no-1-dia-da-semana-digital acesso em: 08/03/2021
[11]] Idem.
[12]] Disponível em: https://nomadlist.com/ acesso em: 08/03/2021
[13]] Livro Verde: são documentos publicados pela Comissão Europeia destinados a promover uma reflexão a nível europeu sobre um determinado assunto especial. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt acesso em: 08/03/2021.
[14]]Disponível em: https://www.jn.pt/nacional/consulta-sobre-mudancas-nas-leis-laborais-atirada-para-2021-13074948.html acesso em: 08/03/2021
[15]] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AQN54kNmEGQ&feature=emb_logo
[16]] Artigo 9.º 1 da Lei n.º 108/91 – Compete à Comissão Permanente de Concertação Social, em especial, promover o diálogo e a concertação entre os parceiros sociais, contribuir para a definição das políticas de rendimentos e preços, de emprego e formação profissional. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/58853699/201704192334/58928872/diploma/indice acesso em: 08/03/2021
Muito bom texto, parabéns Dr.
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