Adriane Reis de Araujo – Procuradora Regional do Trabalho. Especialista em Relações Sindicais (OIT), Mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), Doutora em Direito do Trabalho (Universidade Complutense de Madri), Presidenta do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (2018) e Vicepresidenta (2019), Gerente do Grupo de Trabalho de Gênero da Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho – Coordigualdade (2017/2018), Secretária Adjunta da Secretaria de Cooperação Judiciária Internacional Trabalhista do Ministério Público do Trabalho (2019) e Coordenadora Nacional da Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho – Coordigualdade (2020).
Recentemente foi aprovado no Senado Federal brasileiro o PLC 130/2011, o qual aguarda sanção presidencial. Esse projeto de lei penaliza, com maior gravidade, as empresas que praticarem a discriminação salarial em prejuízo às mulheres, prevista no art. 373-A, III, da CLT, ou seja, veda considerar sexo como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional. Essa previsão normativa é um desdobramento do art. 5º, caput, e art. 7º, XXX, da Constituição da República de 1988, que proíbe as diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
O Brasil apresenta uma diferença salarial entre os gêneros persistente. Segundo o IBGE, em 2020, a remuneração média do homem branco era 22% superior à remuneração média da mulher branca. Quando a comparação se faz em relação à mulher negra, a diferença triplica, ou seja, atinge o patamar de 66%. Isso se deve sem dúvida à maior dificuldade de acesso dessas mulheres a determinadas vagas de trabalho, determinados setores da economia ou mesmo ao contrato formal de trabalho. Há ausência de dados sobre as diferenças salariais para mulheres com deficiência, mulheres trans e imigrantes, entre outras.
Esse cenário é efeito da divisão sócio-sexual do trabalho, conceito cunhado pela professora da UNICAMP Claudia Mazzei (O trabalho duplicado), que o reconhece como um fenômeno histórico e social, em que o trabalho feminino e trabalho masculino são categorias importantes, não em função da natureza técnica de suas atividades, mas em função das relações de poder e dos interesses que os encobrem, ao qual devem ser agregados fatores como raça, origem e classe social. O fenômeno da divisão sócio-sexual do trabalho, a ausência de políticas públicas, serviços e benefícios assistenciais voltados à realidade das múltiplas mulheres tem resultado na feminização da pobreza e realimentado o ciclo de pobreza ao empurrar as mulheres para ocupações mais precárias, informais e pior remuneradas.
Para além do fato de que “sexo deve ser lido como “gênero”, a norma em questão não resolve o problema estrutural da discriminação contra as mulheres na medida em que restringe seu foco ao contrato formal de trabalho em vigor dentro das empresas. Ainda que restrita, essa norma deve ser acolhida como um avanço, pois amplia as hipóteses legais de configuração da discriminação salarial, antes prevista no art. 461 e parágrafos da CLT, conforme alteração promovida pela Lei 13.467/2017, bem como o valor da multa respectiva. Enquanto o art. 461 da CLT somente reconhece as diferenças salariais dentro do mesmo estabelecimento e em estritos intervalos temporais, a regra trazida pelo PLC 130/2011 amplia as hipóteses de discriminação de gênero para quaisquer situações em que essa variável seja determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional. Isso permite a análise mais ampla de toda a organização produtiva, reconhecendo por exemplo situações de discriminação salarial em casos em que os setores designados, exclusiva ou majoritariamente, para mulheres tiverem patamar remuneratório mais baixo, menos oportunidade de benefícios e bônus no desempenho da atividade produtiva ou se tiver menos oportunidades de ascensão na carreira.
A norma do PLC 130/2011, além do mais, trata de um aspecto fundamental para reduzir a desigualdade salarial entre os gêneros masculino e feminino que são as oportunidades de formação profissional. A existência de critérios de seleção ou de participação nas formação profissionais que exijam maiores sacrifícios pessoais ou familiares para as mulheres, ou seja, sejam mais difíceis ou prejudiciais a elas injustificadamente, podem revelar uma situação de discriminação indireta. Há discriminação indireta quando normas impessoais ou objetivas têm um resultado mais gravoso para determinado grupo de pessoas, agravando seu estado de maior vulnerabilidade. Na discriminação indireta, há fraude à lei, usa-se irregularmente a autonomia privada, enquanto na discriminação direta, há abuso de direito, ou seja, exerce-se, irregularmente, o direito (RESP 149-PI). Assim, as empresas também deverão revisar seus métodos de escolha e participação em cursos de capacitação, assim como devem fazer para definir a remuneração de determinadas funções e as possibilidade de ascensão profissional.
Por fim, o PLC 130/2011 pretende evidenciar a gravidade da situação de discriminação salarial de gênero por meio da imposição do pagamento de uma multa em favor da empregada correspondente a cinco vezes a diferença verificada em todo período da contratação (acrescenta § 3º ao art. 401 da CLT), ou seja, valores superiores àqueles previstos no art. 461, § 6º, da CLT que era no valor de 50% (cinquenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Para que essa norma tenha efetividade, será imprescindível que as empresas adotem a transversalidade para análise de seu organograma, remuneração e oportunidade nas carreiras e cursos de formação. A transversalidade, como técnica, se operacionaliza pela realização de um relatório, cuja necessidade é verificada diante do caso concreto. Este relatório deve avaliar dados separados por gênero e verificar se há diferenças entre os grupos comparados no que se refere a direitos, acesso a recursos ou participação nas decisões. Lembrando sempre que a Lei Geral de Proteção de Dados não impede em nenhum momento a coleta de dados dessa natureza para o cumprimento de obrigações legais. Ao contrário, essa lei traz em si embutida a autorização do empregador ou empregadora para a coleta dos dados pessoais dessa natureza a fim de cumprir o escopo legal, como no caso de se verificar que não há discriminação de gênero seja na remuneração, seja na formação ou nos processos de promoção na carreira. Se a resposta revelar resultados díspares, deve-se avaliar o impacto potencial da proposta em função das diferenças constatadas (relatório de impacto de gênero).
As questões analisadas no relatório são: a) acesso a recursos, em seu sentido mais amplo, para abranger tempo, espaço, informação, remuneração, poder político e econômico, educação e formação, trabalho e carreira profissional, oportunidades de acesso e novas tecnologias, entre outros; b) nível de participação e representação nos cargos de decisão; c) influência sobre a divisão sexual, racial, de classe, deficiência, sobre as atitudes e comportamentos dos integrantes dos grupos e o valor que se imputa aos papéis sociais ou às características individuais; d) suficiência do nível de reconhecimento de direitos para compensar a discriminação direta ou indireta, o nível de respeito aos direitos humanos e os obstáculos no acesso à justiça e aos procedimentos de tutela e garantia antidiscriminatória. Finalmente este relatório deve indicar critérios de ações para contribuir a eliminar as desigualdades e promover a igualdade.
Em conclusão, a diferença salarial entre os gêneros é injustificável e deve ser reconhecida como uma forma de violência estrutural de gênero, que pode ser reproduzida concretamente na empresa. Alegações empresariais que pautam a diferença salariais no perfil da pessoa contratada ou exclusivamente no currículo, sem que se demonstre a relação entre a formação curricular e a qualificação imprescindível para o exercício da função não podem ser aceitas. Falas que dificultam a permanência da mulher ou a ascensão na carreira com base em suas responsabilidades familiares, entre outras situações, também devem ser refutadas. Incumbe à empresa pensar de maneira inovadora e criativa instrumentos facilitadores para impulsionar o mercado de trabalho da mulher, como também compatibilizar as responsabilidades familiares e profissionais destas. Alguns exemplos são a extensão da licença maternidade, a ampliação das hipóteses de trabalho remoto, a possibilidade de horários mais flexíveis ou até mesmo apoio às mulheres para formação de lideranças femininas.
Certamente, a sanção presidencial incentivará o cumprimento da norma que veda considerar gênero (sexo) como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional. E a fiscalização deverá estar atenta aos casos concretos, tendo em mira afastar qualquer tipo de discriminação, seja direta ou indireta.