MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.046/2021 – PRIMEIRAS LINHAS (deja vu ou remake)

Andrea Pasold1

Oscar Krost2

Breve leitura da Medida Provisória n. 927/2020 permite encontrar, de plano, ao menos um mérito: o meio normativo adotado. Raras vezes uma medida excepcional foi manejada pelo Executivo, em matéria trabalhista, sem que isso atraísse justas críticas e questionamentos sobre a relevância, urgência e o respeito à separação e harmonia entre os Poderes. Claro que todo provisório traz o temor de um definitivo, mas não é da essência da origem da publicação da medida em questão, baseada em um estado que não será permanente.

Fora isso, a cada artigo, verificam-se sucessivas e reiteradas propostas austeras, sob intenção de preservar emprego e renda. Preservar empregos com o sacrifício dos principais direitos representa matar o paciente, sob a explicação de que pelo menos morrera curado, como faziam os médicos na Idade Média. O eterno conflito entre meios e fins, mas sem o tempo ou a atmosfera necessários para amadurecer ideias.”

Sim, já vimos este filme antes. Alguns, em 22 de março de 2020,3 outros, dias depois. Deja vu ou remake. Mas há uma diferença, nada desprezível e de difícil assimilação: a forma adotada.

Se há um ano, fomos supreendidos com a disseminação da Covid-19 e com suas nefastas consequências, exigindo a adoção emergencial de medidas de enfrentamento, hoje isto não mais se justifica. Houve tempo e experiência dos 03 Poderes em todos os níveis federados e da sociedade civil, para, por tentativa e erro, experimentar a validade ou não das hipóteses apresentadas na norma de exceção.

A Medida Provisória nº 927/2020, cuja constitucionalidade foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal, de caducidade ocorrida em 19 de julho, ressurge sob numeração diversa, 1.046, em pleno 27 de abril de 2021. Não há relevância e urgência em se tratando de conteúdo há meses em debate e, inclusive, já submetido ao devido processo legislativo. Aliás, a caducidade ocorreu exatamente porque o projeto de conversão, como tantos outros, trazia inúmeras alterações legislativas totalmente estranhas ao objeto da Medida Provisória. De lá para cá, nada foi proposto e não houve Decreto Legislativo para regulamentar as relações jurídicas havidas de forma específica com base na MP 927, quanto aos efeitos posteriores, devendo tudo, em tese, ser refeito e adequado, como se poderia ter feito desde sempre, conforme a legislação ordinária, especialmente no que diz respeito a banco de horas, teletrabalho e férias.

Insistir na flexibilização de textos legais vigentes, sob justificativa de permitir a manutenção de emprego e renda em uma situação de calamidade pública é prática de resultados notoriamente insuficientes para os fins declarados. Traduz, como sabido, mais uma onda de dilapidação do Direito do Trabalho,4 bode expiatório e responsável por toda as mazelas e desigualdades que caracterizam o sistema econômico.

Se o teletrabalho já se encontra disciplinado, ainda que sujeito a críticas, inclusive de ordem constitucional, regido pela CLT, arts. 62, inciso III, e 75-A a E, desde 2017, o que justifica o art. 3o da Medida Provisória alterar prazos e requisitos para sua implementação, inclusive com algumas impropriedades manifestas?

Matéria cujas particularidades não apenas podem, mas devem ser moldadas pela negociação coletiva, dentro de parâmetros constitucionais e isonômicos. Há mais de um ano já se disse que democracia e assunção de responsabilidades eram “a chave da distribuição das perdas e da adoção do protagonismo na tomada de decisões”, não havendo “mágica ou milagre, mas necessidade de assegurar a legitimidade de medidas austeras e extremas que serão adotadas.5

E o que falar da suspensão, pelo art. 16, da obrigatoriedade de realização de exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, salvo dos trabalhadores à distância, e, pelo parágrafo 1o, dos trabalhadores da área da saúde? Prevenção, profilaxia e atenção, práticas que já deveriam fazer parte do vocabulário nacional em tempos de pandemia, mas que consciente ou inconscientemente teimam em não integrá-lo.

Também há um ano, permitir o extrapolamento da jornada do profissional da saúde no regime 12×36, suprimindo seu intervalo interjornadas a 24 horas, criando assim novo regime de duração do trabalho, parecia excessivo e temerário, mas naquele tempo (que parece de mais de século, porque o tempo se arrasta desde então) a expectativa (ingênua) era de que se tratasse realmente de algo urgente e provisório, e que os profissionais da saúde poderiam suportar porque se tratava de um bem maior. Hoje, submeter esses mesmos profissionais, já exaustos e doentes (física e mentalmente), aos mesmos parâmetros, sem qualquer perspectiva de que um dia possam fruir da folga compensatória (porque sim, mantém-se a possibilidade de compensação em vez de pagamento), é perverso, para dizer o mínimo.

Considerando as mesmas medidas, sem melhora na economia no período, como imaginar resultado diferente?

Perdoem-nos pela repetição, pela “batida na mesma tecla” e por insistirmos em propor o debate, com a tomada de decisões refletidas e racionais. Há coisas que aparentemente não mudam, para o bem e para o mal. Cabe a cada uma e a cada um de nós escolher as que fazem sentido.

1 Juíza do Trabalho (TRT12), Professora, Mestre em Ciência Jurídica, Especialista em Direito Civil, ciradora de conteúdo do podcast drops de direito do trabalho, do canal do youtube evoluindo o direito do trabalho e do site http://www.evoluindodireitodotrabalho

2 Juiz do Trabalho (TRT12), Professor, Mestre em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB), Pós-Graduando em Relaciones del Trabajo y Sindicalismo pela Facultad Latinoamericana de Ciências Sociales (FLACSO/Argentina), Membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA) e autor do blog <https://direitodotrabalhocritico.com/>.

3 PASOLD, Andrea; KROST, Oscar. Medida Provisória n. 927 – primeiras linhas, disponível em <https://www.evoluindodireitodotrabalho.com/publicacoes-2>. Acesso em: 28 abr. 2021.

4 ALMEIDA, Almiro Eduardo de; KROST, Oscar. Direito do Trabalho de exceção ou exceção ao Direito do Trabalho?. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Florianópolis, no 32, 2020, p. 221-38, disponível em <https://portal.trt12.jus.br/sites/default/files/2020-11/Revista%20do%20Tribunal%20do%20Trabalho%20do%20TRT12%20n32.pdf>, desde novembro/2020.

5 KROST, Oscar. A força do coletivo, disponível em <https://www.evoluindodireitodotrabalho.com/publicacoes-2>, desde abril/2020.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

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