
Ana Paula Silva Campos Miskulin – Juíza do Trabalho (TRT15), Mestre em Direito do Trabalho (USP), Especialista em Direito e Processo do Trabalho (UFG), Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão: O trabalho além do Direito do Trabalho (USP), Professora e Mãe de três crianças, Autora do livro “Aplicativos e Direito do Trabalho: a era dos dados controlados por algoritmos” (Juspodivm), Coordenadora de obras sobre Direito Processual do Trabalho e Tecnologia
Este ensaio tem por objetivo demonstrar que os debates legislativos em torno da gig economy não podem restringir-se à discussão em torno da existência ou não de vínculo empregatício entre o trabalhador e a plataforma digital.
A gig economy situa-se num contexto muito mais amplo, cujas implicações são interligadas com questões concorrenciais, fiscais e sociais, todas indispensáveis ao atingimento da segurança jurídica na economia digital. A origem da gig economy está ligada a trabalhos artísticos, como dos músicos de clubes de jazz da década de 1920 (GREENHOUSE, 2019) e hoje se popularizou como uma referência ao trabalho por meio de aplicativos que, segundo De Stefano (2016), pode ser realizado de forma totalmente on-line (crowdwork) ou em uma localização geográfica determinada (trabalho sob demanda).
A gig economy integra uma das facetas da quarta revolução industrial, a qual se distingue das anteriores não somente pelo advento de novidades tecnológicas, como a inteligência artificial, a internet das coisas, entre outras, mas também principalmente em razão da fusão de tecnologias, com a interação nos domínios físicos, digitais e biológicos (SCHWAB, 2016). A convergência entre a internet e as tecnologias de comunicação e informação aprofundou o processo de transformação pela qual as organizações empresariais já vinham passando nas últimas décadas e nesse contexto, surgiram as plataformas digitais, cujo modelo de negócios se espraiou em âmbito global e se expandiu por diversos segmentos econômicos, tais como mercadorias, serviços, dinheiro, comunicação, entretenimento e informação (SCHMIDT, 2017).
A tendência, especialmente após o advento da pandemia, é que as empresas que ainda não o fizeram migrem para a economia digital, de modo que não faz sentido a pretensão de algumas empresas proprietárias de plataformas receberem tratamento jurídico diferenciado das empresas que operam na economia tradicional, pois todas integram um mercado único. Discussões relacionadas à saúde e segurança dos trabalhadores, remuneração mínima, limite de jornada e negociação coletiva são indispensáveis e deveriam preceder a questão de existir, ou não vínculo empregatício, mas, para além disso, é imprescindível que os debates legislativos foquem a definição de papéis, obrigações e responsabilidades de todos os stakeholders dessa relação para atingir a segurança jurídica como uma exigência para a estabilidade nas relações jurídicas (DUARTE, 2020).
É certo que nenhuma atividade pode ser infensa à regulação (FREITAS, 2020) e essa necessidade inclusive já foi reconhecida desde a mais alta corte da Justiça do Trabalho brasileira (BRASIL, 2020) até o editorial do Financial Times (2020). O desafio agora é como dar um primeiro passo nessa direção. Hoje, um dos maiores problemas por trás dessa relação jurídica trilateral situa-se na ausência de transparência em relação às condições contratuais ditadas e alteráveis unilateralmente pelas empresas proprietárias das plataformas, já que apenas elas são detentoras dos dados com os quais são traçadas as suas políticas de funcionamento e as técnicas de gestão conhecidas como gerenciamento por métricas (CHOUDARY, 2018).
Critérios obscuros para fixar preços – com base no nível de satisfação do cliente ou o fato desse contar com um celular pouca bateria (ROSEMBLAT E CALO, 2017) – ou para condicionar a permanência do trabalhador na plataforma, como taxas mínimas de aceitação e cancelamento, interações bem sucedidas por unidade de tempo ou reputação (CHOUDARY,2018) são práticas aceitáveis desde que sejam devidamente esclarecidas e não utilizadas de forma velada, sem que as pessoas saibam que há algoritmos ditando as suas escolhas.
Muitos têm sido os debates em torno da classificação correta dos trabalhadores como empregados, autônomos, autônomos economicamente dependentes ou mesmo intermitentes e há também diversos projetos de lei aprovados ou em discussão nos Estados Unidos, na América do Sul ou no Brasil, nos quais se especificam direitos trabalhistas que devem ser aplicáveis aos trabalhadores. Exemplo disso foi a recente discussão na Califórnia, a respeito da Proposta 22, aprovada em dia 3 de novembro para que as plataformas sejam excluídas do âmbito de aplicação da AB 5, reconhecendo alguns benefícios aos trabalhadores, porém sem o reconhecimento da condição de empregados (CALIFORNIA STATE, 2020).
No Brasil, do mesmo modo, apenas em 2020, foram apresentadas mais de 36 propostas legislativas, as quais se somaram a outras de 2018 e 2019, totalizando mais de 60 projetos de lei sobre o assunto (DIAP, 2020). Esses debates legislativos são importantes, mas, para além da discussão do vínculo empregatício, é importante esclarecer como a legislação deve incidir em outros domínios, tais como o regime de responsabilidade, a proteção dos participantes, os impactos no mercado laboral e as obrigações fiscais, que inclusive foram citados no documento “Uma agenda europeia para a economia colaborativa” (UNIÃO EUROPEIA, 2017) e que terão implicações no direito concorrencial, tributário e social.
Referências Bibliográficas
* BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho, 4ª Turma, Recurso de Revista n° TST-AIRR-10575- 88.2019.5.03.0003, rel. Alexandre Ramos, DJE 10.09.2020. CALIFORNIA STATE. Proposition 22, App-based drivers as contractors and labor policies initiative. 2020. Disponível em: https://ballotpedia.org/California_Proposition_22,_AppBased_Drivers_as_Contractors_and_Labor_Policies_Initiative_(2020). Acesso em 08 dez. 2020. CHOUDARY, S. P. The Architecture of digital labour platforms: policy recommendations on platform design for worker well-being. International Labour Office, 2018.
* DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ASSESSORIA PARLAMENTAR. Trabalhadores em aplicativos e a a regulamentação de direitos. Jul. 2020. Disponível em: https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/89927-trabalhadores-em-aplicativose-a-regulamentacao-de-direitos-no-congresso-nacional. Acesso em 08. Dez. 2020.
* DE STEFANO, V. The rise of the “just-in-time work-force”: on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”. Conditions of work and employment series, n. 71, 2016.
* DUARTE, R. R. F. A segurança jurídica no Direito e Processo do Trabalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
* FINANCIAL TIMES. Uber and Lyft should treat drivers as employees. Ago. 2020. Disponível em: https://www.ft.com/content/8adf4de7-90e9-4304-aa6e-71d652946e80. Acesso em 08 dez. 2020.
* FREITAS JUNIOR, Antonio Rodrigues; On demand: trabalho sob demanda em plataformas digitais. Belo Horizonte: Arraes, 2020.
* GREENHOUSE, S. Beaten down, worked up. The past, present and future of american labor. New York: Alfred A. Knopf, 2019.
* ROSEMBLAT, A.; CALO, R. The taking economy: Uber, information and power. Columbia Law Rewiew, 9 março 2017, p. 1623-1690.
* SCHIMIDT, F. A. Mapping the Political Challenges of Crowd Work and Gig Work. Good Society – Social Democracy, 2017.
* SCHWAB, K. A Quarta Revolução Industrial. Tradução de Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.
* UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu, de 15 de junho de 2017, sobre uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa (2017/2003(ΙΝΙ)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2017-0271_PT.html. Acesso em 08 dez. 2020.
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