Nirsan Grillo Gomes Dambrós – Mestranda em Sociologia das Organizações e do Trabalho; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade de Lisboa; nirsangrillodambros@gmail.com; @omundodolabor
O trabalho tem sofrido uma série de transformações nos últimos anos, nomeadamente com as novas Tecnologias de Informação e Comunicação que emergem a partir dos avanços da chamada Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial (Tecnológica), que só é chamada assim porque revolucionou, inicialmente, o processo industrial e se espraiou para outras esferas da sociedade. As mudanças são enormes no trabalho, sobretudo quando identificamos um movimento de alastramento das formas “atípicas” de trabalho que são maquiadas de “trabalho empreendedor” nas inúmeras e cada vez mais poderosas, plataformas digitais. Tudo isso em um contexto de capitalismo global, que favorece o acesso a uma massa de trabalhadores e trabalhadoras sobrante e “disposta” (por necessidade e por questões de oferta e de demanda) a vender sua força de trabalho a valores reduzidos.
No entanto, pensar o mundo do trabalho do século XXI, sob a ótica materialista, requer um olhar crítico que vai além das transformações estruturais do trabalho, que de certa forma, são evidentes. Importa pensar nos aspectos intrínsecos ao próprio sistema capitalista e na supremacia da ideologia neoliberal, que favorecem a imposição de diversos modos de dominação que objetivam, utilizando uma expressão de Dardot e Lavali, a formação de um “sujeito neoliberal” e a conservação do sistema. Importa compreender as relações que se constroem nesse enquadramento, baseadas em contradições e forças que atuam contrariamente, em constante processo de mutação para a construção de uma realidade concreta. Em todos esses aspectos, a ideologia é um elemento voraz que parece ser um dos componentes centrais para o processo de aumento da taxa de exploração, ao passo que permite e cria condições para a “captura da subjetividade do trabalho vivo pelos valores-fetiches do capital”ii, transformando sobremaneira a vida dos sujeitos.
Historicamente, podemos considerar que há uma espécie de relação simbiótica entre capitalismo e ideologia, em que esta se vincula inicialmente à retórica empresarial e perpassa a esfera do trabalho, atuando no imaginário social. De fato, é possível identificar uma repetição de práticas capitalistas muito antigas no capitalismo recente, havendo apenas uma espécie de “atualização” dessas práticas, especialmente a partir da instrumentalização do trabalho por máquinas. Nesse sentido, o capital não parece estar alheio a um movimento pró-ativo de metamorfose dos processos produtivos, das modalidades laborais e claro, das relações de trabalho que são empurradas para dentro dessa onda de transformações. Não está alheio, mas aliena. No mundo do trabalho contemporâneo, sobretudo no capitalismo de plataformasiii, sob o signo do “empreendedorismo”, o novo léxico utilizado é eivado de ideologia e funciona como um grande aliado ao capital para a “captura das subjetividades” dos sujeitos. O fetichismo presente nas dimensões subjetivas das relações de trabalho passa a ser assimilado pela classe trabalhadora através dos discursos e incorporado em suas práticas, levando, de forma ideológica e “alienante”, ao atendimento dos interesses do capital em detrimento dos interesses dos próprios trabalhadores.
Esse processo é facilitado, em grande medida, pelo que Poleseiv chama de força “alheia” e incontrolável do capital, que possibilita a autoalienação e uma situação de autoexploração, em que o trabalhador impõe a si próprio uma jornada de trabalho extenuante de modo a atender às demandas capitalistas. Assim, o capital consegue atuar nas subjetividades não apenas da classe trabalhadora mas da sociedade como um todo, de modo a criar mecanismos de justificação para a superexploração. Essa condição é facilmente identificada nas novas modalidades de trabalho intermediadas por plataformas digitais.
Mesmo assim, valendo-se de uma condição de “crise estrutural do capital”v, com diversos problemas no campo do trabalho, essas plataformas continuam a atrair milhares de trabalhadores e trabalhadoras, tamanho o seu poder de cooptação e encantamento das massas, na medida em que se utilizam de um forte discurso ideológico pautado na ideia de “empreendedorismo”, não passando de eufemismo para “autoemprego” e “trabalhado precário”. Na prática, uma significativa parcela da classe trabalhadora é direcionada para as novas modalidades de trabalho subordinado que mascaram a condição de assalariamento e transferem aos trabalhadores todos os riscos, custos e gerenciamento (subordinado) do trabalho, despojados de seus direitos mínimos, sem regulamentação condizente ou qualquer proteção estatal. Os “empreendedores-de-si-mesmos”, “reduzidos à condição de existência de qualquer outra mercadoria”vi, não têm outra alternativa a não ser se submeterem ao intenso controle (algorítmico) e subordinação às plataformas que, na prática, muitas vezes significa trabalhar muito e ganhar pouco. Passam a fazer parte de uma classe cada vez mais fragmentada, na medida em que se não são reconhecidos formalmente (e não se reconhecem) como classe trabalhadora, são empreendedores (com muitas aspas) numa selva digital onde prevalece o modelo social “darwinista de luta de todos contra todos”, no qual se encontram condições que produzem insegurança em todos os níveis hierárquicos de um “exército de reserva de mão-de-obra docilizado pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego”.vii
Na protoforma do capitalismo, Marx já apontava que “com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”viii,em que numa relação inversa à grandeza da força produtiva do trabalho reduz o trabalhador à condição de mercadoria e o empobrece até chegar à condição de máquina. Essa constatação continua a ser válida nas sociedades capitalistas da contemporaneidade. Especialmente na época em que vivemos, a qual Byung Chul-Han chamou de “sociedade do cansaço” ou “sociedade do desempenho”ix, na qual as palavras de ordem são as motivacionais, as otimistas e as afirmativas que compelem a classe trabalhadora para a atividade “empreendedora”. O sujeito de desempenho, segundo Han, deve ser um empreendedor de si mesmo, desvinculando-se da negatividade do outro. Crises e negativismo devem ser banidos de sua perspectiva, não havendo espaço para esmorecimento. Ou seja, deve ver problemas como oportunidades para empreender, sem significar necessariamente “abrir uma empresa”, mas assumir certas características que se associam a uma atitude empreendedora. O sujeito precisa estar apto aos interesses do capital, sendo eficiente, rápido, motivado e produtivo. E assim, “o sujeito de desempenho continua disciplinado”, um fiel agente do capitalismo, articulado com os interesses do sistema. Giovanni Alvesx ainda acrescenta: “exige-se competência e resiliência, tendo em vista que as pessoas humanas-que-trabalham precisam se dispor subjetivamente a aceitar a “redução” do tempo de vida a tempo de trabalho”.
Assim, conforme valoriza o capital, “em proporção direta” o trabalhador desvaloriza a si próprio, pois é atingido em suas subjetividades e arrastado para uma atitude “empreendedora”, passando a atuar numa lógica produtivista. A ideologia torna-se crucial para o convencimento e interiorização dessa lógica em corpos e mentes, impondo um modo de existir e de trabalhar “empreendedor”. A partir desse contexto, o trabalhador se vê como “empresário” e não como parte da classe trabalhadora, vivendo e enfrentando as mesmas dificuldades e situações no cotidiano laboral, o que acaba por favorecer o processo de competição e a relação concorrencial entre seus pares. O que por fim, só leva ao atendimento da outra classe, que é a capitalista, transfigurada, no “capitalismo de plataformas”, na figura das plataformas digitais.
Associado ao processo ideológico, importa salientar a importância das análises interseccionais, pois invariavelmente, os marcadores sociais influenciam diretamente no “papel” que este sujeito empreendedor e “de desempenho” exerce na sociedade. O reconhecimento dessas distinções é importante, mas por outro lado, acaba também por favorecer o enfraquecimento da força da classe maior, que é da classe trabalhadora. Somos todos pertencentes à classe trabalhadora, com diversas “distinções” sociais, inclusive raciais. E claro, não há a menor dúvida de que esses marcadores (impostos historicamente, culturalmente, socialmente) tendem a empurrar uma fatia significativa da classe trabalhadora para condições piores de trabalho e de vida. No entanto, essas distinções parecem fazer com que aqueles que “sofrem” menos (de uma maneira geral) não compreendam o sofrimento de seus pares “menos privilegiados” na hierarquia social. Sem empatia e consciência de seu papel na sociedade capitalista, não há coesão de classe. E não restam dúvidas de que essa fragmentação classista serve apenas aos interesses capitalistas, pois a partir das distinções e concomitante falta de consciência de classe, criam-se mecanismos de justificação para a precarização e exploração sem que haja qualquer tipo de resistência mais significativa por parte da classe trabalhadora.
Nesse sentido, podemos pensar que o momento histórico que estamos vivendo, em que a partir da supremacia da ideologia neoliberal e o alastramento de formas precárias de trabalho maquiadas de empreendedorismo, sustentadas em narrativas mistificadas associadas a novos métodos de gestão empresarial que favorecem apenas o capital, é resultado de uma derrota de luta política, de luta de classes, que se dá no sistema social. Mas além disso, é preciso perceber que a raiz de todos esses problemas sociais que se exteriorizam nos mercados de trabalho acontecem dentro de algo muito maior, que é o próprio sistema capitalista repleto de contradições. Faz parte da sua lógica de existência e de permanência no tempo histórico criar essas ferramentas de dominação e de imposição de um modo de viver “obediente” que favoreça o processo de acumulação capitalista e claro, o sustente. Para a classe trabalhadora, resta o processo de alienação e autoexploração que, em última instância, leva à degradação, ao adoecimento mental e à desestruturação das condições de vida.
i DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. Edição Kindle.
ii ALVES, Giovanni. A Nova Precariedade Salarial e o Sociometabolismo do Trabalho no Século XXI. In: CASULO, Ana Celeste; ALVES, Giovanni. (Org.). Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. 1. ed. Bauru, SP: Projeto Editorial Praxis, 2018. Edição do Kindle.
iii SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataformas. 1. ed. Buenos Aires: Caja Negra, 2018.
iv POLESE, Pablo. (2016). Que tipo de crise? István Mészáros e a crise estrutural do sistema do capital. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 14, n. 37, p. 40-60, 2016. DOI: 10.12957/REP.2016.25393
v MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. Edição do Kindle.
vi MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021. Edição do Kindle.
vii BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Jorge Zahar Editor, 1998.
viii MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021. Edição do Kindle.
ix HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019. Edição do Kindle.
x ALVES, Giovanni. A Nova Precariedade Salarial e o Sociometabolismo do Trabalho no Século XXI. In: CASULO, Ana Celeste; ALVES, Giovanni. (Org.). Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. 1. ed. Bauru, SP: Projeto Editorial Praxis, 2018. Edição do Kindle.
Excelente texto. Byung-Chul Han também faz uma abordagem muito interessante sobre essa questão do “empreendedorismo” e da economia de compartilhamento no seu livro Capitalismo e impulso de morte – ensaios e entrevistas. Segundo ele, “o sistema dominante neoliberal está estruturado de uma maneira completamente diferente. O poder que o sustenta não é mais repressivo, mas sedutor, ou seja, fascinante”. Esse sistema faz com que o trabalhador pense que é livre sendo autoempreendedor, mas na verdade acaba sendo um trabalhador autoexplorado.
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Excelente texto com importantes reflexões. Inclusive para pensarmos que nós mesmos, críticos da dita “Plataformização” devemos nos abster de fazer uso dos “serviços” ofertados pelas Plataformas Digitais.
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