ANTÔNIA MARA VIEIRA LOGUÉRCIO é natural de Bagé (RS), Bacharel em Direito (UFRGS), atuou como Advogada com escritório próprio e junto à Rede Ferroviária Federal S/A, além de Assessora Parlamentar na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e Juíza do Trabalho do TRT da 4ª Região, instituição na qual se aposentou em 2008. Atuou como organizadora do livro “A lei trabalhista da República Popular da China” (editora Anita Garibaldi), como coautora de Altamiro Borges na obra “Questões polêmicas sobre a jornada de trabalho” (Nota Dez/HS Editora) e palestrado em vários estados do Brasil, alem de Argentina e Uruguai. Foi presa política anistiada durante o Regime Militar e, atualmente, é 2ª Secretaria e integrante do Conselho Deliberativo da Associação de Ex-presos e Perseguidos Políticos do Rio Grande do Sul (AEPPP-RS), eleita no dia 15 de abril, último, além de integrar a ADJC (Associação de Advogadas e Advogados pela Democracia, Justiça e Cidadania).
Dra. Mara, como é conhecida e chamada nos grupos de WhatsApp e nas rodas de conversa, honrada pelo convite, de imediato aceitou participar do “bate-papo na labuta”, seção do blog “Direito do Trabalho crítico”.
1. Muito obrigado, mais uma vez, pela gentileza em se dispor a colaborar com este espaço. Sua primeira manifestação, em resposta ao convite, foi pôr em dúvida o atendimento de supostos requisitos para tanto, considerando não haver participado de formação em nível de pós-graduação, mas também lembrando de um valor ensinado em casa de que “o bom julgador por si julga os outros”. Como Antônia Mara foi apresentada ao mundo do trabalho e que caminho trilhou até o Direito do Trabalho?
R: Meus pais sempre foram muito católicos, mas não supersticiosos. Ensinavam-nos a conhecer a vida e a doutrina de Cristo em toda a sua concretude, embora, talvez nem tivessem consciência disto. Sempre nos prepararam teórica e praticamente para termos um senso de Justiça muito agudo.
Não é fácil para um casal onde ele era ferroviário e, por circunstâncias, nunca chegou a frequentar uma escola, tendo sido alfabetizado pelos irmãos em casa, e ela dona de casa que havia cursado até o 3º ano do ensino fundamental da época, tomarem a decisão de colocar os seis filhos na Universidade. E mais difícil ainda foi terem logrado êxito na empreitada: os seis filhos cursaram a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Eu decidi que iria fazer Direito muito cedo. Antes dos dez anos. Mas, além da origem de classe e da impressionante lucidez de meus pais, vivi, também, até os 10 anos numa vila, onde havia uma charqueada (fábrica de charque). Nós morávamos na estação de trem, onde embarcavam o couro extraído da matança do gado bovino que fornecia a carne para o charque produzido na charqueada, pertencente à COOPERATIVA BAGEENSE DE CARNES LTDA., cooperativa dos “fazendeiros”, ou latifundiários de Bagé.
Então eu cresci convivendo com operários, ferroviários (na época servidores públicos do Estado, na Viação Férrea do Rio Grande do Sul) e operários da Charqueada. Vi, por exemplo, chegarem – pelo trem – trabalhadores arregimentados de outras cidades, que vinham substituir os operários que estavam em greve.
Convivia com pessoal de trem sempre discutindo as questões da categoria e todos os privilégios de que desfrutavam em relação aos demais operários, todos eles conquistados a poder de muitas e prolongadas greves. Na época em que toda a economia do Estado era feita por ferrovia e esse era, também, o principal meio de transporte coletivo, as poderosas greves ferroviárias causavam grande impacto. Os ferroviários e os portuários eram a vanguarda da classe operária em todo o Estado e com inegável influência também no país.
No ano em que eu nasci, 1947 viveu-se a maior das greves ferroviárias do RS: 40 dias o Estado inteiro parado para conquistarem o abono-família, uma certa quantia de dinheiro pelo número de filhos do empregado.
Mudamo-nos, depois para a cidade de Bagé onde fiz o “ginásio” (hoje, 6ª a 9ª série do Ensino Fundamental). Em seguida iniciei minha participação na JEC (Juventude Estudantil Católica) onde, apesar de termos um padre adjunto e uma irmã assistente, tínhamos uma autonomia de pensamento bastante grande. Sempre diferencio os movimentos de Ação Católica, do final da década de 50 até o final da década de 60, quando foram extintos em todo o Brasil, pelo Cardeal Vicente Sherer daqui de Porto Alegre, dos movimentos de pastorais que vieram depois por este traço: nós pautávamos e enfrentávamos a hierarquia, agora a hierarquia pauta os movimentos. Pela JEC participei, aos 13 anos, do Comité Bageense pela Legalidade em 1961. E de lá para cá nunca mais saí da Política Estudantil.
Pela Ação Popular, organização em que militei de 66 a 73 também cumpri a tarefa de me integrar na produção, ou seja, trabalhar numa fábrica na condição de operária para sentir como trabalham e vivem os trabalhadores brasileiros. Foi um ano que considero o mais importante e mais educador de toda a minha vida. Só saí da fábrica porque a Polícia Federal foi lá me buscar…
Por tudo isso já há muito havia decidido que seria advogada trabalhista. Porém saí da faculdade no 3º ano, antes de começar a cadeira de Direito do Trabalho. Só a cursei quando voltei para a faculdade depois de cumprir a pena a que fui condenada à revelia, isto é, em 1978, quando, depois de repetir todo o 3º ano, fui aprovada para o 4º ano e tive a ventura de estudar Direito do Trabalho com o Professor Leite.
Nessa mesma época, depois de cumprir um ano de livramento condicional, comecei a trabalhar num escritório de Advogados Trabalhistas e participei da AGETRA e da decisão, tomada aqui em Porto Alegre, de criar a ABRAT. E do congresso que oficializou a criação da ABRAT, no Rio de Janeiro.
Depois de um breve interregno onde atuei em outras áreas, voltei à advocacia trabalhista pelo lado do patrão, isto é, passei num concurso para advogada da RFFSA, onde trabalhei de março de 1985 a 31/05 de 1994. Quando resolveram extinguir a RFFSA e privatizar a ferrovia, comecei a fazer o concurso que aparecesse e, pintou o de Juíza do Trabalho, onde, depois de uma tentativa frustrada, rodei na prova de sentença porque fiz toda uma argumentação de advogada e precisava ser uma fundamentação de juíza. Contudo, no outro concurso prestado, fui aprovada e tomei posse em 01/06/94. E eu, que nunca havia cogitado na hipótese de um dia ingressar na magistratura, descobri, finalmente, que era esse o trabalho que eu sempre havia sonhado para mim.
2. Antes da Graduação a senhora participou de politica estudantil, justamente em um período da história recente em que a reflexão, o debate e a crítica poderiam custar a liberdade. Em que medida estas experiências forjaram a Magistrada de carreira?
R.: Creio que já respondi na extensíssima resposta do item 1.Participei da política estudantil desde o 1º ano do Clássico no Julinho até o 3º ano da Faculdade de Direito do RS, quando saí para me deslocar para a fábrica. E no retorno para a faculdade, exceto no ano em que cumpri meu livramento condicional, até o 5º ano. E essa vivência toda foi fundamental na minha formação como pessoa e, portanto, no desempenho na magistratura.
3. Em 2002, à frente da 26ª Vara do Trabalho de Porto Alegre foi de sua autoria uma decisão histórica envolvendo um atleta do futebol que anos mais tarde viria a conquistar uma Copa do Mundo e ser eleito o melhor jogador do planeta, demanda que só acabou no ano seguinte. Esta foi a decisão de maior repercussão em sua carreira de quase 15 anos no TRT da 4ª Região? Em caso positivo, por quê? E, se não foi, qual foi?
R.: Repercussão externa claro que sim. Inclusive foi depois dela que deixei de ser Juíza Substituta, após sete anos e passei a Juíza titular na primeira vaga que surgiu e por merecimento…
Para mim, nem de longe, foi a mais importante sentença. Até porque nessa eu julguei a favor do patrão que, casualmente vem a ser o time que eu, desde pequena, aprendi a “combater”. Mas estou convicta de que decidi corretamente, com base na Constituição, na legislação e nos Princípios do Direito do Trabalho. E esse sempre foi o roteiro de fontes do Direito do Trabalho que eu tomava em todas as decisões que proferi. Usava, também, muita jurisprudência – desde que eu aprovasse o conteúdo -, para proteger minhas sentenças da sanha modificadora da instância “ad quem”.
A mais importante sentença dada por mim não teve nenhuma projeção e foi numa ação acidentária em que o autor caiu de um poste da CEEE, onde trabalhava como terceirizado, através, portanto, de interposta pessoa e tomou um choque de 20.000 wats. Ficou sem uma perna, sem um braço e, na mão que sobrou havia apenas três dedos. O rosto e o corpo inteiro tinham aparência de chamuscado. O feito correu no cível onde o Juiz de Direito – com a competência que ele pensou que tinha -declarou não haver relação de emprego entre o autor e a CEEE e, em despacho saneador, afastou a CEEE da lide. E julgou a empresa terceirizada como não culpada pelo acidente porque não foi ela quem energizou a linha!
Depois de 16 anos, a ação indenizatória foi julgada improcedente. O autor ficou vivendo com a pensão de acidentado pelo INSS. Na Justiça do Trabalho, ele postulava apenas a declaração do vínculo de emprego entre o autor e a CEEE porque só esta especializada tem competência material para tanto. E em decorrência a declaração de que ele, na condição de empregado da CEEE, fazia jus à complementação de aposentadoria da ELETROCEEE, pedindo o pagamento das parcelas não atingidas pela prescrição e a inclusão em folha da empresa ré. Prolatei a sentença, totalmente procedente e descobri, no exame do Estatuto da ELETROCEEE, que, pela data do contrato ele seria sócio fundador e, portanto estava isento de pagar as luvas e outras despesas e determinei seu enquadramento imediato na Folha de Pagamento da ELETROCEEE. Tive a felicidade de saber que esta sentença foi confirmada – por unanimidade-, pela Turma do Tribunal. Lembro apenas (não tenho cópia porque a maioria das minhas sentenças foram gravadas em disquete…) de uma frase que dirigi mais ao Tribunal do que para o cliente onde disse: “na verdade, a figura que compareceu ao Juízo guardava de humano apenas a consciência, a coragem e a dignidade”. E passei a descrever o estado físico do acidentado para que o Tribunal tomasse o contato direto com a realidade que a gente só tem condições de fazê-lo no 1º grau.
4. Em sua vasta experiência política e jurídica, o que falta e o que sobra a Operadoras e Operadores do Direito do Trabalho no Brasil de 2023?
R.: Vivência, ou melhor, experiência de vida real. De conhecimento de causa dos feitos em que atua. E falta de ter, no horizonte, sempre, que o sujeito de direitos nesta Justiça especializada é o trabalhador. O empregador, aqui, é o devedor dos direitos. E um juiz e, principalmente, um Juiz do Trabalho tem que sempre ter em mente, em qualquer decisão que profira ou medida processual que tome, que a razão de ser da Justiça do Trabalho – como de qualquer ramo em que o juiz tem que “dizer o direito”, isto é, jurisdicionar é, justamente, o jurisdicionado. E um pouco mais de amplitude na visão de mundo. De sair dos próprios interesses em que nos jogou a sociedade de consumo desenfreado e a ideologia neoliberal, para enxergar e atender os interesses daqueles a quem se destina nosso trabalho – o jurisdicionado, o sujeito de direitos trabalhistas. Aí é que me socorro da máxima ensinada por meus pais, mas proferida por Jesus Cristo de que “o bom julgador, por si julga os outros”. É uma questão de empatia, de se perguntar: e se eu tivesse no lugar dele???
5. Quais os papéis destinados aos sindicatos em um mercado de trabalho tão desigual e voraz quanto o brasileiro?
R.: O trabalho dos Sindicatos foi, praticamente, impedido com a ditadura militar de 1964: as sedes dos sindicatos mais representativos e/ou combativos foram invadidas e destroçadas, os líderes sindicais foram presos ou perseguidos e retirada toda a competência original dos sindicatos. Depois foram retomados com dirigentes confiáveis ao regime, mas reduzido à prestação de serviços médicos, odontológicos e assistência jurídica aos trabalhadores associados.
Voltou-se a atribuir importância aos sindicatos com as memoráveis greves operárias do final dos anos 70 e início da década de 80. Mas a ditadura, ainda existente, tentou abafar o movimento, matando seus líderes – como fizeram com Santo Operário, líder da poderosa Oposição Metalúrgica que se preparava para vencer as eleições no Sindicato dos Metalúrgicos da cidade de São Paulo ou, no mínimo, a prendê-los como fizeram com a maior liderança metalúrgica do ABC, Luiz Inácio Lula da Silva.
Com a Constituição de 1988 o Direito do Trabalho não só ganhou “status” constitucional – como, aliás, ocorria com as constituições anteriores, desde a “Polaca” de 1934, como ficou no primeiro Título das normas constitucionais, secundando apenas o preâmbulo da Lei das Leis, recém aprovada. E o mais importante: as normas trabalhistas e os demais direitos sociais foram erigidas à categoria de direitos fundamentais, embora nossos escribas e, sobretudo, nossos Tribunais ainda não tenham se adaptado à nova ordem constitucional porque há uma incrível resistência em considerar este novo patamar constitucional das normas sociais (art. 6º) e trabalhistas (art. 7º a 11), como se elas não integrassem o Título II da CRFB de 1988 que tem como ementa: DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS e inicia com os direitos individuais e coletivos (art. 5º), mas só termina no art. 11 que trata das Comissões de Fábrica que deveriam ser formadas com um representante a cada 200 empregados e funcionarem em conjunto com o Sindicato, que nunca foram implementadas.
E, após a Constituição, o poder dos sindicatos começou a ser esvaziado por uma decisão judicial, em que foi erigida uma verdadeira muralha para descumprir o mandamento constitucional de que o sindicato tinha a prerrogativa de representar, individual e coletivamente a categoria. Com a edição da Súmula 330 do TST, foi retirada dos sindicatos, o maior exemplo de representatividade registrado na história sindical brasileira: a possibilidade de atuar como Substituto Processual, nos estritos termos da norma constitucional.
Diga-se, a bem da verdade, sem qualquer base em disposições constitucionais ou legais e de duvidosa interpretação do preceito constitucional. A tal ponto que, hoje, depois de tantos anos da revogação da Súmula 330 e sua expressa rejeição pelos próprios Ministros que a aprovaram, como o Ministro gaúcho Ronaldo Lopes Leal, nem os sindicatos ousam agir como Substitutos Processuais ou da categoria e quando o fazem, até hoje encontram magistrados que, com fundamento inexistente, exigem a juntada da lista de trabalhadores com todos aqueles empecilhos que tiveram por escopo inviabilizar a substituição processual criada com a Constituição.
Depois disso, o golpe de morte nos sindicatos brasileiros veio com a Deforma Trabalhista (Temer-Bolsonaro) que, além de tirar a representatividade para atuar no Direito Coletivo do Trabalho, ainda assaltaram os cofres dos sindicatos inviabilizando a simples existência das entidades sindicais, com a revogação da única e certa fonte de recursos que era a contribuição sindical com força de lei e, portanto, livre da pressão dos patrões e da individualização de cada trabalhador.
Agora ter-se-ia que começar tudo de novo devolvendo os Sindicatos e a organização sindical, singelamente, aos preceitos constitucionais estritos dos arts. 8º a 11 da Carta Maior que são o que de mais oportuno e avançado na matéria já ocorreu na legislação brasileira.
6. Uma mensagem de até logo a quem a leu ate aqui.
R.: Antes de mais nada, meu pedido de escusas pela extensão das respostas, aduzindo que não posso evitar o entusiasmo e a emoção que me invadem ao tratar destes temas. Agradeço, mais uma vez, a oportunidade que me oferece o Direito do Trabalho Crítico e me coloco à disposição para qualquer esclarecimento sobre o conteúdo ou para debate dessa matéria em outras oportunidades no próprio blog Direito do Trabalho Crítico como, se for o caso, em qualquer chamado dos nossos leitores.
NOTA PESSOAL: autorizo – enfaticamente – ao colega Oscar Krost, titular do blog a cortar tudo o que for necessário para reduzir o texto ao espaço que lhe é reservado.
Li, gostei e aplaudo a Colega Antonia! Vida muito rica! Temos algo em comum. Também pertenci à JEC. Grande abraço, para entrevistador e entrevistada.
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