UM RELATÓRIO PARA UMA ACADEMIA (KAFKA) E A COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO: ENTRE REFLEXOS E REFLEXÕES

Oscar Krost

Eminentes senhores da Academia:

Conferem-me a honra de me convidar a oferecer à Academia um relatório sobre minha pregressa vida de macaco”.1

Assim se inicia “Um relatório para uma Academia”, conto de Kafka escrito em 1917. Nele, Pedro Vermelho, macaco capturado pela “firma” Hagenbeck na Costa do Ouro, continente africano, narra, em primeira “pessoa”, sua trajetória até ali.

Explica, acerca do relatório, que “essa realização teria sido impossível se eu tivesse querido me apegar com teimosia à minha origem e às lembranças de juventude”. Esclarece que “as recordações, por seu turno, se fecharam cada vez mais para mim”.2

O exímio – quase ex-símio – orador rememora a própria saga em detalhes, justificando a origem comum da alcunha e do leve mancar: dois tiros que o alvejaram durante o aprisionamento. O primeiro, o atingiu de raspão, no rosto, e deixou uma cicatriz de cor vermelha; o segundo, certeiro na anca, afetou sua motricidade.

Como toda obra literária, infinitas são as possibilidades de interpretação. Dentre elas, destaque para a metáfora sobre o processo de assimilação dos judeus por países da Europa Oriental, eternamente inconcluso.

Pouco importam a permanência, o engajamento e a aculturação, sempre faltará algo que assegure o pleno aceite de quem vem de fora. A condicionante “se” sempre à espreita para lembrar a condição de “estranho em terra estranha”.3

Mas como conhecer a encruzilhada do personagem-narrador kafkiano e não sentir um “Déjà vu” diante das recentes manifestações sobre a competência da Justiça do Trabalho no Brasil, especificamente em ações sobre reconhecimento do vínculo de emprego em matérias conhecidas e julgadas pelo STF?4 5

Um ramo do Poder Judiciário criado para servir de fiel da balança de conflitos sociais intrinsecamente inconciliáveis – individuais/coletivos entre capital e trabalho – está fadado a permanecer entre a cruz e a espada. E aqui temos um paradoxo: quanto maior o número de decisões em que concretizadas as promessas constitucionais e o impedimento da hegemonia do mais forte, menor a tolerância com a existência da Justiça do Trabalho, cantada em prosa e verso como corporativa, fascista e retrógrada em um ciclo que se retroalimenta e parece levá-la à extinção.

Poderia ser diferente, mas não é.

E como Pedro, a Justiça do Trabalho, ciente dos fundamentos que a originaram e de sua razão de ser, “desapegada” da teimosia e da juventude, jamais atuou com olhos voltados para o passado, mirando o mundo pelo retrovisor. Ocorreu e segue ocorrendo exatamente o contrário, como demonstram os números recentes sobre prazos, decisões, audiências e recursos destinados, seja em termos quantitativos, seja sob a ótica qualitativa.6

Poderia prestar uma jurisdição fria, sem pulso e “pro forma”, a exemplo da hipótese trazida pelo narrador-protagonista de “Um relatório para uma Academia” ao afirmar que seria “tão fácil imitar as pessoas! Nos primeiros dias eu já sabia cuspir. Cuspimos então um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a sua.7 O caminho escolhido foi outro e, respeitados entendimentos em contrário, se mostrou o mais legítimo possível, a saber, o caminho da Constituição.

Prova disso, foi a ampliação de competência promovida pela Emenda Constitucional no 45, de 30 de dezembro de 2004 (Reforma do Judiciário). No lugar de conciliar e julgar dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (art. 114), passou o Judiciário Trabalhista a processar e julgar as ações oriundas das relações de trabalho, inclusive relacionadas a integrantes da Administração Pública Direta e Indireta (art. 114, inciso I). Foi-se da espécie ao gênero, da exceção à regra, valorizando sua forma de solucionar contendas.

Em 100 anos, equivalentes aos 5 que separam Pedro de sua versão selvagem, as repartições integrantes do Poder Executivo, responsáveis por dirimir contendas rurais, se transmutaram em um braço do Poder Judiciário vocacionado à vanguarda em termos administrativos, tecnológicos e jurídicos. Quantas alterações do Direito e do Processo Civil nos últimos 50 anos foram inspiradas na CLT e na Justiça “Especializada”?

Sequer a pandemia de Covid-19 que assolou o planeta em anos recentes foi capaz de paralisar a jurisdição laboral brasileira. Tal qual Fênix, a velha Justiça do Trabalho renasceu ainda mais forte das cinzas ao fazer uso da telemática para realizar audiências durante o período de isolamento.

E aqui reside o “x” da questão sobre as discussões relativas às decisões envolvendo o reconhecimento de vínculos de emprego, em sentido aparentemente contrário ao da jurisprudência majoritária do STF.

Novamente, como Pedro, não importa o quanto a Justiça do Trabalho se comporte como ramo do Poder Judiciário, que seja composta exclusivamente por Juízas e Juízes togados selecionados em rigorosos certames de provas e títulos e se mostre à altura do enfrentamento dos desafios do século XXI: parece fadada, por determinados segmentos, a ser vista como a convidada/intrusa na “academia”, o primo pobre e “patinho feio”.

Mesmo que a CLT publicada em 1943 conte, em vigor, com menos de 30% do texto original, no que diz respeito às disposições de Direito Material do Trabalho,8 segue taxada de arcaica, obsoleta e rígida, mesmo relida e interpretada pelas lentes das Constituições de 1946, 1967 e (pela Emenda de) 1969, e, ainda valorada, pelo crivo da Carta de 1988.

Se não cabe às instâncias superiores o reexame de fatos e provas, como sustentar que uma decisão judicial pela qual reconhecido o vínculo de emprego, repleta de peculiaridades e singelezas, em tese, possa afrontar um precedente igualmente “sui generis”?

Por que admitir o manejo de mecanismos excepcionais de controle judicial, como a reclamação constitucional para preservação de competência, sobre demandas sem trânsito em julgado, quando há recursos próprios em extensa lista para o reexame de decisões que, por hipótese, violem precedentes vinculativos da Suprema Corte?

Qual a relevância de levar ao debate público situações sub judice que devem, por apego ao argumento, ser analisadas nos próprios autos, seguindo, sempre, o devido processo legal e os demais Princípios e garantias constitucionais?

Dúvidas, inquietações, ilações. E, justamente por não possuírem respostas, ao menos não daquelas definitivas e irrefutáveis, não as trago, tampouco as almejo.

Limito-me, Senhoras e Senhores, da Academia e da comunidade jurídica, a compartilhar reflexos e reflexões.

A título de “até breve” a quem honrosamente chegou até aqui, finalizo, socorrendo-me das palavras de despedida/conclusão de Pedro:

Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga que o esforço não valeu a pena. No mais não quero nenhum julgamento dos homens, quero apenas difundir conhecimento; faço tão-somente um relatório; também aos senhores, eminentes membros da Academia, só apresentei um relatório”.9

1 KAFKA, Franz. Um relatório para uma academia In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução e posfácio Modesto Carone – 1a ed. – são Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 59.

2 KAFKA, ob. cit. p. 59.

3 Referência à expressão utilizada em “O violinista no telhado”, peça de Scholen Aleichen, adaptada em musicais da Broadway e para o cinema, atribuída à Abraão pelo personagem “Tévie, o leiteiro”. Texto em versão teatral disponível em <https://institutoruthsalles.com.br/um-violinista-no-telhado/>. Acesso em: 24 out. 2023.

4 BONIN, Robson. O duro recado de Gilmar Mendes a Juízes trabalhistas que ignoram o STF. Revista Veja online, 20.10.2023, disponível em <https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-duro-recado-de-gilmar-mendes-a-juizes-trabalhistas-que-ignoram-o-stf&gt;. Acesso em: 24 out. 2023.

5 CASTRO, Giselle. STF já recebeu 2.566 reclamações sobre Direito do Trabalho em 2023, diz Gilmar Mendes. JOTA, 19.10.2023. <https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-ja-recebeu-2-566-reclamacoes-sobre-direito-do-trabalho-em-2023-diz-gilmar-mendes-19102023>. Acesso em: 24 out. 2023.

6 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório Justiça em números 2023, disponível em <https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/&gt;. Acesso em: 26 out. 2023.

7 KAFKA, ob. cit. p. 67.

8 Sobre o tema, ver SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A CLT é velha, disponível em <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/i-a-clt-e-velha>. Acesso em: 24 out. 2023. Detalhe importante e necessário diz respeito ao fato de o texto do Professor Souto Maior ter sido publicado em 23 de março de 2017, meses antes da aprovação da Lei no 13.467 (Reforma Trabalhista) que acrescentou, revogou ou modificou aproximadamente 100 artigos da Consolidação.

9 KAFKA, ob. cit., p. 72.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

4 comentários em “UM RELATÓRIO PARA UMA ACADEMIA (KAFKA) E A COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO: ENTRE REFLEXOS E REFLEXÕES

  1. A academia juslaboral precisar despertar para o fato de que somente com união e coesão vai poder parar o rolo compressor que o STF tem passado por cima do TST, revisando decisões de Tribunal Superior com uma simples ação constitucional. Mas eles haverão de provar do próprio veneno, pois com a profusão de cursos e palestras sobre a reclamação constitucional, logo esta será a única coisa que irão julgar… Quem sabe assim, em uma jurisprudência defensiva por excesso de trabalho, as coisas voltem ao devido lugar.

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  2. Excelente artigo! Os donos do poder nunca aceitarão como comensais em seu banquete os que consideram naturalmente seus vassalos. Exceto como serviçais – e muito bem comportados -.

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