Reflexões sobre genocídio, trabalho, a reconstrução democrática no 20 de novembro de 2025 – desafios do Direito do Trabalho diante do pacto racial brasileiro

Helena Pontes dos Santos – Mestra em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Estudos afrolatino-americanos e caribenhos pelo Clacso e em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP), da Equipe de Estudos em Direito do Trabalho e História (USP) e do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras (UNIFESP). Militante do Movimento Unificado e co-fundadora e co-organizadora da Semana Tereza de Benguela da Baixada Santista.

Este texto nasce da minha fala na mesa “Efeitos da discriminação racial no trabalho e as formas de enfrentamento”, apresentada em 18 de novembro de 2025, na Escola Judicial do TRT da 1ª Região, durante o seminário “Justiça, Trabalho e Racismo: Enfrentamentos e Perspectivas Transformadoras”, atividade construída em referência ao Dia da Consciência Negra.

Transformo aqui aquela intervenção em reflexão ampliada sobre genocídio, trabalho e reconstrução democrática no Brasil, a partir da crítica ao pacto racial que estrutura o Direito do Trabalho.

1. Percurso do Genocídio do Negro Brasileiro

Em 1978, Abdias do Nascimento escreveu: “Levantei a voz e me identifiquei não como representante do Brasil, mas como um sobrevivente da República de Palmares.”1

A cada novo massacre, setores diversos do espectro político são confrontados com a permanência estrutural do racismo. Quando, em 1978, Abdias do Nascimento denunciou o genocídio do povo negro brasileiro, ele não se referia a um evento isolado, mas a uma política de Estado — uma engrenagem socioeconômica e cultural que opera, há séculos, o extermínio e a desumanização do povo negro neste país. Quase cinquenta anos depois, a denúncia permanece atual.

A gente pode olhar para o último 28 de outubro, mas soa a muitos outros, anteriores: 26 de julho de 1990 (11 mortos, Acari); 2 de outubro de 1992 (111 mortos, Carandiru); 23 de julho de 1993 (08 mortos, Candelária); 29 de agosto de 1993 (21 mortos, Vigário Geral); 12 a 21 de maio de 2006 (564 mortos, Baixada Santista); 06 de maio de 2021 (27 mortos, Jacarezinho); 24 de maio de 2022 (25 mortos, Vila Cruzeiro).

A chacina nos complexos do Alemão e da Penha, ocorrida há menos de um mês, repete o roteiro que se conhece desde que a primeira pessoa escravizada que pisou nesta terra, aquilombou e resistiu – de Palmares, ao Massacre de Porongos, chegando, na atualidade, a muitas outras chacinas: invasão militarizada, execução sumária, ausência de socorro, silêncio institucional, comemoração nas manchetes, desumanização dos corpos de trabalhadoras e trabalhadores negros, vilipêndio ás suas memórias e representantes dos poderes a justificar as mortes e a reproduzir a lógica de proteção prioritária ao patrimônio da classe dominante, em vez da vida humana.

São esses territórios racializados – marcados por precariedade social e pela resistência histórica do povo negro – tratados desde sempre como zonas de sacrifício permanente. Um sacrifício, que não alimenta só os “passa fome, metido a Charles Bronson”. Alimenta o mercado de pessoas dispostas a arrumar qualquer trabalho precarizado para sobreviver, por óbvio, mas, também, para tentar ser parte dos protegidos pela promessa intrínseca ao pacto de cidadania cujo maior símbolo é a carteira de trabalho assinada. “Sou trabalhador, não me mata” são frases comuns de se ouvir nos depoimentos de sobreviventes ou testemunhas oculares das chacinas neste país. Mas o Estado sabe bem que “morreu, neguinho, virou bandido”2.

O Brasil ainda vive sob os restos de uma abolição inconclusa. E cada operação policial em favelas, presídios, blitz policiais para apreender motos de entregadores negros escancara o que é a lei de 13 de maio e como se faz a gestão da maior parte da classe trabalhadora brasileira desde então: uma promessa de liberdade convertida em gestão de medo e morte.

2. A sofisticação das tecnologias de extermínio

As formas contemporâneas do genocídio se tornaram mais sofisticadas. Se na década de 1970 Abdias denunciava o genocídio físico, moral e cultural, somos a geração que está assistindo se somar a estes elementos a gestão algorítmica da vida, típica desta fase do capitalismo chamada de neoliberalismo.

O relatório da Agência Brasil (2025) mostra que, dos 45 mil assassinatos ocorridos em 2023, mais de 35 mil foram de pessoas pretas e pardas. O Atlas da Violência 2024 já apontava 76,5% de vítimas negras entre os 46 mil homicídios de 2022. A letalidade policial permanece aterradora: 6.243 mortes em 2024 — média diária que a operação do Alemão e da Penha ultrapassou, segundo levantamentos preliminares, patamares excepcionais de letalidade. No mundo do trabalho, a morte também tem cor: artigo da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional denuncia o padrão de que o trabalho mata mais pessoas negras3.

Esses números são evidências do extermínio. O que Abdias chamou de genocídio do povo negro brasileiro se manifesta na frieza da necropolítica: a contabilidade da morte como rotina. Se em Gaza, entre outubro de 2023 e maio de 2025, 53 mil pessoas foram mortas, sendo 83% civis, no Brasil, o genocídio negro mata, ano após ano, em silêncio, uma Gaza inteira — sem que se reconheça a guerra e o genocídio em curso. Basta que se olhem as estatísticas para que compreendamos o quanto nós, enquanto sociedade, somos conivente com milhares de mortes que acontecem próximas, bem embaixo do nosso nariz.

Lutar pelo fim do genocídio em Gaza é urgente, tal qual o é lutar pelo fim no genocídio em todo o mundo, inclusive os que acontecem, sem declaração formal de guerra, como no Brasil.

3. Da cela ao aplicativo: o novo rosto da engrenagem

Como argumentei em “Da cela ao aplicativo” (A Terra É Redonda, 2025)4, o Judiciário, o sistema prisional e o mercado de trabalho compõem uma mesma linha de montagem do genocídio. A “escolha” possível para jovens negros é de morte, dada a estrutura social e econômica que opera sobre esses corpos: entre a bala e o aplicativo, a vida negra será consumida sem nunca gozar do bem-viver e será tratada racionalmente como perdas toleráveis no jogo do capitalismo; essas são as vidas descartáveis e que, por isso mesmo, não devem ter direito algum garantido.

A “modernização” da economia brasileira não rompeu com a lógica colonial para a superexploração, mas a reconfigurou, pois o mesmo Estado que mata nas favelas é o que legitima, nos tribunais, a precarização extrema e a negação de direitos trabalhistas, movimento de suma importância para os capitalistas nacionais e estrangeiros, numa economia de capitalismo dependente como é a brasileira.

Essa fusão entre exploração e extermínio, esta superexploração racializada da força de trabalho, é mecanismo pelo qual o capital dependente extrai valor não apenas do trabalho vivo, mas também da morte administrada dos corpos negros. O genocídio, nesse sentido, não é falha moral do Estado, mas política econômica de regulação da força de trabalho excedente. É a gestão da morte como condição de acumulação e disciplinamento do grande contingente de trabalhadores precarizados negros.

A reprodução dependente do capital se sustenta, hoje, na racialização da pobreza que gera uma multidão sem possibilidade de reação e que necessitam se entregar à superexploração de suas forças de trabalho para tentar sobreviver. A necroeconomia brasileira opera assim: regula a empregabilidade pelo medo e pela morte: o trabalhador negro sabe que o mesmo Estado que o obriga a aceitar a entrega por aplicativo o pode matar na esquina. É a mesma engrenagem.

A exploração e a morte são fases de um mesmo ciclo: o jovem negro que sobrevive às chacinas nas favelas é empurrado para o trabalho informal, o subemprego, o aplicativo. Se morre em serviço, vira estatística de acidente de trabalho – se for registrado. Se protesta, enfrenta a repressão direcionada historicamente às classes trabalhadoras racializadas, vide Rafael Braga. Se não se submete à superexploração, buscando “ser bem sucedido”, procurando “dar uma solução rápida e fácil pros meus problemas”, como ensina Afro-X5, entrando para o crime, é morto.

A escolha que a pessoa trabalhadora negra tem desde cedo é essa: “Pega peso pro patrão, curtir as férias no resort” ou, sendo diferenciado, sendo relíquia mesmo, “Moleque bom quer ser patrão, pegar o peso do malote” é o que canta Rincon Sapiência com N.I.N.A. na música Levantando a Taça6.

4. O mito da democracia e a falsa abolição

Em Massacre de Jacarezinho, mais um retrato da falsa abolição (GMARX, 2021),7 escrevi que o racismo não atinge apenas uma pessoa, mas toda uma comunidade sobrevivendo e resistindo em diáspora. Essa constatação permanece verdadeira e estamos constantemente destruídos pela ausência de solidariedade de nossos pares de classe.

O Estado brasileiro insiste em se afirmar democrático enquanto naturaliza a morte seletiva da população negra. Em que país democrático a morte massiva de civis poderia ser relativizada no discurso público do chefe do Poder Executivo estadual? Em que país democrático a constituição e sua garantia de que não há pena de morte para civis isso seria possível? O que se chama de democracia é, na verdade, a gestão desigual da cidadania: para alguns, a plenitude dos direitos; para outros, a suspeição permanente.

Enquanto nos horrorizamos com agentes americanos invadindo casas de estrangeiros sem mandato, em sua guerra ao terror, aqui assistimos isso acontecer cotidianamente em nome de uma guerra às drogas com reações institucionais desiguais, muitas vezes insuficientes para reverter o quadro estrutural.

A Constituição de 1988 representou uma vitória parcial da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, mas não conseguiu romper o pacto racial sob o qual se funda nossa República: quem estava nas instituições seguiram sendo os mesmos homens brancos historicamente benecidiados pela exclusão do grande contingente de gente da classe trabalhadora dos espaços de decisão. A deslegitimação da Constituição e o não cumprimento pleno de suas promessas em relação ao povo negro – com o esvaziamento de suas políticas – é tarefa que a classe dominante nacional – historicamente alinhada aos interesses do capital internacional – cumpre com zelo e perfeição: reformas trabalhistas, reforma administrativa, reforma previdenciária, cortes orçamentários, privatizações, militarização da segurança pública e da educação. Tudo isso estrutura o projeto imperialista de dominação, exploração e pilhagem, restaurando a ordem colonial sob roupagem democrática amparado em políticas cujo resultado é, de tempos em tempos, corpos negros colocados lado a lado para deleite de quem goza com a espetacularização da desgraça do povo negro.

O genocídio do povo negro não se combate apenas com indignação moral e discurso. Requer ruptura epistemológica. Requer o reconhecimento de que a neutralidade jurídica é cúmplice do extermínio. Essa neutralidade que não é só mera omissão, mas forma social racializada. O Direito do Trabalho, por exemplo, ao aceitar o contrato intermitente, converteu a exploração em liberdade. A mesma racionalidade jurídica que caminha para legitimar a uberização é a que, na ADPF 635, hesitou em frear a letalidade policial.

A ADPF 635, aliás, é mais um exemplo de como o direito liberal, enquanto forma-mercadoria, hesita diante da proteção da vida negra: reconhece o problema, cria planos, protocolos e relatórios, mas mantém intacta a engrenagem, tal qual a Lei Áurea: a homologação parcial de 2025 institucionalizou a hesitação como política de Estado — freou o verbo (ou nem isso, considerando as falas do chefe do executivo estadual), não a bala. Tem-se, aí, materializada a limitação inerente às respostas liberais diante de uma estrutura racializada de violência. É a forma-mercadoria-direito traduzindo o valor de troca em valor de vida.

Não é mais possível que a parte da classe que goza das proteções jurídicas no Brasil siga ignorante ao que denunciam os MCs há anos – de Cidinho & Doca, em seu Rap da Felicidade8, a Poze do Rodo na poesia de protesto “Talvez”9: as pessoas que moram nesses territórios, que sustentam a metrópole com sua força de trabalho querem bem-viver e nada mais. Como bem expõe Poze do Rodo – que tem letras de músicas mais perigosas para o sistema capitalista do que se tivesse com um fuzil nas mãos – denuncia assertivamente:

E se eu disser que a polícia tá matando quem acorda cinco da manhã

Pra trabalhar tentando ser alguém?

E se eu disser que, na verdade, o sistema é mó covarde

Vê o povo passar fome e não ajuda ninguém?

Favelado tem que juntar com favelado pra fazer acontecer

Porque eles nunca vai fechar com nós

Poze do Rodo aponta a solidariedade de classe como saída deste impasse e, não se engane: ele sabe do que fala, pois a realidade e a historicização das explorações e flexibilizações – também como parte do genocídio do povo negro – nos ensinou que “se não for nóis
não vai ser ninguém, com nóis é nóis10”.

5. Encruzilhadas do capital e da morte

Na encruzilhada gênero-raça-classe-capacidade-sexualidade, as estatísticas ganham corpo: são mulheres negras que perdem filhos para a polícia e vivem superexploradas por conta da falta de proteção dos trabalhos realizados por corpos negros, em regra, precarizados; são pessoas negras com deficiências invisibilizadas, mas também mortas pelo Estado, como na Operação Verão11; são trabalhadoras negras empurradas para o serviço doméstico, um dos espaços mais desprotegido da legislação e com fiscalização por parte de auditores fiscais do trabalho ainda diminuta que gera anualmente casos assustadores como o de Sônia12.

Essas encruzilhadas revelam o caráter estrutural do genocídio: o racismo não é desvio, não é coisa de governo A ou B, mas é engrenagem. O racismo organiza a divisão do trabalho, regula o valor da vida e define quais vidas são socialmente reconhecidas como plenamente dignas de proteção.

Não há democracia possível enquanto o Estado brasileiro insistir em tratar a população negra como inimiga interna, assim como não há cidadania sem reparação e, tampouco desenvolvimento sem a descolonização do pensamento e das instituições. Mais: não há que se reivindicar amor por parte do povo negro quando a realidade cotidiana ainda é marcada pela violência sistemática.

Reatualizar a denúncia de Abdias, lhe expandindo, é, hoje, reconhecer que a bala e o aplicativo são faces de um mesmo sistema. É afirmar que o genocídio brasileiro é comparável, em escala e impacto, às guerras declaradas pelo mundo. E é lembrar, como escreveu Clóvis Moura, que o povo negro sempre resistiu — e porque resiste é que ainda há um país. Nós somos os que verdadeiramente “ainda estamos aqui”, vivenciando tortura, morte, sumiço de corpos, condenações políticas e retirada de direitos trabalhistas arduamente conquistados na base de morte e medo!

6. Discriminação do mundo do trabalho: projeto

Os nomes das vítimas mudam, mas o mecanismo é o mesmo.
Jacarezinho, Alemão, Penha, Bahia, Rio Grande do Sul, Alagoas, Pernambuco, São Paulo; pouco importa: da senzala ao presídio, dos cantos ao aplicativo, a lógica é a mesma: conter, disciplinar, explorar e descartar corpos negros.

Enquanto o país não fizer justiça e enquanto não se enxergar nas mortes de cada trabalhador negro o reflexo de seu próprio fracasso civilizatório, não haverá democracia, nem liberdade, nem vida que valha a pena ser vivida.

O genocídio do povo negro é reproduzido estruturalmente pelo Estado, e também por dinâmicas de classe. Os governos mudam; o pacto racial de poder não. Enquanto a branquitude dirigente — inclusive à esquerda — não negar o suborno sistêmico ofertado, a democracia brasileira seguirá administrando a morte como política pública. Se a vida negra importa — como afirmam nossas instituições — é hora de materializar essa prioridade em políticas, práticas e decisões.

Daí emerge a minha proposta para um direito do trabalho que está crise: seguirmos no contrafluxo da ordem ocidental individualista e que chega ao ponto de não tratar os direitos trabalhistas como o que são: essencialmente coletivos e, neste sentido, o que atinge a uma pessoa trabalhadora, atinge a todas.

Falar dos efeitos da discriminação racial no trabalho sem nomear o pacto racial que estrutura o Estado brasileiro — e as formas contemporâneas de produção da morte e da precarização que dele derivam — seria tratar o sintoma sem enfrentar a doença. Quando afirmo genocídio, trabalho e reconstrução democrática, não estou deslocando o tema da mesa: estou apenas explicitando que a discriminação racial no mundo do trabalho não é um desvio, mas parte de um projeto histórico que organiza hierarquias de vida e de morte. Enfrentar essa realidade é a única forma séria de pensar qualquer estratégia jurídica de combate ao racismo.

7.  Refundação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva negra 

Tudo apresentado nos aponta que estamos em um momento crítico, é verdade, mas também único e propício para pensarmos em deixar de resistir somente, mas apontar a necessidade de refundar o Direito do Trabalho. E o que isso importa debater numa mesa que trata dos “Efeitos da discriminação racial no trabalho e as formas de enfrentamento”. Não há como tratar efetivamente sobre esta questão sem encarar que o racismo faz com que o Direito do Trabalho venha sendo manejado como tecnologia de exclusão do povo negro, a fim de garantir o lucro do capitalista no capitalismo dependente brasileiro.

Então ao invés de efeito, estamos aqui apontando uma causa que, caso não tratada, não teremos efeitos duradouros como o necessário para uma sociedade em que a justiça social possa efetivamente se realizar.

Se a mesa nos convoca a discutir os efeitos da discriminação racial no trabalho e as formas de enfrentamento, é preciso reconhecer que o próprio Direito do Trabalho, historicamente, foi mobilizado para tal. Por isso, o enfrentamento real não pode se limitar à gestão dos sintomas: o que proponho é reparação coletiva a partir do reconhecimento do uso deturpado do Direito do Trabalho como ferramenta que vêm servindo à manutenção da exclusão socioeconômica das pessoas trabalhadoras negras, com sua a arquitetura normativa, a precarização generalizada e a blindagem processual que contribuí para manter o pacto racial brasileiro.

É somente quando nomeamos essa distorção estrutural do Direito do Trabalho que podemos, enfim, propor um horizonte de transformação e reconstrução democrática que responda àquilo que esta mesa se propõe a debater para pensarmos em um Direito das Pessoas Trabalhadoras.

A abolição não se completa no passado: ela se decide agora, no que fazemos — ou deixamos de fazer — diante da desigualdade racial no trabalho. Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje: é isso. O tempo da reparação é já.

Brasil, 20 de novembro de 2025.

1 Abdias do Nascimento, O genocídio do negro brasileiro, 1978.

2 Frase dita para Rogério, gari da cidade de Santos, antes de ser morto na Chacina nomeada Crimes de Maio, em 2006.

3 https://www.cut.org.br/noticias/mortalidade-em-acidentes-de-trabalho-e-maior-entre-homens-e-negros-0bb8

4 https://aterraeredonda.com.br/da-cela-ao-aplicativo-o-judiciario-e-a-linha-de-montagem-do-genocidio-negro/

5 RACIONAIS MC’S. A vida é desafio. Intérprete: Racionais MC’s. In: RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia, Disco 2 – Chora Agora. São Paulo: Cosa Nostra, 2002. 1 CD

6 N.I.N.A.; Rincon Sapiência. Levantando a Taça. Interpretes: N.I.N.A.; Rincon Sapiência. YouTube, uploaded on: 23 de out. de 2025. Disponível em: https://youtu.be/TKIZh-GNk3A?si=OrlghuZbMjxhEUSG

7 https://gmarx.fflch.usp.br/boletim-ano2-13

8 CIDINHO; DOCA. Rap da Felicidade. Intérpretes: Cidinho; Doca. YouTube, vídeo publicado em 06 dez. 2017. Disponível em: https://youtu.be/7pD8k2zaLqk?si=XcSeOBOc5-cMOeMH

9 POZE DO RODO, MC. Talvez. Intérprete: MC Poze do Rodo. YouTube, vídeo publicado em 10 nov. 2022. Mainstreet Records. Disponível em: https://youtu.be/QQQqkDD7i8Y?si=SHD7blTdm7o5Xmku

10 EMICIDA. Nóiz. Intérprete: Emicida. YouTube, vídeo publicado em 22 ago. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZsrHlbPtpZg

11 https://ponte.org/pms-mataram-jovem-cego-para-vingar-morte-de-colega-diz-mp/

12 Vide sobre o caso em Campanha Sônia Livre: https://www.instagram.com/sonialivreoficial/

  • Foto: 2022 AP Photo/Silvia Izquierdo

DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO: TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS, O REGIME JURÍDICO DO TRABALHO E DESAFIOS LEGAIS DAS PLATAFORMAS E DA AUTOMAÇÃO – resenha

Oscar Krost

Vivemos em um tempo volátil e desterritorializado, em que a Modernidade Líquida descrita por Bauman evapora, dando lugar a uma fase gasosa, literal e figurativamente representada pela nuvem.

A ausência de parâmetros, reflexões e debates qualificados amplia a sensação de sermos levados pela correnteza dos acontecimentos sem qualquer escolha.

E aqui a obra Digitalização do trabalho: transformações tecnológicas, o regime jurídico do trabalho digital e desafios legais das plataformas e da automação, de Rafael Foresti Pego, ganha importância. Trata de um tema mais do que urgente, com didática, coragem e profundidade, sem desviar dos mais espinhosos dilemas que se sucedem sem trégua.

Fruto de pesquisa de Doutoramento junto à Universidad Complutense dr Madri (Espanha), sob orientação da Professora María Emília Casas Baamone, aliada à vasta experiência como Procurador do Trabalho (PRT4), o livro agrega saberes históricos, sociológicos e jurídicos, sem se afastar dos Princípios do Direito do Trabalho, das conquistas constitucionais e, o principal, da centralidade do ser humano para o Direito Contemporâneo, inclusive no plano transnacional, a partir das normativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Ao longo de 3 capítulos muito bem estruturados, e cerca de 600 páginas, Foresti Pego discorre com mestria sobre as transformações no trabalho e na organização da atividade produtiva, a digitalização e os elementos da relação de emprego e a digitalização do trabalho, apresentando um sem número de possibilidades aos atores jurídicos. Sem desviar por um parágrafo sequer de seu olhar humanista e garantista, consegue resgatar tanto a curiosidade, quanto a esperança de quem o lê, por dias melhores aos trabalhadores, por vezes tele, em outras, nem tanto.

As referências bibliográficas e jurisprudenciais são atuais e conectadas, com destaque ao manejo do Direito Comparado. Para além de lançar mão de legislação comparada, o autor expõe na prática e sem melindres a relevância do diálogo das fontes para a preservação e o avanço da vocação protetiva, sem a qual podemos ter qualquer coisa, exceto Direito do Trabalho.

Parabéns e obrigado, Professor Rafael e Editora Mizuno.

Ótima leitura a todos e a todas.

A INCONSTITUCIONALIDADE DA “LEI DAS BETS” E O PARADOXO DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL COMO OPERADORA ESTATAL DE APOSTAS*


Larissa Matos – Advogada do Sales Matos Advocacia. Pós-doutora em Direito do Trabalho (USP). Doutora em Direito do Trabalho (USP). Doutorado sanduíche na Universidad de Barcelona (Programa CAPES-PRINT). Mestra em Direito do Trabalho pela Universidad de Palermo. Diretora da Escola Superior de Advocacia da ABRAT (gestão 2024/2026). Professora de cursos e de pós-graduação. Coautora do livro Impactos de Apostas Online no Direito do Trabalho. Autora do livro Inteligência Artificial, Algoritmos e Direito do Trabalho. Instagram: @direitolarissamatos. Email: larissamatos@salesmatos.adv.br

A chamada “Lei das Bets” (Lei nº 14.790/2023), que regulamenta a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa no Brasil, não condiz com os compromissos estabelecidos pela nossa Constituição Federal de 19881 em relação aos princípios que estruturam a República. A norma legitima e amplia a exploração de uma atividade que, na prática, estimula o vício2, o adoecimento psíquico e a desorganização econômica de famílias inteiras3. Segundo dados do Banco Central de abril deste ano, os apostadores destinaram até R$ 30 bilhões por mês a bets4.

Trata-se de uma legislação que afronta os valores fundantes da Constituição Federal de 1988, especialmente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o valor social do trabalho (art. 1º, IV), a promoção da saúde como direito fundamental (art. 6º e 196) e a busca do bem-estar coletivo como objetivo da República (art. 3º, IV).

Compreendo que o compromisso do Estado brasileiro, consagrado na Constituição Federal de 1988, é com o cidadão, sua dignidade, sua felicidade, sua vida e sua saúde. Tanto é que o art. 6º da CF/88 assegura a saúde como direito social fundamental, e o art. 196 impõe ao Poder Público o dever de adotar políticas que reduzam o risco de doenças e outros agravos.

Assim, ao estimular a prática de apostas, cuja natureza viciante/patológica é amplamente reconhecida5 pela Organização Mundial de Saúde (OMS)6 e pelas Nações Unidas7, o Estado viola o pacto constitucional de promoção do bem-estar, substituindo a proteção pelo incentivo ao risco, pois as chamadas bets promovem dependência, concentração de riqueza (nas mãos de poucos), perdas, dores e sofrimentos, especialmente para a camada mais pobre da população8.

Logo, ao legitimar um modelo econômico fundado no azar, o Estado se distancia de sua missão constitucional de garantir condições para que as pessoas vivam com autonomia, saúde e felicidade (valores que compõem o núcleo essencial da dignidade humana) para promover práticas que geram dependência e destruição (de famílias, de pequenos negócios, de postos de trabalho…) 9. Inclusive, estudantes já deixam de frequentar Universidades em razão do endividamento10.

Portanto, entendo que do ponto de vista constitucional, a “Lei das Bets” padece de vícios insanáveis, uma vez que o Estado estimula condutas contrárias à saúde pública, em desacordo, especialmente, com o art. 196 da CF/88, que impõe ao Poder Público o dever de garantir políticas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos.

Ademais, o mesmo Estado que criminaliza condutas socialmente perigosas, bem como regula a publicidade de bebidas e cigarros, passa a estimular comportamentos de risco (financeiro, psicológico, de vida e de saúde) que nenhuma arrecadação fiscal consegue conter, compensar ou minimizar, pois ainda que a arrecadação formalmente se equiparasse aos gastos com fiscalização e tratamento de dependentes, a dívida social permaneceria impagável, uma vez que o vício em apostas, reconhecido como transtorno de saúde pela OMS, corrói o núcleo familiar, fomenta o endividamento e compromete a produtividade laboral, violando o dever estatal de garantir a saúde (art. 196), a proteção à família (art. 226), o valor social do trabalho (art. 1º, IV) e o bem-estar de todos (art. 3º, IV).

O próprio Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático, composto pelos Ministérios da Fazenda, da Saúde, do Esporte e pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, reconheceu expressamente que a exploração das apostas demanda regulação rigorosa e políticas públicas integradas de proteção à saúde mental e à economia popular11.

No relatório final, publicado em setembro de 2025, o GTI apresentou um plano de ação nacional com medidas de prevenção, redução de danos e assistência aos apostadores, incluindo o desenvolvimento de uma plataforma de autoexclusão centralizada, que permitirá ao cidadão bloquear seu CPF de todos os sites de apostas licenciados, impedindo novos cadastros e o recebimento de publicidade. O documento também prevê a qualificação de 20 mil profissionais do SUS para atendimento de pessoas com transtorno do jogo, a criação de diretrizes mínimas de atendimento ao apostador, o uso de autotestes padronizados de saúde mental, e campanhas educativas sobre integridade esportiva e manipulação de resultados12.

Só disso já se extrai a gravidade do problema, bem como se nota o desequilíbrio entre o lucro privado e o custo público. Enquanto as plataformas de apostas acumulam lucros bilionários, é o Estado (e, portanto, toda a sociedade) quem arca com os ônus sociais, econômicos e sanitários decorrentes do vício e do endividamento. A máxima jurídica segundo a qual “quem aufere o bônus deve suportar o ônus” simplesmente se esvai nesse contexto, pois o bônus fica concentrado nas mãos das casas de apostas, enquanto o ônus é distribuído ao erário, às famílias e ao sistema público de saúde.

Portanto, causa perplexidade cogitar que um banco público, como a Caixa Econômica Federal (CEF), instituição centenária cuja missão institucional sempre esteve associada à inclusão social, à habitação popular e ao fomento do desenvolvimento nacional, se envolva na promoção de bets.

Ao ingressar nesse mercado, a Caixa abandona sua vocação histórica de agente social e se converte em um instrumento perverso de transferência regressiva de renda, ao captar recursos das camadas mais pobres da população e, assim, legitimar um modelo econômico que explora o desespero, a ilusão e o adoecimento.

Até porque, em termos práticos, quem realmente ganha nas apostas, de forma massiva e expressiva, são apenas os donos das casas e das plataformas digitais. O restante da população, em especial os mais pobres, ficam a ver navios.

E, nessa dinâmica, parte expressiva (ou total) da renda das famílias brasileiras, antes destinada ao consumo de bens e serviços locais (ex.: restaurantes, comércio de bairro, vestuário, turismo, lazer etc.), passa a ser drenada para plataformas virtuais, muitas delas sediadas fora do país, numa transferência de recursos que reduz a circulação de dinheiro nas economias regionais, enfraquece o pequeno empreendedor, o prestador de serviços e o setor de turismo, comprometendo o desenvolvimento local.

Em municípios cuja base econômica depende fortemente do serviço público e do turismo, a exemplo da cidade de Natal, o impacto é ainda mais severo. Logo, em vez de fortalecer o tecido econômico e social das cidades, o Estado, ao legitimar esse modelo, contribui para a centralização da riqueza nas mãos de poucos operadores, contrariando os princípios constitucionais da função social, da redução das desigualdades e da valorização do trabalho humano.

Desse modo, perdemos todos, exceto os donos da bets.

* Texto originalmente publicado em <https://www.congressoemfoco.com.br/artigo/113626/a-inconstitucionalidade-da-lei-das-bets&gt;. Acesso em: 06 nov. 2025.

1 Inclusive, tramita no STF a ADI 7721/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, cujo requerente é a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), bem como a ADI 7723/F, de mesma relatoria, ajuizado pelo partido Solidariedade.

2 MATOS, Larissa; KROST, Oscar. Impactos de Apostas Online no Direito do Trabalho. Leme-São Paulo: Mizuno, 2025.

3 FERNANDES, Hudson; CORREA, Henrique. Vício em “bets” e jogos de aposta online afetam famílias, mercado de trabalho e economia. Inter TV Grande Minas, G1, 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/grande-minas/noticia/2025/04/05/vicio-em-bets-e-jogos-de-aposta-online-afetam-familias-mercado-de-trabalho-e-economia.ghtml. Acesso em: 25 out. 2025.

4 MÁXIMO, Wellton. Apostadores destinam até R$ 30 bi por mês a bets, informa BC: presidente Galípolo e técnicos falaram à CPI no Senado. Agência Brasil, 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-04/apostadores-destinam-ate-r-30-bi-por-mes-bets-informa-bc. Acesso em: 25 out. 2025.

5 MATOS, Larissa; KROST, Oscar. Impactos de Apostas Online no Direito do Trabalho. Leme-São Paulo: Mizuno, 2025.

6 WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Gaming disorder. Disponível em: https://www.who.int/standards/classifications/frequently-asked-questions/gaming-disorder. . Acesso em: 25 out. 2025.

7 NAÇÕES UNIDAS. Classificação de doenças da OMS inclui dependência de videogame e apostas. ONU News (PT), 24 out. 2025. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/10/1851328. Acesso em: 25 out. 2025.

8 MÁXIMO, Wellton. Beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bi em bets em agosto: Banco Central divulgou dados a pedido de senador Omar Aziz. Agência Brasil, 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-09/beneficiarios-do-bolsa-familia-gastaram-r-3-bi-em-bets-em-agosto. Acesso em: 25 out. 2025.

9 MATOS, Larissa; KROST, Oscar. Impactos de Apostas Online no Direito do Trabalho. Leme-São Paulo: Mizuno, 2025.

10 EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO (EBC). Pesquisa mostra que gastos com jogos online atrasam os estudos. Repórter Brasil Tarde, 2025. Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil-tarde/2025/07/pesquisa-mostra-que-gastos-com-jogos-online-atrasam-os-estudos. Acesso em: 25 out. 2025.

11 BRASIL. Ministério da Fazenda. Grupo de Trabalho de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático publica relatório com plano de ação. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/grupo-de-trabalho-de-saude-mental-e-de-prevencao-e-reducao-de-danos-do-jogo-problematico-publica-relatorio-com-plano-de-acao. Acesso em: 25 out. 2025.

12 BRASIL. Ministério da Fazenda. Grupo de Trabalho de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático publica relatório com plano de ação. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/grupo-de-trabalho-de-saude-mental-e-de-prevencao-e-reducao-de-danos-do-jogo-problematico-publica-relatorio-com-plano-de-acao. Acesso em: 25 out. 2025.


“Água mole em pedra dura”: primeiras impressões sobre o relatório do GTI sobre Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático no Brasil

Oscar Krost – Juiz do Trabalho (TRT12)

 

Em meio a uma verdadeira epidemia silenciosa promovida pela disseminação da prática de apostas via bets (plataformas virtuais voltadas ao jogo em dinheiro), cujos efeitos há algum tempo ocupam os noticiários, os portais de notícias e este blog,[1] o Governo Federal adotou medidas efetivas de enfrentamento do problema. Independente do posicionamento pessoal de cada um e de cada uma, fato é que estamos diante de uma questão de saúde pública, cujos efeitos afetam todas as áreas da vida, da família à economia, passando pela educação, trabalho e meio ambiente.

Fruto de uma atuação conjunta dos Ministérios da Fazenda, Saúde e Esporte, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático, trouxe a público relatório dos trabalhos iniciados em dezembro de 2024, pelo qual apresenta um plano de ação para tutela da saúde mental de pessoas envolvidas em apostas. Nele, prevê “ações de prevenção, redução de danos e assistência a pessoas em situação de comportamento de jogo problemático persistente e recorrente, no contexto da exploração comercial das apostas de quota fixa”.[2]

Embora o marco regulatório do fenômeno remonte o ano de 2018, pela publicação da Lei nº 13.756, criadora da modalidade aposta por quota fixa, após diversas ações e iniciativas do Poder Público, inclusive no campo legislativo, somente em 06 de dezembro de 2024, pela Portaria Interministerial MF/MS/MESP/SECOM nº 37, foi instituído o GTI, cujas conclusões vêm a público no apagar das luzes de setembro de 2025.[3] O documento conta com 30 laudas e é dividido em 04 partes: contextualização, plano de ação, participação de convidados externos e considerações finais.

Pelos limites do comentário aqui apresentado e diante da relevância/qualidade do relatório como um todo, cuja leitura recomendo, restrinjo a análise ao segundo item, sobre o plano de ação. A proposta se divide em 07 tópicos e busca enfrentar a questão sobre diversos focos:

Elaboração de modelo de autoteste de saúde padronizado: pautado na Portaria SPA/MF nº 1.231/24, art. 4º, VII,[4] sugere que o agente de apostas (bets), independentemente de solicitação, promova medidas de limites, vinculados a alertas ou bloqueios, de determinadas pessoas, após testagem e avaliação dos respectivos dados. Propõe a criação de uma “classificação de perfil”, a ser avaliada e tratada em conformidade com uma “política de jogo responsável”.

Plataforma de Autoexclusão Centralizada: também com fundamento na Portaria SPA/MF nº 1.231/24, art. 4º, IV e VII, e art. 11, VII, apresenta a ideia de estender a autoexclusão do consumidor-apostador, atualmente disponível sob modalidade individual (um comando por casa de aposta), a um nível coletivo (comando único com alcance a todas as operadoras autorizadas). Bastaria uma única ação para assegurar a salvaguarda do sujeito a todo o sistema legalizado de apostas online.

Qualificação dos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para acolhimento e cuidado de pessoas com problemas relacionados às apostas: diante do alarmante aumento do número de casos que bate às portas das instituições que formam o Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive em busca de benefícios previdenciários, sugere a imediata capacitação dos profissionais que nele atuam. O objetivo é oferecer cuidado e realizar encaminhamentos adequados, especialmente em sede de saúde mental, de modo integrado e contínuo.

Estabelecimento de diretrizes mínimas de atendimento ao apostador, com ênfase à saúde: em virtude da gravidade e da sensibilidade com que as apostas alcançaram no país, recomenda a criação de canais de atendimento e ouvidoria da pessoa que aposta. A proposta é franquear um serviço em tempo real, aprimorando as vias existentes, em um modelo semelhante ao ofertado pelos conhecidos “Disque 100” e “Disque 180”.

Elaboração de material educativo sobre integridade esportiva e prevenção à manipulação de resultados em apostas esportivas, voltados a atletas: a preocupação da proposta é promover a educação voltada para ações que protejam a higidez mental dos atletas envolvidos nas modalidades abrangidas pelo sistema de apostas. Leva em conta as pressões social e midiática feita sobre esses profissionais, em ameaça ao desenvolvimento equilibrado da prática esportiva profissional, além de apresentar duas cartilhas complementares, elaboradas pelo Ministério do Esporte.[5]

Campanha de comunicação institucional: reconhece a urgência de informar e de conscientizar a população sobre os riscos e as consequências das apostas por meio de publicações e de campanhas publicitárias de amplo alcance. A sugestão busca por em evidência a regulação, a saúde e a educação financeira, entendidas como “pilares” da ação do Poder Público.

Criação de Comitê de Prevenção e Redução de Danos Relacionados a Aposta de Quota Fixa cuidados em saúde mental: propõe a criação, após a dissolução do GTI, de um agente perene para estudo, análise e atuação sobre o tema, reconhecendo sua relevância e complexidade. A partir de um ideal de  cooperação, visa à criação de um ambiente institucional consultivo que garanta a continuidade da articulação interministerial, o monitoramento e a avaliação da implementação de políticas públicas de prevenção/cuidado, a promoção de campanhas educativas e de conscientização e o estreitamento do diálogo entre governo, sociedade civil e especialistas.

Pautado em tecnologia de vanguarda, a exemplo da programação algorítmica, IA e ciências comportamentais, e impulsionado por ações de marketing agressivas, ostensivas e onipresentes, o fenômeno das apostas desafia e ameaça toda a sociedade. Nenhum campo do saber humano, sozinho, possui a menor chance de apresentar respostas, sequer contando com condições de compreender, de modo razoável, o que vem acontecendo e está por acontecer.

A ludopatia – acometimento de vício ou compulsão por apostas –, topo da escalada de envolvimento nocivo com jogos a dinheiro, embora diagnosticável e tratável, não tem cura. Não pode, portanto, ser menosprezada, minimizada e enfrentada como moda ou tendência.

E justamente por isto, mas não apenas, louvável, na trilha do relatório do GTI, a publicação da Instrução Normativa SPA/MP nº 22, em 30 de setembro de 2025,[6] proibindo o cadastramento em plataformas de apostas de pessoas beneficiárias de Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do bolsa-família. As bets terão 30 dias (art. 15), para implementar a medida de proteção a sujeitos em situação de maior vulnerabilidade social e, portanto, expostos a chance de desvio da finalidade de subsistência básica das quantias recebidas.

É imprescindível que cada ator social assuma, por menor que seja, sua responsabilidade no enfrentamento das mazelas causadas pela prática desenfreada de apostas online, como o vício, a compulsão, o adoecimento e até mesmo a morte. Constância, continuidade e firmeza são atributos essenciais na tentativa de reequilibrar o “jogo” em andamento.

No campo laboral, especificamente, “deve-se aventar, dadas a complexidade, profundidade e amplitude do problema, a possibilidade de ações conjuntas e interinstitucionais, de todos os sujeitos trabalhistas”,[7] considerando a natureza difusa da saúde e do meio ambiente, bens jurídicos tutelados e ameaçados. Empregadores, CIPAs, sindicatos, Ministério Público do Trabalho são agentes essenciais no processo de enfrentamento do fenômeno que também atinge a integridade das relações laborais.

Que do campo das ideias, brotem as ações e, daí, as mudanças.

A sorte está lançada.


[1] MATOS, Larissa; KROST, Oscar, Apostas online e Direito do Trabalho: autonomia da vontade, justa causa ou patologia incapacitante?, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2025/01/11/apostas-online-e-direito-do-trabalho-autonomia-da-vontade-justa-causa-ou-patologia-incapacitante/>,  publicado em 11 jan. 2025, e KROST, Oscar. Ludopatia não é piada, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2025/06/28/ludopatia-nao-e-piada/&gt;, publicado em 28 jun. 2025.

[2] BRASIL, Ministério da Fazenda. Grupo de Trabalho de Saúde Mental e de Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático publica relatório com plano de ação, disponível em <https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/grupo-de-trabalho-de-saude-mental-e-de-prevencao-e-reducao-de-danos-do-jogo-problematico-publica-relatorio-com-plano-de-acao&gt;. Acesso em: 05 out. 2025.

[3] Íntegra do relatório disponível em <https://www.gov.br/fazenda/pt-br/composicao/orgaos/secretaria-de-premios-e-apostas/publicacoes/relatorio-gt-interministerial-final.pdf>. Acesso em: 05 out. 2025.

[4][4] Portaria SPA/MF nº 1,231/24, disponível em < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-spa/mf-n-1.231-de-31-de-julho-de-2024-575670297>. Acesso em: 05 out. 2025.

[5] Cartilha de Saúde Mental e Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático e Cartilha de Integridade Esportiva e Prevenção à Manipulação de Resultados.

[6] Inteiro teor da Instrução Normativa disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-spa-/mf-n-22-de-30-de-setembro-de-2025-659602369>. Acesso em: 05 out. 2025.

[7] MATOS, Larissa; KROST, Oscar. Impactos de apostas online no Direito do Trabalho. Leme/SP, Mizuno, 2025, p. 135.

Carandiru, uberização e o Judiciário: o racismo que estrutura o trabalho no Brasil

O ser humano é descartável no Brasil

Como modess usado ou Bombril

Cadeia? Guarda o que o sistema não quis

Esconde o que a novela não diz

(Racionais MCs, Diário de um detento)

 

Helena Pontes dos Santos – mestra em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC-USP), jurista, feminista negra, ativista antirracista e militante do Movimento Negro Unificado (MNU). Atua no campo do Direito do Trabalho a partir de uma perspectiva crítica e negra, com ênfase nas encruzilhadas entre gênero, raça, classe e capitalismo periférico. Dedica-se à denúncia das formas jurídicas de manutenção da desigualdade racial no Brasil e à luta por justiça histórica e trabalhista para o povo negro

 

Violências raciais e de classe se entrelaçam no Brasil.

Pensando a partir da data de 02 de outubro de 2025, me revolta ver que não tiramos, enquanto sociedade, o dia para refletir sobre o modo cruel como pessoas negras, em geral, e homens negros, em particular, são tratados como “Modess usado ou Bombril”[1] neste país.

São os corpos negros – e estamos apontando há quase uma década apontando isso com pesquisas e textos realizados a partir dos dados oficiais, a fim de Negritar o Direito do Trabalho – os alvos principais da superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente brasileiro.

Este sistema tem, historicamente, nas jurisprudências e doutrina dominante do Direito do Trabalho, ferramentas importantes para a manutenção do imobilismo social do povo trabalhador negro em nosso país.

Neste sistema, de um lado temos as interpretações ideológicas do Direito do Trabalho que permitem a superexploração pela via da precarização e, de outro, o sistema prisional como meio de controle da massa rebelde que não se adéqua às regras do jogo de passividade na base da porrada.

Pelo dia 02 de outubro de 1992, deveríamos estar nos lembrando e rendendo homenagens aos 111 presos vitimados pelo braço armado do Estado, na cidade de São Paulo, no Carandiru: pessoas mortas por serem negras, pobres, periféricas; vitimadas pelo Estado e pelo racismo por omissão de toda uma sociedade que vê o encarceramento em massa de jovens negros e alega ignorância e desconhecimento. Uma sociedade que assiste sorridente e silente aos corpos negros tombados para manutenção de sua vida confortável como quem assiste um filme da Sessão da Tarde ou, como Gilberto Gil e Caetano Veloso[2] poetizaram:

o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina

111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos.

O 02 de outubro de 1992 é só um dentre os tantos massacres e chacinas, capítulos que se somam na história do genocídio do povo negro brasileiro e que vão sendo esquecidos, não lembrados e seguem injustiçados.

Pelo que vimos e ouvimos dia 01 de outubro de 2025, no Supremo Tribunal Federal (STF) – quando os ministros começaram a julgar duas ações em que se debatem a natureza da relação de trabalho entre plataformas digitais de transporte de pessoas e de mercadorias e motoristas e entregadores Reclamação 64018 e Recurso Extraordinário 1446336 – deveríamos estar incomodados em ver, mais uma vez, o destino de uma maioria negra na mão de um judiciário majoritariamente branco que por vezes parece viver em um mundo paralelo, numa espécie de Lalaland pelo relatos e falas.

O que se está debatendo na Corte Suprema brasileira – e, portanto, em disputa – é se motoristas e entregadores que trabalham para empresas como Uber, 99, Rappi e similares são ou não empregados, devendo, em caso afirmativo, ter direito a carteira de trabalho assinada e todos os direitos trabalhistas básicos inerentes a isso – jornada, descanso semanal remunerado, horas extras, férias, 13º salário, previdência, dever do empregador em garantir um meio ambiente de trabalho saudável, dentre tantos outros.

Caso não, continuarão sem vínculo empregatício e sem proteção, submetidos apenas às regras feitas e definidas unilateralmente pelas plataformas.

Esse julgamento está permeado, como não se pode deixar de negritar, pela questão racial[3].

Estudos recentes indicam que entre entregadores, cerca de 68% se autodeclaram pretos ou pardos, e entre motoristas essa proporção gira em torno de 62%[4].

Esses dados, portanto, reforçam o que os olhos atentos vêm no dia a dia das cidades brasileiras: a disputa por vínculos de emprego nas plataformas não é neutra, pois atinge majoritariamente trabalhadores negros, comprovando o caráter racializado, também aqui, da precarização.

Não se pode deixar de anunciar o óbvio: se o STF decidir negar vínculo de emprego, o que dirá é que essa massa de trabalhadores negros não merece sequer o mínimo de direitos que a CLT garante.

E, convenhamos, isso não é novo no Poder Judiciário que criou a súmula nº 333 do TST e nega ainda hoje direitos mínimos às trabalhadoras domésticas “diaristas”.

Silenciar, o muito ou o pouco, naturaliza a ideia racista de que a pessoa negra é desqualificada e, portanto, sua força de trabalho, igualmente desqualificada, mais barata e sua vida descartável!

Afinal, é disso que se trata a ideia de que existem trabalhadores que podem vender diretamente sua força de trabalho e, em troca de direitos trabalhistas, terem sua mais valia extraída, ao passo que existem trabalhadores que não têm esse direito e que terão, sempre, que agradecer por ter sua força de trabalho intermediada e vendida por outrem, que aufere lucro sem dar contrapartida mínima: condições de reprodução da força de trabalho.

Eu nunca fui encarcerada e nem por isso me silencio ou deixo de render minhas homenagens todos os dias 02 de outubro, ano após ano. Eu não sou uma trabalhadora uberizada e nem por isso eu posso me calar e assistir o que está se passando. O momento exige reflexão e posicionamento.

Eu era nova, mas lembro daquele dia! Eu lembro do horror no rosto das famílias! 

Eu tenho completa noção de que por não assumirmos a postura real de “ninguém solta a mão de ninguém”, numa unidade de pessoas exploradas nesse sistema capitalístico, acabamos vendo, anestesiados mortes e mais mortes, físicas ou não-fisicas de trabalhadores negros cotidianamente.

Sim, mortes não-físicas também.

Como vive uma mãe, esposa, amiga depois de atravessar a perda de um filho, companheiro de vida, amigo vitimado pelo terrorismo de Estado?

Como vivem as pessoas que passam por violência racial psicológica e verbal?

Como vivem os que movimentam as cidades, nos dias atuais, buscando e levando de tudo e que não recebem salários que lhes possibilitem viver com dignidade, passando por sede, fome, frio, expostos às intempéries, ajuntados nas esquinas –  como nossos antepassados ganhadores, nos cantos – aguardando a próxima entrega?

Esse país mata pessoas negras com a conivência e o “silêncio sorridente”  de pessoas brancas igualmente exploradas, que aceitam suborno sistêmico de não serem as primeiras vítimas do Estado, de terem acesso aos postos de trabalho com alguma estabilidade e direitos celetistas, de lhes ser permitidas voltar suas frustrações com o sistema contra seus pares de classe e desiguais de raça através de ódio racial. É preciso romper com essa lógica perversa que nos fragmenta e impede de avançar; com o pacto silencioso de manutenção da desigualdade,. Essa lógica que está levando a todas nós, pessoas trabalhadoras, a vivermos mais e mais doentes física, emocional e psicologicamente.

Mas o que existe aqui é um onde a branquitude precarizada aceita o privilégio mínimo de não ser o alvo principal — e, muitas vezes, se torna aliada da violência estrutural, reproduzindo exclusões e silenciamentos. Ou seja, aceita suborno sistêmico. Aliás, por isso também não se vê o recorte de raça aplicado nesse caso, sendo propositalmente escondido este viés essencial do debate.

Eu não consigo deixar de me manifestar e posicionar diante da chacina do Carandiru e lembrar que os assassinos foram inocentados pelo Judiciário. Esse mesmo Poder Judiciário, que não por coincidência, inocentou e inocenta assassinos de pessoas negras, é o mesmo que iniciou ontem o julgamento sobre o reconhecimento ou não de vínculo de emprego de trabalhadores explorados pelas plataformas como Uber e Rappi sem se ouvir citar, uma vez só que fosse, a questão racial.

Como conseguimos passar dia 02 de outubro sem lembrar dos irmãos massacrados pelo terrorismo de Estado? Será que teremos num futuro próximo o dia 01 de outubro como o dia fatídico em que se iniciou a negativa completa de acesso de negros a devida reparação via proteção de sua dignidade na exploração de sua força de trabalho?

Esse julgamento é um marco, mas também é um espelho.

O STF começou a discutir se trabalhadores de aplicativos devem ou não ser reconhecidos como empregados com direitos — e, mais do que isso, se o modelo de trabalho atual, ideologicamente vendido pelas empresas exploradoras como “flexível”, não é, na verdade, uma forma disfarçada de escravização moderna, vez que o que cada trabalhador aufere depois de longas jornadas de trabalho (que em muito extrapolam a jornada constitucional de oito horas) é menos do que o necessário para sustento seu e de sua família com a dignidade preconizada na Constituição Federal.

Esse julgamento pode significar um imenso retorno ao passado, com a pacificação, pelo Judiciário, do entendimento de que corpos negros são, também na seara trabalhista, descartáveis e sua força de trabalho poderá ser explorada sem descanso, sem direitos, sem voz, sem possibilidade de se organizarem coletivamente. O correspondente, na seara trabalhista, à autorização dada pelos Tribunais de Justiça de tantos estados brasileiros à desumanização de corpos negros. Não, não é exagero.

E é sobre isso que se trata todo o rememorar de 02 de outubro: desumanização do povo negro, pois o mesmo sistema que mata jovens negros com a bala “perdida” da polícia, que os encarcera para fazer morrer de pneumonia ou em chacinas nos presídios, mata também permitindo a exploração até a exaustão das forças, a morte pela fome, pelo adoecimento mental e físico de quem passa 12, 14, 16 horas por dia nas ruas para garantir uma renda que mal paga o alugue e alimentação diária rica em sódio e carboidratos, que encurtaram sua vida produtiva.

A lógica é a mesma: a vida negra vale menos. Seja na cela, na favela ou na corrida de aplicativo. E ainda há quem tenha a coragem de dizer que esses trabalhadores “escolhem” estar ali e que não querem CLT.

Não é escolha quando o Estado nega educação, saúde, moradia e políticas públicas que garantam uma vida minimamente digna. Não há opção quando os direitos da CLT, se chegam para o povo negro, chegam sempre rebaixado e descumpridos; quando ser CLT é sinônimo de que o empregador tem poder diretivo para impor absurdos e ao empregado é negado o direito de legítima defesa, mesmo em caso de franco abuso.

Não é humano escolher a CLT quando o Judiciário permite que a subordinação nas relações de emprego no Brasil, seja, na prática, sinônimo de assédio moral constante, com imposição de condições de trabalho, não raramente, adoecedoras, vez que a sociedade carrega no que tange a relações de trabalho, mentalidade escravocrata. O que existe é coerção.

No sistema capitalista eu preciso comer e se eu consigo tirar o que mais se aproxima do necessário me submetendo à exploração dos aplicativos, é ali que se fica, nas condições que existem… A tal da “escolha” se dá porque os direitos garantidos aos celetistas raramente se realiza na vida do empregado negro e porque não é possível pensar em direitos quando se luta por sobrevivência.

Se celetista fosse estável e todos os direitos presentes na CLT fossem de fato cumpridos, bem como o artigo constitucional referente ao salário mínimo, quem diria que não quer ser celetista? O que não se quer é precarização documentada, adotando-se o discurso ilusório de ser o dono do próprio tempo, promessa que não se configura em real para quem trabalha em plataforma, vez que é esta quem determina tudo: rota, tempo, preço, quem entrega para quem.

É por isso que a decisão do STF importa tanto. Não estamos falando apenas de direitos trabalhistas. Estamos falando de finalmente haver reparação histórica para o trabalhador negro ontem chamado de ganhador e hoje chamado de entregador. De começar a reconhecer que essas pessoas, majoritariamente negras, são exploradas dentro de uma engrenagem que lucra com o seu sofrimento e que como sociedade já chegou a hora de exigirmos o que a elite brasileira nega ao povo negro: que se assine a CTPS de todas estas pessoas precarizadas, conferindo reconhecimento ao digno trabalho executado por quem edificou este país, inclusive presos que trabalham para redução de pena.

Mas, independente do resultado, bebamos da rebeldia dos jovens que sentem e cantam: “Nunca fui fraco, sempre fui forte / Não vai cair uma lágrima de dentro dos meus olhos /Sabe por que? O Estado massacra demais”[5].

O STF ao decidir sobre quem tem e quem não tem direito ao trabalho digno, permitirá, caso siga a linha de permitir a precarização das relações de trabalho e descaracterizando as de emprego, que se prossiga com o genocídio do povo negro que morre, desde que pisou nessa terra, de tanto trabalhar.

STF, o povo negro trabalhador quer viver!

Resumo: Carandiru não é apenas memória, mas espelho do presente. Entre a bala e o aplicativo, a vida negra continua sendo tratada como descartável no Brasil. A escolha é nítida, escura e negritada: cabe ao Judiciário decidir se seguirá legitimando o genocídio do povo negro brasileiro ou se terá coragem histórica de reconhecê-lo e enfrentá-lo. 

 

(ORUAM –

 

É só mais um revés que não deterá a classe trabalhadora! Venceremos.

 

São Paulo, 02 de outubro de 2025.

 

 


[1]RACIONAIS MC’S. Diário de um detento, 1997.

[2] GIL, Gilberto. VELOSO, Caetano. Haiti, 1993.

[3]PRETA, A. Jovens negros têm “uberização” do trabalho como uma das poucas alternativas ao desemprego. Disponível em: <https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/jovens-negros-tem-uberizacao-do-trabalho-como-uma-das-poucas-alternativas-ao-desemprego/&gt;. Acesso em: 01 out. 2025.

[4]HIRABAHASI, G. Mais de 60% dos motoristas e entregadores de aplicativo são negros, diz estudo. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mais-de-60-dos-motoristas-e-entregadores-de-aplicativo-sao-negros-diz-estudo/&gt;.

 

[5] ORUAM. In:Caxias24hs on Instagram: “O cantor Oruam postou em seu Instagram uma música que compôs dentro do Complexo de Presídios de Bangu. E aí, gostaram?” Disponível em: <https://www.instagram.com/reel/DPNNPZBDjL4/&gt;. Acesso em: 1 out. 2025.

 

SAÚDE MENTAL, TRABALHO E DESIGUALDADES: REFLEXÕES SOBRE A ATUALIZAÇÃO DA NR-1

Sonilde LazzarinDoutora em Direito (PUCRS), com Pós-Doutorado em Democracia e Direitos Humanos (Human Rights Centre – Ius Gentium Conimbrigae – Coimbra, Portugal); Advogada Sócia no escritório Lazzarin Advogados Associados; e Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

Helena Lazzarin – Doutora em Direito (UNISINOS), com Pós-Doutorado em Direito do Trabalho (PUCRS); Advogada Sócia no escritório Lazzarin Advogados Associados; e Professora e Coordenadora do Núcleo de Direito Público e Social na Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

O número de doenças emocionais ocupacionais, ou seja, causadas ou agravadas pelo trabalho, está crescendo exponencialmente – e o debate sobre este fenômeno é urgente e necessário.

Atualmente, o Brasil tem o maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos. Dados de 2024 demonstram que o país registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais. Trata-se do maior número desde 2014.

Estamos diante de uma crise de saúde mental, o que impacta diretamente a vida de trabalhadores e trabalhadoras: dados estatísticos do Ministério da Previdência Social, sobre afastamentos do trabalho, evidenciam este cenário. Os dados explicitam que, no último ano, 2024, os transtornos mentais chegaram a uma situação incapacitante jamais presenciada anteriormente. Em comparação com o ano anterior, no qual foram registrados 283 mil afastamentos, as 472.328 licenças médicas concedidas representam um aumento de 68%.

E muitos desses casos têm origens ou agravamentos em função do trabalho exercido. Cobranças por metas inatingíveis, assédio moral, hiperconectividade, imediatismo ao atender demandas e ameaças constantes de demissão estão entre os fatores mais comuns, capazes de contribuir efetivamente para o adoecimento dos trabalhadores (Han, 2015).

Contudo, o número de adoecimentos emocionais é muito maior, se considerarmos os casos que não são notificados. Isso porque são considerados nos dados estatísticos apenas os trabalhadores com vínculo formal de emprego ou que, autônomos, contribuem para o Regime Geral da Previdência Social. Excluem-se dos dados os servidores públicos (vinculados aos Regimes Próprios de Previdência Social), e, também, os trabalhadores informais que, ao adoecerem, não fazem jus a qualquer benefício, pois não são vinculados a nenhum sistema previdenciário.

Com relação aos casos notificados, as enfermidades psíquicas que mais geraram concessão de benefícios por incapacidade temporária são ansiedade (141 mil), depressão (113 mil), transtorno bipolar, transtornos devidos ao uso de drogas, estresse grave e transtorno de adaptação.

Observa-se que a Síndrome de Burnout não está inserida neste rol. Em 2024, foram 4 mil afastamentos em função da enfermidade; mas estima-se que o número seja muito maior, porque, no caso da síndrome de burnout, há maior dificuldade em constatar o diagnóstico.

A Síndrome de Burnout, também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, corresponde a um distúrbio com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. O Ministério da Saúde (2024) salienta que a principal causa da doença é justamente o excesso de trabalho.

Faz-se importante mencionar que, em 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a Síndrome de Burnout na CID 11, com o código QD85. Com isso, a síndrome passou a ser reconhecida como doença ocupacional.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por sua vez, esclareceu que os segurados passaram, em média, três meses afastados, recebendo cerca de R$ 1.900,00 por mês. Considerando esses valores, o impacto pode ter chegado a quase R$ 3 bilhões em 2024. Isso significa que o impacto atinge, além do trabalhador adoecido e seus familiares, a sociedade como um todo, que arca com esse elevado custo.

O maior número de licenças está nos estados mais populosos, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No entanto, proporcionalmente, ao considerarmos o número de afastamentos em relação à população, os maiores índices foram registrados no Distrito Federal, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.

Não há uma explicação exata para o índice de cada estado, mas é preciso lembrar que, no caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, houve uma tragédia em 2024: a enchente que causou mortes e deixou milhares sem casa, afetando diversas esferas da vida dos trabalhadores.

Ainda, além de evidenciar diferenças entre estados, os dados do INSS permitem traçar um perfil dos trabalhadores atendidos: o maior percentual é de mulheres (64%), com idade média de 41 anos, com quadros de ansiedade e de depressão.

Mas por que as mulheres são a maioria? Isso se deve a fatores sociais, como sobrecarga de trabalho, menor remuneração, maior responsabilidade com o cuidado familiar e exposição a situações de violência.

Este cenário é evidenciado a partir da análise de outro conjunto de dados estatísticos: de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2024), as mulheres recebem salários inferiores, se comparadas aos homens, em 82% das áreas. Mesmo em atividades com maior presença feminina no Brasil, como Saúde, Educação, Artes, Cultura, Esporte e Recreação, registram-se salários médios menores para elas do que para eles.

Estima-se que o salário médio das mulheres é 17% menor que o dos homens. Essa situação é ainda mais agravada ao levar outros fatores em consideração – como ao comparar mulheres negras com homens brancos, por exemplo. Neste caso, mesmo em se tratando de iguais atividades, a diferença salarial passa para, em média, 56%.

Isso ocorre porque, conforme Crenshaw (2002), esses “eixos da subordinação” (gênero e cor da pele, por exemplo) se sobrepõem ou se entrecruzam, criando intersecções complexas. Uma mulher negra é atingida por opressões distintas, porém interconectadas, que a colocam em maior vulnerabilidade em comparação com as demais.

Ainda com relação à remuneração, a área em que as mulheres ganharam 309,4% menos do que os homens foi a de “fabricação de mídias virgens, magnéticas e ópticas”. No setor, homens ganharam R$ 7.509,33, enquanto mulheres ganharam, para a mesma função, R$ 1.834,09.

Além disso, o total de casos de feminicídio cresceu 10% nos últimos cinco anos. De dezembro de 2022 a dezembro de 2023, a violência sexual teve um aumento de 28%, e 59% dessas vítimas eram meninas de 0 a 14 anos.

A violência física, por sua vez, teve alta de 22% em todo o país. E há, ainda, crimes silenciosos, como a violência patrimonial – quando a vítima depende financeiramente do agressor –, que cresceu 35%; e a violência psicológica, que cresceu 20%. Por fim, mulheres também foram as mais afetadas pela pandemia, com maior índice de desemprego e trabalho não remunerado.

São exemplos que refletem o padrão social existente sobre as mulheres, que podem ser traduzidos em sobrecarga: ao mesmo tempo, elas têm salários menores, carga de trabalho não remunerado e, segundo o último censo do IBGE, as mulheres mantêm financeiramente 49,1% dos lares brasileiros. Isso significa 35 milhões de famílias no país. A maioria está na faixa etária a partir de 40 anos – a mesma idade média dos afastamentos por doença emocional. É possível observar, desse modo, como essas situações estão relacionadas entre si.

Conforme referido anteriormente, o racismo é também um complicador – especialmente para os transtornos mentais na população negra. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o número de suicídios é 45% maior entre pessoas pretas e pardas, em comparação às brancas.

Assim, considerando os dados estatísticos mencionados, demonstra-se a urgência de refletir e debater sobre os impactos do ambiente de trabalho na saúde emocional das pessoas; e também do impacto desse adoecimento em toda a sociedade. É preciso, pois, evidenciar essa crise e, sobretudo, enfrentá-la, combatendo suas origens.

Nesse sentido, recentemente o Ministério do Trabalho anunciou a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), com diretrizes sobre saúde emocional no ambiente do trabalho.

A NR-1 foi atualizada pela Portaria nº 1.419, publicada em 27 de agosto de 2024. Estabeleceu-se, inicialmente, que as alterações entrariam em vigor a partir de 25 de maio de 2025, contudo, posteriormente, a NR-1 teve sua entrada em vigor adiada para 25 de maio de 2026.

Com as atualizações, o Ministério do Trabalho passa a fiscalizar os riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (SST), o que pode, inclusive, acarretar multa para as empresas, caso sejam identificadas questões como metas excessivas, jornadas extensas, ausência de suporte, assédio moral, conflitos interpessoais, falta de autonomia no trabalho e condições precárias de trabalho.

Pela primeira vez, há a inclusão dos riscos psicossociais no Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO), tornando obrigatórias medidas preventivas para proteger a saúde mental dos trabalhadores. O objetivo da atualização é trazer mais clareza sobre o tema saúde mental dos empregados; e os critérios serão exigidos independentemente do tamanho da empresa.

Salienta-se que as Normas Regulamentadoras (NRs) têm como base legal a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e definem padrões mínimos que devem ser observados por empregadores e empregados. A NR-1, em particular, tem como foco principal estabelecer diretrizes gerais para a gestão da segurança e saúde no trabalho, servindo como base para as demais regulamentações.

Com a atualização que entrará em vigor em maio de 2026, essa norma ganhou novos contornos ao reformular o capítulo 1.5, intitulado “Gerenciamento de Riscos Ocupacionais”, e revisar o “Anexo I – Termos e Definições”. As alterações reafirmam o compromisso de promover um ambiente de trabalho mais seguro, inclusivo e adaptado às realidades contemporâneas do mundo laboral.

Entre as principais inovações promovidas pela Portaria nº 1.419, destacam-se: (a) a inclusão e consideração de novos riscos, que envolvem fatores como estresse, pressão por resultados e assédio moral, os quais podem impactar profundamente a saúde mental dos trabalhadores; (b) a gestão obrigatória desses riscos psicossociais, ou seja, as empresas devem mapear e mitigar fatores como estresse ocupacional, assédio moral, sobrecarga de trabalho e falta de apoio organizacional (nesse sentido, a norma também incentiva a implementação de políticas preventivas, como treinamento de lideranças e campanhas de conscientização); (c) a participação ativa dos trabalhadores no processo de gerenciamento de riscos; e (d) a adoção de estratégias eficazes para prevenir situações de assédio e violência no trabalho.

Destaca-se que, caso as empresas não atualizem o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) – no prazo estabelecido, serão notificadas e terão prazos para regularização. Em caso de descumprimento, estarão sujeitas a multas proporcionais ao número de funcionários, ao grau de infração e aos itens descumpridos. Por outro lado – e para incentivar consumidores –, empresas que cumprirem integralmente as diretrizes poderão ser certificadas com o selo de “Empresa Promotora de Saúde Mental”, concedido pelo Governo Federal, nos termos da Lei nº 14.831/24.

A inclusão dos riscos psicossociais como elemento central do PGR representa uma evolução no campo da segurança e saúde no trabalho. Ao reconhecer que a saúde mental é tão importante quanto a saúde física, a norma reflete uma preocupação com o bem-estar integral dos trabalhadores.

Ademais, conforme os preceitos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Lei nº 8.080/90, “saúde” não corresponde apenas à ausência de doenças físicas, mas a condições de bem-estar físico, mental e social.

Evidentemente, a atualização da NR-1 não será a solução para todos os problemas relacionados às atuais formas de trabalho e ao fenômeno do adoecimento emocional, contudo, inegavelmente, a atualização representa pequenos passos que, embora tímidos, contribuem para mudanças muito necessárias. Conforme Dejours (1992), a sensibilidade às cargas intelectuais e psicossensoriais do trabalho e a preocupação com a saúde mental precisam ser consideradas. A contestação, atualmente, não é mais pela sobrevivência ou pela saúde, como na época das sociedades industriais, e sim pelo modo de vida como um todo. Existe uma nova procura onde interessa, sobretudo, o modo de viver.

Com isso, em que pese não tenham, na sua integralidade, o alcance objetivado, a existência dessas normas é fundamental, na medida em que servem como base para decisões, bem como para a criação de novas leis e medidas que tenham como objetivo a proteção da saúde de todos os trabalhadores.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Estatísticas Sociais (2025). Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias.html?editoria=sociais&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

_________. Ministério da Previdência Social. Painéis Estatísticos (2025). Disponível em: <https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

_________. Ministério da Saúde. Dados Abertos (2025). Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

_________. Ministério da Saúde. Síndrome de Burnout (2024). Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sindrome-de-burnout/?utm_source=chatgpt.com&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero (2002). Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho. Estudo de Psicopatologia do Trabalho. Tradução de Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. 5ª ed. ampliada. São Paulo: Corteza – Oboré, 1992.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DA SAÚDE – OMS. Mental health at work (2024). Disponível em: <https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-health-at-work?utm_source=chatgpt.com&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Mental health at work in the era of digitalization (2024). Disponível em: <https://www.ilo.org/resource/news/mental-health-work-era-digitalization?utm_source=chatgpt.com&gt;. Acesso em: 31 ago. 2025.

LUDOPATIA NÃO É PIADA

Oscar Krost – Juiz do Trabalho (TRT12)

  

É PRECISO AGIR


Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro


Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário


Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável


Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei


Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.

 

Bertold Brecht (1898-1956)



Superada uma pandemia letal e às portas de uma guerra planetária, há tanto a perder que muitos e muitas se entregam à desesperança. Em um presente nebuloso, pensar em futuro soa jocoso.


E de tanto fazer graça com a desgraça, que a rede mundial de computadores se transformou em um looping de perdas de oportunidades e conexões, sustentando um universo paralelo da mais pura desconexão.


Habitat natural de fake news surreais adubadas pelo irrisório letramento em temas essenciais – não confundir letramento com escolaridade, pois “diploma não encurta as orelhas de ninguém”, dizia meu avô em sua sabedoria de quem completou a primeira etapa do ensino fundamental  – nos deparamos com desumanidades, dessensibilizações e crueldades de toda sorte, ou azar, com o perdão do trocadilho.[1]

Rir é um ato de resistência de quem pretende sobreviver em um mundo duro como o nosso. Não há dúvida alguma.


Mas rir não impede a reflexão, tampouco a sensibilidade e a humanidade. Pelo contrário.

Embora memes e figurinhas, símbolos da racionalidade virtual de 2025, sejam flashes de segundos, as piadas, charges e ironias compõem uma vasta teia de instigações ao pensar e ao sentir que duram um tanto mais.

Mexem com a visão de mundo e com a racionalidade de quem as acessa, não só fazendo rir, mas também chorar. E, para isso, não é preciso humilhar, ofender e apatifar quem quer que seja no palco que for: do teatro, do YouTube ou do WhatsApp.


Doenças psíquicas não são “frescura”, “mi-mi-mi” ou dissimulação. Nem mesmo vitimismo ou coisa de “gente desocupada”.


Vícios, compulsões e distúrbios mentais são males invisíveis a olhos desatentos, mas um insidioso problema que, se não for tratado, potencializa sua nocividade a um nível letal. Raciocínio que se aplica a excessos de compras, procedimentos estéticos e, para surpresa de alguns, jogatina.

Famílias desfeitas, carreiras dilaceradas, insolvência não só financeira. Nada escapa à corrosão causada pelo vício e pela compulsão.


Segundo matéria de Intercept Brasil, o número de benefícios auxílio-doença concedidos pelo INSS pelo acometimento de ludopatia (vício/compulsão em apostas), aumentou 20 vezes de 2023 para 2024. As faixas-etárias mais afetadas são jovens, de 18-29 anos (33%), e adultos, de 30-39 anos (44%), pessoas familiarizadas com a tecnologia, mas não necessariamente com vivência suficiente para compreender os riscos de suas escolhas.[2]


Os números que assustam também geram “trolagens” e “lacrações”. Números tímidos diante da magnitude do adoecimento generalizado, subnotificado pelo desconhecimento quase absoluto sobre o tema e relativizado pela propaganda onipresente, agressiva e sem limites feita pelas casas de apostas.


“Pão e pães, questão de opiniães”, escreveu Guimarães Rosa. E entre um e outro, estudo, debate e respeito.


Diferenciar o ato de vontade privada da doença incapacitante e ambas da falta contratual – possibilidades concretas da empregada ou do empregado que aposta – mais do que um desafio trabalhista, constitui um compromisso imprescindível de PESSOAS E INSTITUIÇÕES com a empatia e a civilidade, atributos raros em um tempo permeado por amenidades.[3]

É PRECISO AGIR, para que não seja tarde demais para se importar com alguém: o outro ou nós mesmos.


[1] Sobre a ideia de letramento aplicado às redes sociais, ver <https://direitodotrabalhocritico.com/2024/09/23/autocuidado-letramento-e-etica-elementos-fundamentais-a-protecao-digital/>.

[2] VECHIOLI, Demétrio; AMORIM, Francisco. Do tigrinho ao INSS: bets fazem auxílios-doença por vício em jogos dispararem no Brasil., disponível em <https://www.intercept.com.br/2025/06/25/bets-auxilios-doenca-vicio-em-jogos-brasil/.>. Acesso em: 28 jun. 2025.

[3] Ver <https://direitodotrabalhocritico.com/2025/01/11/apostas-online-e-direito-do-trabalho-autonomia-da-vontade-justa-causa-ou-patologia-incapacitante/> e MATOS, Larissa; KROST, Oscar. Impactos de apostas online no Direito do Trabalho. Leme/SP: Editora Mizuno, 2025.

Prevenção ao assédio e a reconstrução do ambiente de trabalho: a atuação sindical como eixo transformador

Por Lediane Aparecida Mazzini – Advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho, com atuação para empregados e sindicatos há mais de 15 anos. Secretária-Adjunta da Comissão de Direito Sindical OAB/SC. Presidente da Comissão de Direito do Trabalho OAB/SC Rio do Sul/SC. Conselheira da OAB Rio do Sul/SC.

Tive a honra de participar do 9º Congresso Internacional de Direito Sindical, realizado em Fortaleza, compondo mesa ao lado da Subprocuradora-Geral do Trabalho, Dra. Maria Aparecida Gugel e da Viviane Pessoa de Azevedo, Coordenadora da Excola. Nosso tema foi: “Prevenção contra o assédio e restauração do ambiente de trabalho: construindo um espaço de respeito para todos”.

A partir da minha vivência na advocacia e na assessoria sindical, compartilhei a realidade de uma crise profunda nas relações laborais. O avanço da precarização das condições de trabalho, a intensificação de metas inalcançáveis, a instabilidade contratual e o medo constante da dispensa formam o pano de fundo para práticas abusivas que, muitas vezes, sequer são reconhecidas como assédio.

O assédio moral, sexual, institucional e organizacional, infelizmente, têm se naturalizado em muitos ambientes. É importante lembrar que o assédio, em todas as suas formas, é também um fator de risco psicossocial — e, como tal, pode provocar adoecimento mental no trabalho. Ele contribui diretamente para o surgimento de transtornos como depressão, ansiedade, síndrome de burnout, fobias sociais, entre outros.

Por isso, a alteração recente da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que passou a exigir o mapeamento e gerenciamento dos riscos psicossociais no Programa de Gerenciamento de Riscos, representa um avanço normativo essencial. Essa norma tem por objetivo enfrentar o que já pode ser chamado de epidemia de adoecimento mental no trabalho no Brasil.

Somente em 2024, mais de 472 mil trabalhadores foram afastados por transtornos mentais, segundo dados do INSS. E entre 2020 e 2024, a Justiça do Trabalho recebeu mais de 450 mil ações relacionadas a dano moral decorrente de assédio. Apenas entre 2023 e 2024, esse número aumentou 28%, demonstrando o agravamento da crise.

Infelizmente, a aplicação de multas para empresas que não cumprirem a nova exigência foi adiada para maio de 2026. Mas, para o Ministério Público do Trabalho e outros órgãos técnicos, a exigência já existia implicitamente, e a nova redação da NR-1 apenas tornou explícita a obrigação de identificar e controlar os riscos psicossociais.

A norma reconhece que o sofrimento mental e o assédio não são questões individuais ou de foro íntimo, mas sim problemas organizacionais e estruturais, que precisam ser enfrentados preventivamente. E os sindicatos podem — e devem — atuar nesse processo.

Para isso, é essencial desconstruir o mito de que os riscos psicossociais são subjetivos ou que sua identificação expõe os trabalhadores. Pelo contrário, o gerenciamento desses riscos é medida de proteção coletiva e está no centro da promoção da saúde no trabalho.

E os fatores psicossociais são novos? Certamente, não. Eles sempre existiram. Mas foram potencializados nas últimas décadas por processos como as reestruturações produtivas, novas formas de gestão, pressão exacerbada por produtividade, políticas de metas inatingíveis e avanço de lógicas neoliberais — como a terceirização, a rotatividade e a desresponsabilização do empregador.

Desde 1984, a OIT já alertava para a importância de abordar os riscos psicossociais nas políticas de segurança e saúde no trabalho. Mas o cenário só se agravou. Em 2024, por exemplo, houve um aumento de 68% nos afastamentos previdenciários por doenças mentais em comparação a 2023. A maioria das pessoas afastadas são mulheres — mais de 60% dos casos.

Esse dado revela desigualdades estruturais que afetam a saúde mental das trabalhadoras: as mulheres são mais assediadas, dificuldade de ascensão profissional, disparidade salarial (ainda em torno de 20%), sobrecarga pela dupla ou tripla jornada, racismo estrutural (ainda mais acentuado para mulheres negras) e ausência de redes de apoio.

Como exemplos dos fatores de risco psicossocial elencados pelo Guia de Fatores de Risco Psicossocial do Ministério do Trabalho, destacam-se:

  • Assédio de qualquer natureza;
  • Má gestão de mudanças organizacionais;
  • Baixa clareza de papel/função;
  • Baixas recompensas e reconhecimento
  • Baixa justiça organizacional
  • Falta de suporte/apoio no trabalho;
  • Baixa demanda no trabalho (subcarga);
  • Excesso de demanda no trabalho (sobrecarga);
  • Trabalho remoto e isolado.

A tabela é exemplificativa, sendo que podemos citar vários outros fatores de riscos psicossociais que podem ser encontrados no trabalho a exemplo do teletrabalho com dificuldade de desconexão; trabalho monótono, repetitivo ou sem sentido; jornadas imprevisíveis e longas, com mudança constante de turnos e pressão constante por metas e resultados.

Esses fatores podem produzir consequências não apenas individuais, mas sociais e econômicas: aposentadoria precoce, aumento de suicídios, custos crescentes com o sistema de saúde, desemprego prolongado e exclusão social.

É por isso que a alteração da NR-1 precisa ser vista como um marco regulatório importante, mas que deve vir acompanhado de pressão institucional, atuação sindical ativa e compromisso político com a saúde mental no trabalho.

E, diante de tudo isso, é urgente reabrir o debate sobre a extinção da jornada 6×1, que impede o descanso social, compromete o convívio familiar e agrava os fatores de risco psicossociais.

O papel dos sindicatos na prevenção do assédio e na promoção da saúde mental

A atuação sindical é essencial para transformar o ambiente de trabalho em um espaço de respeito, dignidade e proteção à saúde dos trabalhadores. A prevenção do assédio começa com proximidade com a base, por meio de visitas aos locais de trabalho, canais acessíveis de escuta (como WhatsApp, ouvidoria no site, plantões presenciais), campanhas educativas permanentes e negociação coletiva qualificada.

As negociações coletivas devem avançar na inclusão de cláusulas específicas voltadas à prevenção do assédio e ao enfrentamento dos riscos psicossociais, como por exemplo:

  • Treinamentos obrigatórios e periódicos sobre assédio e saúde mental;
  • Canais de denúncia independentes, com garantia de sigilo e proteção à vítima;
  • Afastamento preventivo de agressores durante apuração;
  • Constituição de comitês paritários com representantes da categoria;
  • Negociação de pausas, intervalos e rotatividade para atividades com alto grau de estresse ou repetitividade.

Além disso, é fundamental atuar sobre a cultura organizacional das empresas. Isso passa, especialmente, por ações voltadas às lideranças. É preciso treinar, informar, sensibilizar. Afinal, “o líder precisa ser sensível, empático e consciente do impacto que tem na saúde mental de sua equipe”. A forma como se lidera pode prevenir ou agravar o sofrimento psíquico.

É necessário que o sindicato se firme também como um espaço de formação política, jurídica e emocional. Muitas vezes, o trabalhador só compreende que está sendo assediado ou adoecido quando tem acesso a informação de qualidade, compreensível e contextualizada com sua realidade. Por isso, é dever do sindicato oferecer esse conhecimento de forma acessível e constante.

No suporte direto às vítimas, os sindicatos podem — e devem — prestar:

  • Acolhimento jurídico e psicológico, mediante estrutura interna ou parcerias com psicólogos, médicos, clínicas e farmácias;
  • Apoio institucional como testemunha em procedimentos internos ou ações judiciais;
  • Mobilização da base trabalhadora em solidariedade à vítima, quebrando o isolamento que o assédio costuma provocar.

Por fim, os sindicatos podem — com amparo no artigo 8º, III da CF e do  Tema 823 do STF — ajuizar ações coletivas para reparar danos ou prevenir abusos, além de buscar mediações no Ministério Público do Trabalho quando identificarem práticas reiteradas de assédio, metas abusivas ou ambientes adoecedores.

A atuação sindical, portanto, é uma frente indispensável na luta contra o assédio organizacional e na construção de ambientes laborais mais humanos, inclusivos e respeitosos.

Exemplos práticos: quando o assédio é estrutural

Durante minha fala, citei casos concretos que defendemos e acompanhamos:

  • Câmeras em Vestiários: a empresa foi condenada por instalar câmeras nos vestiários, captando imagens de trabalhadores em situação de nudez parcial ou total. A sentença reconheceu assédio organizacional e determinou indenização por dano moral.
  • Restrição ao uso de banheiros: restrições reiteradas ao uso de banheiro, com destaque para situações envolvendo mulheres em período menstrual. A sentença, com base no Protocolo CNJ de Gênero, reconheceu assédio moral e fixou indenização de R$20 mil.
  • Etarismo: trabalhador com mais de 25 anos de casa foi alvo de humilhações e rigor excessivo por não dominar ferramentas digitais. O assédio visava sua saída. A empresa foi condenada por dano moral com fundamento na discriminação por idade.
  • Assédio eleitoral: foram apresentados dois casos emblemáticos, um deles coletivo, com publicações em murais e redes sociais da empresa pressionando trabalhadores a votar em determinado candidato, sob ameaça de demissões. A outra ação, individual, reconheceu a dispensa discriminatória de uma trabalhadora por convicção política. Ambos foram julgados na 12ª Região.

Além desses exemplos, há ainda numerosos casos de assédio religioso, nos quais trabalhadores são obrigados a participar de orações ou discriminados por suas crenças — prática inaceitável e cada vez mais denunciada no ambiente corporativo.

Também é crescente a ocorrência de xenofobia nas relações de trabalho, especialmente dirigida a trabalhadores migrantes, como venezuelanos e haitianos, que enfrentam exclusão, hostilidade e preconceito racial e linguístico. Vale lembrar que xenofobia é crime, e a omissão diante dela também compromete a responsabilidade institucional da empresa.

De forma geral, tem se tornado cada vez mais comum nas ações trabalhistas a identificação de práticas sistemáticas de assédio organizacional, como:

  • Metas abusivas e prazos impossíveis;
  • Perseguições dirigidas a trabalhadores mais velhos (etarismo);
  • Discriminação contra pessoas com deficiência;
  • Assédio e isolamento de gestantes;
  • Condutas racistas contra pessoas negras;
  • Pressão e retaliações contra representantes sindicais.

Esses grupos frequentemente se tornam alvos de práticas discriminatórias estruturais, voltadas à sua exclusão ou ao enfraquecimento de seus vínculos profissionais, sob uma lógica empresarial que invisibiliza direitos e reforça desigualdades.

Esses exemplos demonstram que o assédio organizacional não é uma falha individual isolada, mas uma expressão concreta da forma como o trabalho é estruturado, dirigido e fiscalizado. É por isso que seu enfrentamento exige resposta institucional, ação coletiva e atuação sindical articulada.

Há um longo caminho a percorrer. O mais grave é que muitos trabalhadores sequer reconhecem que estão sendo assediados ou expostos a riscos psicossociais elevados. O grito, a ameaça velada, o isolamento e a desumanização cotidiana acabam naturalizados sob o rótulo da “cultura da produtividade” ou da exigência de “alta performance”.

Por isso, a prevenção passa necessariamente por formação, escuta ativa, acolhimento e ação coletiva — pilares fundamentais de uma atuação sindical comprometida com a transformação do mundo do trabalho.

Reconstruir o ambiente

Prevenir é urgente, mas restaurar também é necessário. O ambiente de trabalho violado pelo assédio precisa ser reconstruído com escuta coletiva, revisão de práticas, proteção efetiva às vítimas e participação ativa do sindicato.

O enfrentamento do assédio exige coragem — das vítimas, dos colegas, das instituições. Mas sobretudo exige a ação organizada da coletividade.

Seguimos firmes na construção de um mundo do trabalho que respeite a dignidade, promova saúde e garanta respeito. Esse é o papel transformador do movimento sindical.

 

Ainda Não Assinaram Nossa Carteira

Helena Pontes dos Santos – Mestranda e especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP, Especialista em Estudos afro-latino-americanos e cari­benhos pelo Clacso, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC – USP) e da Equipe de Estudos em Direito do Trabalho e História (Edith-USP) e do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras (UNIFESP), Mulher negra de Axé, militante do coletivo organizador da Semana Tereza de Benguela da Baixada Santista e do Movimento Negro Unificado

Ontem comemoramos o Dia das Mães de Maio, mulheres, majoritariamente negras, que denunciam há quase duas décadas os crimes que violentaram diversas famílias negras no fatídico maio de 2006. Dia 12 de maio é dia de luta por respeito à memória, busca por reparação coletiva e clamar por Justiça. Na véspera de 13 de maio, dia em que historicamente o Movimento Negro Unificado – MNU – denuncia a falsa abolição da escravização de pessoas negras.

Em 13 de maio de 1988, o MNU da Bahia em cartazes, faixas e outdoors protestou jogando uma verdade inegável, mas que seguimos ignorando: “A princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho”. Esta denúncia contundente, mais do que uma demonstração de que o Movimento Negro Unificado nunca se afastou do debate de raça encruzilhado ao debate de classe – sendo ridículo que seja chamado de identitário, portanto – muito tem a ver com os dias de hoje e, principalmente, com os atos do STF no que diz respeito a legislação trabalhista e competência da Justiça do Trabalho.

Passadas décadas da denúncia e mais de um século da falsa abolição, os dados mostram que, infelizmente, não é exagero o protesto de que a abolição da escravização no Brasil é uma farsa.

A falsa abolição nunca garantiu reparação, não revogou leis que serviriam de impedimento para qualquer possibilidade de avanço social do povo negro, nos impondo o lugar de massa marginal, na sociedade brasileira de capitalismo dependente.

A Lei Aurea, e as imperiais e republicanas, nunca foram – e não são – para garantir igualdade de oportunidades para a população negra. Olhando para o campo do Direito do Trabalho, por exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto-Lei n.º 5 452, de 1 de maio de 1943, fruto da luta do movimento operário brasileiro – a quem ela protege e a quem não? Os excluídos de sua proteção são os trabalhadores e trabalhadoras rurais e empregadas domésticas. Qual a cor destes trabalhadores e trabalhadoras? Nunca é muito lembrar que as trabalhadoras domésticas seguiram mais décadas sem uma lei que lhes garantisse algum direito e a legislação só saiu por conta de luta de grandes lideranças negras, como Laudelina de Campos Melo.

Mesmo que a legislação brasileira proíba a discriminação racial no trabalho formalmente, ela permite – seja pela terceirização, complacência com o combate e penalização da informalidade juridicamente tolerada e da fragmentação do mercado de trabalho racializado – a reprodução de desigualdades estruturais que atingem de forma desproporcional a população negra. É um modo de discriminação institucionalizada, assim como uma seletividade jurídica cuja função primordial pe perpetuar o lugar historicamente subalternizado dos corpos negros no mundo do trabalho: sem carteira assinada.

Como ter a coragem de designar o trabalho de seguranças em instituições bancárias e de asseio em conservação nos empreendimentos como mera atividade-meio, quando é impossível que estas empresas funcionem sem estes trabalhadores e trabalhadoras? Não só herdamos, como renovamos até os dias atuais a visão escravocrata que falta com respeito e desvaloriza estas pessoas trabalhadoras e suas atividades. Numa sociedade como a nossa, em que o trabalho nos constitui, não estamos também diante de uma forma de desumanização?

A persistência das disparidades salariais, do modo como juridicamente são permitidos os avanços do capital sobre corpos negros trabalhadores, da violência policial e da exclusão educacional evidencia que ainda há muito a ser feito para alcançar a verdadeira democracia racial, fruto da verdadeira abolição que virá, necessariamente, com reparação coletiva.

Nesse dia de luta, protesto, usemos também nós, enquanto sociedade, nosso tempo, para uma dura, dolosa e necessária reflexão a partir do que as estatísticas e seus dados; o que revelam e escondem:

– Renda média1: em 2023, a renda do trabalho principal de pessoas negras correspondia, em média, a 58,3% da renda das pessoas brancas.

– Diferença salarial por hora2: A hora trabalhada de uma pessoa branca valia 67,7% mais que a de trabalhadores pretos e pardos. Enquanto negros recebiam R$ 13,70 em média, os brancos recebiam R$ 23,00.

– Mortes por intervenção policial3: Em 2023, 87,8% das vítimas de intervenções policiais com dados de raça informados eram pessoas negras.

Olhando para os dados em relação a desigualdade no mercado de trabalho, verifica-se a persistência de um fosso entre pessoas negras (pretas e pardas) e brancas. A população negra continua enfrentando maiores taxas de desemprego, informalidade e ocupações precarizadas, refletindo um cenário de exclusão estrutural. Vejamos,

– Taxa de informalidade4: No quarto trimestre de 2024, a taxa de informalidade entre pessoas pretas foi de 41,9% e entre pardas, 43,5%, ambas acima da média nacional de 38,6%. Em contraste, a taxa entre pessoas brancas foi de 32,6%.

– Trabalho desprotegido5: No segundo trimestre de 2023, 46% dos negros ocupados estavam em trabalhos desprotegidos, como empregos sem carteira assinada ou trabalho por conta própria sem contribuição previdenciária. Entre os não negros, essa proporção foi de 34%.

– Perfil das trabalhadoras domésticas6: Em dezembro de 2023, o Brasil contava com 6,08 milhões de empregados domésticos, dos quais 91,1% eram mulheres, majoritariamente negras, com média de idade de 49 anos. Apenas um terço possuía carteira assinada, recebendo em média um salário-mínimo .

No que se refere a falácia do empreendedorismo, o primeiro ponto é observamos que este, para os trabalhadores e trabalhadoras negras, não foi ou é uma escolha, mas, muitas vezes, o único caminho, ante um mercado de trabalho racista que lhes mantém presos aos cargos menos valorizados economicamente e socialmente (apesar de sua essencialidade) de conseguir o mínimo para a reprodução de sua força de trabalho com alguma dignidade.
Como canta Racionais MCs, “Por que o sonho de vários na quebrada é abrir um boteco /
Ser empresário não dá, estudar nem pensar /Tem que trampar ou ripar para os irmãos sustentar”.

O chamado empreendedorismo, para a classe trabalhadora, principalmente pessoas negras, muitas vezes, é a forma de sobrevivência imposta pelo mercado de trabalho excludente — não se trata, portanto, de um projeto político de autonomia para o povo negro, mas o único caminho possível para garantir a sobrevivência com alguma dignidade diante da ausência de direitos. Ao contrário do que introjeta em nossa comunidade o discurso liberal, a luta histórica do povo negro, representada por lideranças como Laudelina de Campos Melo, é pelo trabalho digno, com garantia do reconhecimento do vínculo empregatício, com todos os direitos que dele deveriam decorrer e não pelo “trabalho por conta própria”.

A proporção de negros empreendedores empregadores7, assim, é menor: 1,8% das mulheres negras eram donas de negócios que empregavam funcionários, enquanto entre as não negras, o percentual foi de 4,3%. Entre os homens negros, o percentual ficava em 3,6%; entre os não negros, a proporção foi de 7%. O que é ruim para toda a classe trabalhadora empurrada para ser Pessoa Jurídica, é notório, é pior para pessoas negras.

Quando observamos os valores auferidos pela população negra com a venda de sua força de trabalho, tem-se nítida percepção de que a superexploração tem estas pessoas como alvo:

– Diferença salarial8: Em 2023, os negros ganhavam, em média, 39,2% a menos que os não negros. Mesmo quando comparados os rendimentos médios de negros e não negros na mesma posição na ocupação, os negros estavam em desvantagem .

– Trabalho doméstico9: Entre 2012 e 2022, a renda média de faxineiras, cozinheiras e babás negras correspondia a 86,1% do ganho das profissionais brancas, evidenciando uma desigualdade salarial crescente ao longo dos anos.

No que se refere ao trabalho análogo à escravização, tem-se destacado o até aqui dito: a Princesa e a elite nacional não assinou, não assina e se puder não assinará nossa carteira de trabalho pois se sente, até hoje, confortável em aumentar seu ganho e taxa de lucratividade através da escravização de pessoas negras. Os dados sobre os resgates de pessoas nessa condição entre 2016 e 2023, revela que das mulheres resgatadas de condições análogas à escravidão, quase 80% eram negras e que muitas dessas trabalhavam em ambientes domésticos, sem acesso à educação, saúde ou direitos previdenciários.

O que tribunais fazem ao julgar a terceirização da atividade-meio como legal, para depois a ampliar para toda a classe trabalhadora, ou julgamentos que retiram na Justiça do Trabalho o direito de analisar a presença de relação de emprego nas fraudes que transformam empregados em pessoas jurídicas e que fazem de entregadores a serviço de aplicativos de entrega e transporte como trabalhadores autônomos nada mais é do que a perpetuação do ato da Princesa Isabel de não assinar nossa carteira de trabalho, não garantir a reparação coletiva ao povo que construiu esse país e renovar a clivagem racial existente na sociedade brasileira que empurra a massa marginal negra para estes trabalhos.

Esses dados reforçam a necessidade não só de políticas públicas eficazes que promovam a inclusão e a equidade racial no mercado de trabalho brasileiro, mas também da refundação do Direito do Trabalho a partir de uma perspectiva outra, que não invisibilize trabalhos essenciais, os excluindo ou reduzindo a proteção que é, em verdade, somente a garantia do mínimo para se viver.

Como anunciou Lélia Gonzalez, primeiro de maio tem tudo a ver com treze de maio e este, tem também ligação com o dia doze de maio. Nunca é demais lembrar que uma das vítimas dos Crimes de Maio, Rogério, era um gari, trabalhador da empresa que substituiu a Prodesan na coleta de lixo, a Terracom10. Estas pessoas trabalhadoras, como se sabe, não têm as mesmas condições de trabalho e garantias que um empregado público tem. Rogério tinha um atestado, mas estava indo trabalhar por medo de punições, como as que observamos em tantos processos trabalhistas. Voltando da casa da mãe, de pegar remédios, pois tinha que conseguir ir trabalhar apesar do atestado, foi morto pela polícia sumariamente no posto de gasolina em que abastecia. Segundo relatos de sua mãe, o policial disse a Rogério antes de o matar, quando este lhe informou que era trabalhador: morreu, neguinho, virou bandido.

É preciso um compromisso coletivo! Isso não se dará com a perpetuação da defesa do mal menor. É necessário um direito do trabalho que seja parte desse processo de reparação coletiva: ampliado e, finalmente, alcançando e protegendo a toda classe trabalhadora, independente de cor, raça, etnia, gênero, sexualidade, que incluam e valorizem Pessoas com Deficiência (PcDs), em que outras matrizes de pensamento sejam consideradas.

Brasil, 13 de maio de 2025.

1 https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-03/renda-de-pessoas-negras-equivale-58-da-de-brancas-mostra-estudo

2 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-12/hora-trabalhada-de-pessoa-branca-vale-677-mais-que-de-negros

3 https://www.brasildefato.com.br/2024/11/07/quase-90-dos-mortos-por-policiais-em-2023-eram-negros-diz-estudo/

4 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-02/desemprego-e-informalidade-de-pretos-e-pardos-e-acima-da-media-do-pais

5 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-11/mercado-de-trabalho-reproduz-desigualdade-racial-aponta-dieese

6 https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Marco/emprego-domestico-no-brasil-e-formado-por-mulheres

7 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-11/mercado-de-trabalho-reproduz-desigualdade-racial-aponta-dieese

8 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-11/mercado-de-trabalho-reproduz-desigualdade-racial-aponta-dieese

9 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/03/trabalho-domestico-esta-entre-profissoes-que-pagam-mais-para-brancas-do-que-para-negras.shtml

10 Em 05 de agosto de 1997 o Sindilimpeza veio em comunicado à população santista pedir apoio contra a terceirização dos serviços de Limpeza Urbana, realizados pela empresa pública PRODESAN – Progresso e Desenvolvimento de Santos S/A – iniciada pelo então prefeito Beto Mansur. Desde então, A Terracom realiza o serviço e emprega as pessoas que limpam a cidade dia e noite.

“Quem pariu Mateus, que o embale”: o mês de maio e algumas reflexões sobre maternalismo, trabalho e patriarcado

Joana Rêgo Silva Rodrigues – Advogada feminista. Mestra em Políticas Sociais e Cidadania. Conselheira e Vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada, OAB/BA, Professora da Ucsal e da Escola da Abrat.

O título deste escrito surge a partir do reconhecimento do poder da linguagem no processo de construção social e de subjetivação da mulher mãe em nossa sociedade. Junto a outras expressões, como, por exemplo, “gravidez não é doença”, “mãe é mãe” e “nasce o filho, nasce uma mãe”, vai se construindo um arquétipo materno que, na realidade, serve apenas para oprimir mulheres e fortalecer o patriarcado.

Em tempos em que a luta antifeminista ganha notoriedade nos debates sobre a posição da mulher na sociedade, a frase do título não poderia ser mais apropriada para fazer oposição à festejada premissa feminista de que “lugar de mulher é onde ela quiser.”

Ora, quando o patriarcado afirma cotidianamente que “quem pariu é quem deve embalar” — ou dito em outras palavras, “quem pariu é quem vai cuidar” — ele busca reforçar a maternagem como espaço compulsório e exclusivo da mãe. Logo, ao alçar a mulher à categoria de mãe, se esvai o pretenso desejo por autonomia e liberdade, restando-lhe, por sua vez, o “natural” lugar de, no dizer de Vera Iaconelli, “guardiãs do cuidado.”

A prova de que o capitalismo patriarcal tem sido bem-sucedido na manutenção dessas “guardiãs do cuidado” como operárias do trabalho (quase invisível) de cuidado e reprodutivo foi dada por meio da pesquisa publicada pelo jornal Folha de S.Paulo no início de maio de 2024, apontando que, para 69% dos brasileiros, as mulheres devem ser as principais cuidadoras de filhos recém-nascidos. Dados que corroboram outras estatísticas, como o fato de que as mulheres dedicam quase o dobro de tempo para a realização de tarefas não remuneradas (mulheres 21h x 11,6h) durante a semana. Também se destaca a taxa de ocupação entre mulheres que vivem em domicílios com crianças menores de 3 anos, que é de 54,6% (dado inclusive majorado quando considerado o marcador racial), enquanto, no caso dos homens, o índice sobe para 89,2%.

A interpretação desse cenário de desigualdade passa, necessariamente, pela análise de dois aspectos centrais: em primeiro lugar, a sobrecarga materna, ainda que se reconheça que as práticas de cuidado envolvem um conjunto amplo e diverso de atividades; e, em segundo lugar, o impacto da presença dos filhos — especialmente em idade pré-escolar — sobre as condições de inserção e permanência das mulheres no mercado de trabalho. A maternidade, assim, segue sendo um dos principais vetores de desigualdade de gênero na esfera laboral.

Assim, o tradicional cenário de exclusão, desigualdade de gênero e discriminação é intensificado quando adensadas as questões atinentes à maternidade. Dentre todas as desigualdades no ambiente de trabalho que, natural ou culturalmente, delimitam a relação entre homens e mulheres, a gestação e a maternidade se demonstram as mais resistentes de ultrapassar.

Neste ponto, é fundamental evidenciar o papel do Estado e das políticas neoliberais na reprodução dessas desigualdades de gênero, especialmente ao manter a figura da mulher atrelada ao cuidado como um dever quase natural. A lógica neoliberal, ao valorizar a autonomia individual e a responsabilização privada, esvazia a noção de responsabilidade coletiva e desonera o Estado do dever de garantir políticas públicas de suporte ao cuidado — como creches públicas, licença parental igualitária, jornadas reduzidas e serviços sociais de base.

Como destaca Nancy Fraser, o neoliberalismo se apropriou de discursos feministas de emancipação para justificar a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, sem, no entanto, romper com a lógica patriarcal da divisão sexual do trabalho. Na prática, isso significa que as mulheres passaram a acumular a exigência de serem produtivas e competitivas no mercado, sem que houvesse redistribuição efetiva das tarefas de cuidado, que seguem sendo desvalorizadas, invisibilizadas e, muitas vezes, não remunerada, ou então delegadas a outras mulheres, majoritariamente negras, periféricas e em condições de maior vulnerabilidade econômica, que realizam esse trabalho essencial sem qualquer reconhecimento, valorização ou garantia de direitos. Essa dinâmica revela como a divisão sexual e racial do trabalho é estruturante do sistema de exploração que sustenta tanto o patriarcado quanto o capitalismo neoliberal.

Essa realidade, contudo, começa a ser tensionada por iniciativas institucionais que buscam reposicionar o cuidado no centro do debate público. Ao reconhecer o cuidado não remunerado como trabalho, a Política Nacional de Cuidados, instituída pela Lei n. 15.069/2024, apresenta uma nova lente interpretativa para que se compreenda a sobrecarga de trabalho de cuidados que recai desproporcionalmente sobre as mulheres. Na perspectiva adotada pela política, o cuidado é entendido como um direito humano universal, o que significa reconhecer que todas as pessoas têm o direito de cuidar, de ser cuidadas e de exercer o autocuidado. Tal concepção desloca o cuidado do âmbito privado e o reconhece como bem público essencial para o funcionamento da sociedade e da economia (Araújo, 2024), abrindo espaço para sua valorização e para a construção de uma infraestrutura pública de suporte.

Nesse contexto, é necessário refutar, com veemência, o discurso machista e maternalista, que, apesar dos avanços, ainda serve como fundamento normativo de políticas públicas no Brasil e permanece operando como uma engrenagem silenciosa das desigualdades. É o que se observa, por exemplo, nas discrepâncias entre as licenças maternidade e paternidade, que continuam a reforçar a centralidade da mulher nos cuidados e a ausência do homem nesse processo, naturalizando a sobrecarga feminina e perpetuando a divisão sexual do trabalho.

No ambiente laboral, esses arranjos normativos se desdobram em discriminações estruturais, que dificultam a inserção, a permanência e a ascensão das mulheres, sobretudo das mães, no mercado de trabalho formal. Em suma, o cuidado, embora essencial à reprodução da vida, continua sendo tratado como responsabilidade individual, feminina, e não como um direito coletivo, compartilhado e sustentado por políticas públicas eficazes.

Enquanto a maternidade rearranja nossas fronteiras e, em muitos casos, nos atravessa como um cataclisma violento e silencioso, nos fazendo outras, o mercado de trabalho nos vira as costas como quem não aceitasse essa outra que agora somos. Reafirma-se, portanto, o lugar que nos cabe: o da maternagem guerreira, quase abnegada e, obviamente, sempre afetuosa.

Que fiquemos, então, atentas a esses arranjos estereotipados (maternalistas) que, ao mesmo tempo em que desprestigiam a ética do cuidado, se valem da romantização da maternidade para manter o “pacto de gênero” e colocar as mulheres, mães, no espaço da invisibilidade, subalternização e precariedade de trabalho e vida.

Que a sociedade entenda que “embalar (ninar) Mateus” deve ser responsabilidade coletiva e alegria, em vez de solidão, sobrecarga e culpa.