PARA QUEM SERVE A JUSTIÇA NO BRASIL?

Marcelo José Ferlin D’Ambroso – Desembargador do Trabalho (TRT da 4ª Região – RS/Brasil), Fundador e Presidente do IPEATRA, Membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia, Membro da AAJ – Associação Americana de Juristas Rama Brasil, Doutor em Ciências Jurídicas.

Recente publicação do Conselho Nacional de Justiça, o relatório anual “Justiça em Números”, na versão 2022, contempla um número de 77,3 milhões de ações em trâmite no país. Outra matéria, que pode ser encontrada aqui, intitulada “Judiciário custou R$ 103,9 bilhões aos cofres públicos em 2021, aponta CNJ – do jornal O Estadão, de 02.09.2022”, não ataca explicitamente o orçamento do Poder Judiciário, inobstante desde a chamada contenha uma crítica implícita.

Por aqui começamos: parece que ao grande capital não basta tomar conta da Justiça, é necessário que ela custe ainda menos para que sobrem mais recursos do Estado para as políticas econômicas pró-capital.

Em 2017, um severo ataque midiático à Justiça do Trabalho e ao Direito do Trabalho redundou senão na mais célere, em uma das mais apressadas reformas da legislação que já se viu no país: em curtos sete meses, 104 artigos da CLT foram reformados (ou melhor, “deformados”), em razão de duas grandes e convenientes fake news: que “o Brasil é o país com o maior número de ações trabalhistas no mundo” (sobre o tema, recomendo o artigo do Prof. Cássio Casagrande, neste enlace e relacionado ao final), e que “o país tem muitas ações trabalhistas”. Podem parecer a mesma coisa, mas as duas fake news têm significados diferentes que se reforçam mutuamente: a primeira para justificar que algo tinha de ser feito com urgência para mudar o “alarmante quadro” anunciado, e a segunda para justificar a instituição de limitações de acesso à Justiça do Trabalho. De fato, as duas coisas foram feitas: a lei 13467/17, conhecida como “reforma trabalhista”, foi aprovada sem discussões com a comunidade jurídica e o povo, e os obstáculos de acesso à justiça nela contidos à classe trabalhadora até hoje repercutem severamente no judiciário trabalhista (vide ADI 5766 no STF).

De fato, de um número aproximado de 4.000.000 de ações trabalhistas em andamento antes da deforma trabalhista, houve significativo decréscimo para o número atual que gira em torno de 2.600.000 de processos (algo como 35% menos). Obviamente, não porque o número de violações de direitos sociais tenha diminuído, mas sim porque a imposição de inúmeras condenações de trabalhadoras, trabalhadores e sindicatos em custas e honorários advocatícios e periciais – inclusive com execuções e bloqueios de contas -, além da absurda exigência de “liquidação de pedidos” (obrigando a advocacia da classe trabalhadora a contratar serviços contábeis para ajuizar uma demanda) atendeu plenamente ao desejo externado nas fake news citadas. A “moralização” da Justiça do Trabalho para que a classe trabalhadora fizesse uso comedido do aparato judiciário, para coibir “abusos”, parece que deu certo. Afinal, a disciplina e a obediência imposta às pessoas despossuídas deveria chegar também em quem patrocina seus interesses perante o capital, domesticando a advocacia trabalhista para a nova “moral judiciária”. Tudo justificado e estabilizado segundo essas fake news que ganharam contorno de pós verdade (mentiras emotivas ditas ao povo e que não admitem contestação, embora se saiba que seu conteúdo é inverídico).

Paralelamente, é importante comparar esses números no sentido que realmente importa: em 2014, o relatório “Justiça em Números” apontava a existência de 100.000.000 de processos no país. Aparentemente, de 2014 para 2022 o Judiciário “cumpriu” seu papel, aumentando a produtividade da Magistratura e coibindo o acesso à justiça ao povo (no que me refiro não só aos embaraços de acesso à Justiça do Trabalho, como também ao aumento das taxas judiciárias na Justiça Comum, desestimulando a população a demandar em juízo).

Pior, o país passou ao largo de debater uma importante constatação feita pelos juízes André Augusto Salvador Bezerra (TJSP) e Antônio Silveira Neto (TJPB) – constante da apostila III do curso da ENFAM intitulado “Grandes litigantes e demandas repetitivas”): do universo de 50.000.000 de lides de direito privado existentes naquele ano de 2014, havia duas categorias de grandes litigantes consumindo os recursos do Poder Judiciário. Bancos contavam com um acervo de 38.000.000 de ações (76%) e empresas de telefonia privada com mais 6.000.000 de ações (12%), sobrando para todo o restante da população apenas 12% de demandas. Por outras palavras, bancos consumiam, em 2014, 38% do orçamento do Poder Judiciário, e empresas de telefonia privada outros 6%. Juntas, estas duas categorias de grandes litigantes abarcavam 44% da utilização da Justiça!

Estranhamente, não houve nenhuma fake news nem muito menos fair news (a notícia verídica) sobre o tema. Jamais foi debatido! Comentava-se a existência de “muita ação trabalhista” mas nada se dizia nem se diz sobre muitas ações de bancos. Se 4.000.000 de demandas laborais eram muito, por quê razão 38.000.000 de ações bancárias nunca foram objeto de preocupação no Brasil? Mesmo as ações das empresas de telefonia privada, correspondentes a 6.000.000 de demandas superavam o número de demandas trabalhistas em 30% e também nunca foram questionadas. É mais: não consta nem mesmo que exista alguma operadora brasileira dentre estas empresas de telefonia.

As possíveis respostas a essa indagação me fazem lembrar de um importante livro de reflexão crítica ainda hoje atual, publicado em 1962, com o título “Quem faz as leis no Brasil?”, de autoria de Osny Duarte Pereira, denunciando as práticas imperiais no Brasil e na América Latina, de quem se inspira este texto e sua chamada “Para quem serve a justiça no Brasil?”.

Parece que o país caminha no sentido de que “litigar é possível” – mas só para quem tem capital e poder econômico. O povo tem de pagar custas altíssimas, fazer uso comedido do Poder Judiciário, e a advocacia, quando patrocina interesses de pessoas comuns, tem de estar muito atenta para essa nova “moral judiciária”, que tende a ver na população a responsabilidade exclusiva pelo “elevado” número de ações no país (algo como 12% do total).

Não quero aprofundar, na brevidade deste texto, nos números e porcentagens – até porque me reporto a números de 2014 em breve comparação a 2022. Pretendo apenas chamar a atenção para a necessidade do debate efetivo sobre grandes litigantes e políticas judiciárias que terminem com o mau uso da justiça pelo grande capital. Os números de 2022 revelam decréscimo de litigiosidade, mas não de grandes litigantes, como se pode ver aqui (pois “…órgãos públicos, bancos públicos e privados têm o maior número de ações em andamento” – notícia da Agência Brasil intitulada “CNJ divulga lista com os maiores litigantes da Justiça”). E nem era de se esperar o contrário, ante a absoluta inexistência de políticas públicas contra essa nefasta e predatória litigiosidade do capital financeiro e corporativo.

Esta discussão – que urge ser feita -, passa pelo papel do Estado e do Poder Judiciário enquanto garante de Direitos Humanos (e não de direitos do capital), lembrando as palavras de Katharina Pistor (The code of capital – how the law creates wealth and inequality, 2019), que adverte que o imperialismo tem seus instrumentos jurídicos de operação, basicamente, o direito contratual, direitos de propriedade (inclusive intelectual), direito de garantias, fiduciário, corporativo e de falências, cabendo exportá-los às neocolônias, para total segurança jurídica do capital imperial na etapa corporativo-financeira. É corolário lógico que o direito imperial atrai a justiça imperial que, vertida em números, mostra que apenas 12% do orçamento do Poder Judiciário serve para os interesses do povo.

Num país que voltou a figurar no mapa da fome e em que 80% das famílias estão endividadas, muitas pela necessidade de comer, é extremamente preocupante que a Justiça sirva para sacramentar políticas econômicas favoráveis a bancos, de prática de juros exorbitantes que espoliam a nação.

Concluindo, podemos debater seriamente a Justiça no Brasil, ou a neocolônia brasileira pode optar por um modelo de Poder Judiciário servil ao capital financeiro e corporativo e hostil à população.

CASAGRANDE, Cássio. (2017). Brasil, “campeão de ações trabalhistas”. Como se constrói uma falácia. Em jornal JOTA, 25 de jun. 2017. São Paulo.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. (2022). Relatório Justiça em Números. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022.pdf. Acesso em set. 2022.

PEREIRA, Osny Duarte. (1962). Quem faz as leis no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

PISTOR, Katharina. (2019). The code of capital. How the law creates wealth and inequality. Princeton: Princeton University Press.

O ARDIL DO “EMPREENDEDORISMO” NO CAPITALISMO DE PLATAFORMAS

Nirsan Grillo Gomes Dambrós – Mestranda em Sociologia das Organizações e do Trabalho; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade de Lisboa; nirsangrillodambros@gmail.com; @omundodolabor

O trabalho tem sofrido uma série de transformações nos últimos anos, nomeadamente com as novas Tecnologias de Informação e Comunicação que emergem a partir dos avanços da chamada Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial (Tecnológica), que só é chamada assim porque revolucionou, inicialmente, o processo industrial e se espraiou para outras esferas da sociedade. As mudanças são enormes no trabalho, sobretudo quando identificamos um movimento de alastramento das formas “atípicas” de trabalho que são maquiadas de “trabalho empreendedor” nas inúmeras e cada vez mais poderosas, plataformas digitais. Tudo isso em um contexto de capitalismo global, que favorece o acesso a uma massa de trabalhadores e trabalhadoras sobrante e “disposta” (por necessidade e por questões de oferta e de demanda) a vender sua força de trabalho a valores reduzidos.

No entanto, pensar o mundo do trabalho do século XXI, sob a ótica materialista, requer um olhar crítico que vai além das transformações estruturais do trabalho, que de certa forma, são evidentes. Importa pensar nos aspectos intrínsecos ao próprio sistema capitalista e na supremacia da ideologia neoliberal, que favorecem a imposição de diversos modos de dominação que objetivam, utilizando uma expressão de Dardot e Lavali, a formação de um “sujeito neoliberal” e a conservação do sistema. Importa compreender as relações que se constroem nesse enquadramento, baseadas em contradições e forças que atuam contrariamente, em constante processo de mutação para a construção de uma realidade concreta. Em todos esses aspectos, a ideologia é um elemento voraz que parece ser um dos componentes centrais para o processo de aumento da taxa de exploração, ao passo que permite e cria condições para a “captura da subjetividade do trabalho vivo pelos valores-fetiches do capital”ii, transformando sobremaneira a vida dos sujeitos.

Historicamente, podemos considerar que há uma espécie de relação simbiótica entre capitalismo e ideologia, em que esta se vincula inicialmente à retórica empresarial e perpassa a esfera do trabalho, atuando no imaginário social. De fato, é possível identificar uma repetição de práticas capitalistas muito antigas no capitalismo recente, havendo apenas uma espécie de “atualização” dessas práticas, especialmente a partir da instrumentalização do trabalho por máquinas. Nesse sentido, o capital não parece estar alheio a um movimento pró-ativo de metamorfose dos processos produtivos, das modalidades laborais e claro, das relações de trabalho que são empurradas para dentro dessa onda de transformações. Não está alheio, mas aliena. No mundo do trabalho contemporâneo, sobretudo no capitalismo de plataformasiii, sob o signo do “empreendedorismo”, o novo léxico utilizado é eivado de ideologia e funciona como um grande aliado ao capital para a “captura das subjetividades” dos sujeitos. O fetichismo presente nas dimensões subjetivas das relações de trabalho passa a ser assimilado pela classe trabalhadora através dos discursos e incorporado em suas práticas, levando, de forma ideológica e “alienante”, ao atendimento dos interesses do capital em detrimento dos interesses dos próprios trabalhadores.

Esse processo é facilitado, em grande medida, pelo que Poleseiv chama de força “alheia” e incontrolável do capital, que possibilita a autoalienação e uma situação de autoexploração, em que o trabalhador impõe a si próprio uma jornada de trabalho extenuante de modo a atender às demandas capitalistas. Assim, o capital consegue atuar nas subjetividades não apenas da classe trabalhadora mas da sociedade como um todo, de modo a criar mecanismos de justificação para a superexploração. Essa condição é facilmente identificada nas novas modalidades de trabalho intermediadas por plataformas digitais.

Mesmo assim, valendo-se de uma condição de “crise estrutural do capital”v, com diversos problemas no campo do trabalho, essas plataformas continuam a atrair milhares de trabalhadores e trabalhadoras, tamanho o seu poder de cooptação e encantamento das massas, na medida em que se utilizam de um forte discurso ideológico pautado na ideia de “empreendedorismo”, não passando de eufemismo para “autoemprego” e “trabalhado precário”. Na prática, uma significativa parcela da classe trabalhadora é direcionada para as novas modalidades de trabalho subordinado que mascaram a condição de assalariamento e transferem aos trabalhadores todos os riscos, custos e gerenciamento (subordinado) do trabalho, despojados de seus direitos mínimos, sem regulamentação condizente ou qualquer proteção estatal. Os “empreendedores-de-si-mesmos”, “reduzidos à condição de existência de qualquer outra mercadoria”vi, não têm outra alternativa a não ser se submeterem ao intenso controle (algorítmico) e subordinação às plataformas que, na prática, muitas vezes significa trabalhar muito e ganhar pouco. Passam a fazer parte de uma classe cada vez mais fragmentada, na medida em que se não são reconhecidos formalmente (e não se reconhecem) como classe trabalhadora, são empreendedores (com muitas aspas) numa selva digital onde prevalece o modelo social “darwinista de luta de todos contra todos”, no qual se encontram condições que produzem insegurança em todos os níveis hierárquicos de um “exército de reserva de mão-de-obra docilizado pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego”.vii

Na protoforma do capitalismo, Marx já apontava que “com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”viii,em que numa relação inversa à grandeza da força produtiva do trabalho reduz o trabalhador à condição de mercadoria e o empobrece até chegar à condição de máquina. Essa constatação continua a ser válida nas sociedades capitalistas da contemporaneidade. Especialmente na época em que vivemos, a qual Byung Chul-Han chamou de “sociedade do cansaço” ou “sociedade do desempenho”ix, na qual as palavras de ordem são as motivacionais, as otimistas e as afirmativas que compelem a classe trabalhadora para a atividade “empreendedora”. O sujeito de desempenho, segundo Han, deve ser um empreendedor de si mesmo, desvinculando-se da negatividade do outro. Crises e negativismo devem ser banidos de sua perspectiva, não havendo espaço para esmorecimento. Ou seja, deve ver problemas como oportunidades para empreender, sem significar necessariamente “abrir uma empresa”, mas assumir certas características que se associam a uma atitude empreendedora. O sujeito precisa estar apto aos interesses do capital, sendo eficiente, rápido, motivado e produtivo. E assim, “o sujeito de desempenho continua disciplinado”, um fiel agente do capitalismo, articulado com os interesses do sistema. Giovanni Alvesx ainda acrescenta: “exige-se competência e resiliência, tendo em vista que as pessoas humanas-que-trabalham precisam se dispor subjetivamente a aceitar a “redução” do tempo de vida a tempo de trabalho”.

Assim, conforme valoriza o capital, “em proporção direta” o trabalhador desvaloriza a si próprio, pois é atingido em suas subjetividades e arrastado para uma atitude “empreendedora”, passando a atuar numa lógica produtivista. A ideologia torna-se crucial para o convencimento e interiorização dessa lógica em corpos e mentes, impondo um modo de existir e de trabalhar “empreendedor”. A partir desse contexto, o trabalhador se vê como “empresário” e não como parte da classe trabalhadora, vivendo e enfrentando as mesmas dificuldades e situações no cotidiano laboral, o que acaba por favorecer o processo de competição e a relação concorrencial entre seus pares. O que por fim, só leva ao atendimento da outra classe, que é a capitalista, transfigurada, no “capitalismo de plataformas”, na figura das plataformas digitais.

Associado ao processo ideológico, importa salientar a importância das análises interseccionais, pois invariavelmente, os marcadores sociais influenciam diretamente no “papel” que este sujeito empreendedor e “de desempenho” exerce na sociedade. O reconhecimento dessas distinções é importante, mas por outro lado, acaba também por favorecer o enfraquecimento da força da classe maior, que é da classe trabalhadora. Somos todos pertencentes à classe trabalhadora, com diversas “distinções” sociais, inclusive raciais. E claro, não há a menor dúvida de que esses marcadores (impostos historicamente, culturalmente, socialmente) tendem a empurrar uma fatia significativa da classe trabalhadora para condições piores de trabalho e de vida. No entanto, essas distinções parecem fazer com que aqueles que “sofrem” menos (de uma maneira geral) não compreendam o sofrimento de seus pares “menos privilegiados” na hierarquia social. Sem empatia e consciência de seu papel na sociedade capitalista, não há coesão de classe. E não restam dúvidas de que essa fragmentação classista serve apenas aos interesses capitalistas, pois a partir das distinções e concomitante falta de consciência de classe, criam-se mecanismos de justificação para a precarização e exploração sem que haja qualquer tipo de resistência mais significativa por parte da classe trabalhadora.

Nesse sentido, podemos pensar que o momento histórico que estamos vivendo, em que a partir da supremacia da ideologia neoliberal e o alastramento de formas precárias de trabalho maquiadas de empreendedorismo, sustentadas em narrativas mistificadas associadas a novos métodos de gestão empresarial que favorecem apenas o capital, é resultado de uma derrota de luta política, de luta de classes, que se dá no sistema social. Mas além disso, é preciso perceber que a raiz de todos esses problemas sociais que se exteriorizam nos mercados de trabalho acontecem dentro de algo muito maior, que é o próprio sistema capitalista repleto de contradições. Faz parte da sua lógica de existência e de permanência no tempo histórico criar essas ferramentas de dominação e de imposição de um modo de viver “obediente” que favoreça o processo de acumulação capitalista e claro, o sustente. Para a classe trabalhadora, resta o processo de alienação e autoexploração que, em última instância, leva à degradação, ao adoecimento mental e à desestruturação das condições de vida.

i DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. Edição Kindle.

ii ALVES, Giovanni. A Nova Precariedade Salarial e o Sociometabolismo do Trabalho no Século XXI. In: CASULO, Ana Celeste; ALVES, Giovanni. (Org.). Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. 1. ed. Bauru, SP: Projeto Editorial Praxis, 2018. Edição do Kindle.

iii SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataformas. 1. ed. Buenos Aires: Caja Negra, 2018.

iv POLESE, Pablo. (2016). Que tipo de crise? István Mészáros e a crise estrutural do sistema do capital. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 14, n. 37, p. 40-60, 2016. DOI: 10.12957/REP.2016.25393

v MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. Edição do Kindle.

vi MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021. Edição do Kindle.

vii BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Jorge Zahar Editor, 1998.

viii MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021. Edição do Kindle.

ix HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019. Edição do Kindle.

x ALVES, Giovanni. A Nova Precariedade Salarial e o Sociometabolismo do Trabalho no Século XXI. In: CASULO, Ana Celeste; ALVES, Giovanni. (Org.). Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. 1. ed. Bauru, SP: Projeto Editorial Praxis, 2018. Edição do Kindle.

REFLEXIONES DESDE EL ENFOQUE CRÍTICO TUTELAR DE LAS RELACIONES LABORALES SOBRE UNA CADA VEZ MÁS NECESARIA CENTRALIDAD SINDICAL

Mario L. Gambacorta – Abogado. Docente de grado y postgrado en varias universidades (UNPAZ-UBA-UNLZ-UMET-UMSA-FLACSO-), Investigador, Doctor en Ciencias Jurídicas.

1.- Algunas preguntas para comenzar a reflexionar en torno a la centralidad sindical

¿Por qué se producen sistemáticamente impulsos justificatorios de lo antisindical, tanto como reacciones que buscan neutralizar la promoción y constitución de organizaciones sindicales?

El apoyo explícito de Joe Biden a los sindicatos y; específicamente, al derecho a la sindicalización en Estados Unidos, puede ser tratado no solo como un hecho político local sino también de proyecciones regionales y globales.1 Esta toma de posición del presidente de los Estados Unidos le ha traído más de una crítica, pero ¿de y desde quiénes, y por qué?

La primera referencia emblemática, en línea con lo expuesto, es el caso de los intentos de sindicalización en almacenes de Amazon. Allí, destacamos la complejidad para sindicalizarse; estamos hablando de un par de almacenes y no de la totalidad de la empresa. Hecho ratificado, por lo ocurrido, en cuanto a que, si bien fue obtenido un primer éxito, por el sindicato Amazon Labor Union,2 en favor de la sindicalización por los trabajadores organizados, en uno de los almacenes de la empresa; luego se verificó una derrota respecto de la sindicalización en una instancia similar posterior. Esto, abre la necesidad de explorar la efectividad de los alcances del derecho a la sindicalización, la eficacia de la normativa laboral, y la eficiencia de la libertad sindical.3

De lo ocurrido en Amazon, entre otros emergentes, podríamos evidenciar y destacar, especialmente, un marco de resistencia antisindical. Este, a su vez, refleja una profunda preocupación empresaria por la posibilidad de sindicalización de los hombres y mujeres que se desempeñan en estos ámbitos laborales; así como, la forma en que se ejerce el poder de organización, dirección y sanción. Y aunque se trata de ámbitos tan acotados como el de esos dos almacenes, podría colegirse, la evaluación estratégica empresarial de las potenciales proyecciones posibles en términos del accionar sindical, y las respuestas articuladas ante ello. Starbucks, por su parte, ha llevado adelante diversas acciones que han sido cuestionadas por antisindicales.4 En la misma línea, Elon Musk, de Tesla, ha cuestionado al presidente de Estados Unidos y la relación del Partido Demócrata con los sindicatos; y sus tweets han merecido sentencias judiciales para que los borrara por interpretárselos como amenazantes para los trabajadores.5

En 2017, encuestas realizadas, incluyendo una a empresarios tecnológicos, evidenciaba que, al 74% de éstos; les preocupaba la sindicalización de los trabajadores, y que les gustaría que disminuyera la influencia que pudieran tener los sindicatos. Por el contrario, apoyarían programas que beneficien únicamente a los estadounidenses más pobres o que se establezcan impuestos para los que ganan más de determinadas sumas por año. También reaccionan negativamente ante el hecho que, el gobierno intervenga en el funcionamiento de los mercados.6

Volvemos a preguntarnos, recordando el método socrático; y en vista de entender mejor, valiéndonos de un pensamiento crítico, los intereses en juego; ¿por qué preocupan tanto los sindicatos? ¿en qué pueden afectar a estas personas tan ricas y poderosas? ¿su preocupación tiene que ver con una posibilidad de restringir solo su “elevada” rentabilidad; o porque puede afectar otros aspectos de un actuar empresarial no tan transparente? ¿tienen éstas algo que ocultar frente al derecho a la información a la que deberían poder acceder los sindicatos, por ejemplo, para poder negociar colectivamente? ¿quieren tener un manejo y administración discrecional, sino arbitrario de su empresa? ¿con qué modelo de capitalismo se asocia esto?

Nos proponemos responder estas preguntas mediante la categoría de análisis que hemos denominado enfoque crítico tutelar de las relaciones laborales.7 Nos orientamos a verificar que, nos encontramos ante una estrategia desprotectoria, hacia las y los trabajadores, en el marco de lo que, en dicho el enfoque, caracterizamos como hegemonía deslaboralizadora. Ahora bien, también se nos presentan, ya a modo de preguntas retóricas, las siguientes: ¿pueden sostenerse tales posiciones respetando la libertad sindical? ¿qué se entiende y por quién como libertad sindical?

La libertad sindical, sintetizando, es un postulado en el cual se alcanzan, sostienen y deben garantizarse; una serie de derechos para defender y promover los intereses de las y los trabajadores. Por ello, ha llegado a ser reconocida por tratados internacionales como un derecho humano fundamental. Asimismo, es una herramienta fundamental para la vigencia plena de la democracia. Cuestionarla, directa o indirectamente, es cuestionar el sistema democrático. Esto nos debería llevar a analizar con mayor profundidad, si interesa la plena vigencia del sistema democrático; cuando se busca que uno de sus actores -el sindical- sea constantemente menospreciado, criticado, atacado y soslayado.

Por otra parte, ¿cómo se configura lo que categorizamos como socio-económico-laboral? ¿Es verdad que no hay más trabajo asalariado? O se trata meramente de una argumentación en vista de acotar, sistemáticamente, las representaciones sindicales; proyectando e institucionalizando, una hegemonía deslaboralizadora, como la que buscamos evidenciar desde nuestro enfoque crítico tutelar de las relaciones laborales, en vista de desarticular la, persistente y actual, ofensiva desreguladora en un sentido desprotectorio.

Otro caso, en que el foco se encuentra puesto con marcado fervor, en desmedro de lo sindical; es cuando se sostiene una manifiesta y absoluta ausencia de responsabilidad por parte de sectores empresariales (léase, primordialmente, de grandes empresas transnacionales), en aspectos negativos, regresivos; y en desmedro de un funcionamiento democrático de la sociedad, en términos de la incidencia de las mayorías populares. Lo anterior, se verificaría, por ejemplo, en la vinculación de actuares empresariales -inicialmente relacionados con lo financiero-, en el origen de crisis como la de 2008-2009. Crisis que, reiteramos, primero fueron financieras, aunque luego se extendieron y devinieron económicas.

Llegados a esta instancia, vale recordar que, los intercambios globales potenciados por las construcciones supranacionales, entre las que destaca la Unión Europea (UE), se desarrollaron con una dinámica que no pudo ser acompañada con el mismo ritmo por los Estados nacionales ni las organizaciones sindicales, en sus respectivas lógicas institucionales. En tal sentido, tampoco puede omitirse que se priorizó la circulación de bienes y servicios antes que la de personas. Con todo esto, simultáneamente, se van configurando y reconfigurando subjetividades con relación a lo social, en virtud de un liderazgo de hecho del sector empresarial, en sus diversas dimensiones transnacionales, regionales y locales; lo cual también abona la hegemonía deslaboralizadora, categoría central para la formulación del enfoque crítico tutelar de las relaciones laborales; y nuestra propuesta, incluída en él, de una nueva taxonomía laboral.

Si bien en lo específico nos ocupa la materia laboral; no podemos dejar de ver con preocupación, la omisión de las incidencias empresariales en diversas problemáticas que aquejan las relaciones laborales; sin que, paradójicamente, se las atienda cuando estas últimas pudieran haber sido las causantes de crisis que, luego se querrán resolver como si el origen de la problemática proviniera exclusivamente de lo laboral, y no de ciertos actuares empresariales que se orientan a limitar derechos individuales y colectivos. A modo de ejemplo, podemos señalar que, tanto en cursos de grado como de postgrado verifico en forma reiterada que, ante cualquier planteo en torno a la cuestión del trabajo; una señalización de la responsabilidad sindical, y la sistemática omisión de responsabilidades al sector empresarial. Así, el debate se circunscribe, frecuentemente, a las problemáticas, de, en, y entre, los sindicatos; aislándolos, y orientándose a neutralizar el análisis de otras circunstancias, contextos, y sobre todo, actores.

En cuanto al Estado, su rol es más o menos cuestionado, de acuerdo con quien esté a cargo de su gobierno, y en función de la matríz ideológica en la que se enmarca ese gobierno.

Como consecuencia de lecturas, lineales, simplificadas intencionalmente desde quienes ostentan esa hegemonía deslaboralizadora, y reducidas a enfoques micro y marginales; emerge una versión sesgada, anclada en el preconcepto y el prejuicio antisindical prevalentemente instalado. Versión que busca desconocer los profundos intereses en juego, en términos de configuración de un modelo de sociedad, así como, del rol democratizador y distributivo que a acompañado lo sindical desde la revolución industrial.

Una visión carente de demasiados fundamentos más allá de la dogmática economicista (y de la validez de algunas críticas atendibles, pero no siempre verificables). Con una matríz individualista que, no considera en demasía lo transdisciplinario ni lo interdisciplinario, y menos aún impulsar un pensamiento crítico ante del prevalente egoísmo reivindicado. Más bien, se afinca en el confort del “mainstream”, esa corriente de pensamiento que suele ser consecuencia y producto de la acción de medios de comunicación hegemónicos, recordemos en línea con intereses muchas veces difuminados. Un ejemplo, en línea con lo antedicho, es como se percibe la informalidad y la no registración laboral. Se señala, primariamente, la responsabilidad sindical. Pero se omite la responsabilidad de quien no registró, es decir la de la parte empleadora. Y se difiere también el rol del Estado, como responsable de ejercer la inspección del trabajo y de la seguridad social en un sentido tutelar.

Llegamos a que, paradójicamente, quien estaría en un tercer nivel de responsabilidad -léase el sindicato- es colocado en primer plano. Lo anterior, no implicaría desconocer o negar la posibilidad de inacción, y hasta la existencia de algunas lamentables complicidades sindicales ante la ausencia de protección laboral. Sino que, colegimos, una traslación de responsabilidad, y la justificación de incumplimientos propios del sector empresarial y/o gubernamental; en cabeza de otro, el actor sindical. Reiteramos, sin desmedro de algunas responsabilidades que podrían caberle a determinados protagonistas del ámbito sindical; es evidente que, el sindicato no es el primer configurador de las irregularidades laborales, ni quien tiene la responsabilidad primaria por haberse incurrido en ello. Y agregamos que, suele omitirse en este tipo de análisis, que no todos los sindicatos cuentan siempre con los recursos, posibilidades y contextos; para actuar en función de la defensa de los intereses de sus representados; amén que, esto puede diferir entre las diversas organizaciones gremiales de trabajadores.

2.- ¿Por qué preocupa tanto lo sindical?

¿Por qué se repele tanto a los sindicatos y se busca masificar una calificación peyorativa desde los grandes centros de poder?

Además de las consideraciones del punto anterior, más bien complementándolas; cabe señalar que el sindicato es un elemento disruptivo de la lógica salvaje del libre mercado. Directa o indirectamente, la afecta, la condiciona, busca enmarca y hasta domesticarla. Se configura institucionalmente como un canal de representación, cuestionamiento, y -debería serlo-, de acción. Sin embargo, desde la hegemonía deslaboralizadora se los cuestiona genéricamente. Y aquí podemos preguntarnos: ¿qué rol se espera de ellos? ¿un actuar sumiso y no cuestionador? ¿qué desconozcan y nunca motoricen un reclamo para la defensa de los intereses de sus representados? ¿que abdiquen de la conflictividad subyacente en las relaciones laborales, que la nieguen?

El rol de los sindicatos no puede ni debe ser agradable para todos: representa intereses sectoriales. Su función no es la de no cuestionar jamás a su antagonista empresarial y/o demás poderes hegemónicos. Tampoco es su rol acompañar sin condicionamientos, al sector empleador o al gobierno de turno. El sindicato sabe que, si bien puede ser parte del denominado tripartismo, debe reconocer cuando ese tripartismo no logra el tan buscado y necesario consenso; que, vale agregarlo de nuestra parte, no siempre es un consenso que contempla o atiende las necesidades de sus representados. La organización sindical podrá apoyar el diálogo social, padeciendo incluso diálogos inconducentes, la falta de diálogo, o hasta la represión, en vez del diálogo o luego de éste. Pero no lo puede hacer indefinidamente en esa lógica, en vista de sostenerse sosteniendo los intereses legítimos que representa.

En cuanto al sindicalismo en Argentina, al igual que muchos otros movimientos sindicales; está enfrentando el denominado “lawfare antisindical”, iniciado durante la gestión 2015-2019. Un actuar antisindical apoyado en la construcción de causas para imputar dirigentes sindicales, que involucra: magistrados judiciales, fiscales, funcionarios del poder ejecutivo -en el caso, de la Provincia de Buenos Aires-, agentes de inteligencia y empresarios. Pero este actuar antisindical, denominado hoy lawfare, no es nuevo. Recordemos que, aunque sin esta denominación, hay similitudes verificables en cuanto a procederes de otros tiempos, podríamos decir de todos los tiempos, en contra de la acción sindical. Entre otros ejemplos históricos relevantes, podemos mencionar lo ocurrido a los mártires de Chicago, que conmemoramos 1ro. de mayo; o lo padecido por aquel colectivo de trabajadoras en Nueva York, que conmemoramos el 8 de marzo.

Tampoco es novedoso que, las y los trabajadores padezcan el accionar antisindical de empleadores, poderes judiciales, y demás estructuras del Estado; funcionales a aquellos, y contrarias a los derechos sociales. Ante este viejo y nuevo contexto, brevemente referido en este trabajo; los sindicatos atraviesan una crisis, frente a los paradigmas desreguladores que se impulsan desde una hegemonía deslaboralizadora; y que se presentan a las sociedades, en términos de un falso “sentido común”, como si:

  1. no existieran más las y los asalariados;
  2. hubiera o debiera desaparecer el trabajo dependiente y tutelado;
  3. merecieran ser invisibilizados, en vez de ejemplificados, los aspectos tutelares en las relaciones laborales.

Es verificable un debilitamiento sindical a niveles: locales, regionales y globales. El primer paso para revertirlo es reconocerlo. Así, sin desmedro de las identidades locales y regionales, la internacionalización de la organización y la acción sindical no tiene gran impacto.

De los ciento ochenta y siete países representados en la OIT, no hay más de veinte movimientos sindicales con un grado atendible de representación, negociación y eventualmente capacidad para sostener un conflicto abierto. Los sindicatos se encuentran con problemas de aislamiento de, desde y en lo individual; requiriéndose una puesta en valor y reconocimiento de lo grupal, colectivo como instancia superadora de una concepción hegemónica. La afectación de la representación sindical, y su proyección en la negociación colectiva, afecta los aspectos democratizadores y distributivos que pueden canalizar las organizaciones gremiales. Probablemente aquí, es donde se centra el interés del actuar antisindical: en las proyecciones de la existencia de organizaciones gremiales. Sobre todo en materia de negociación colectiva.

Por contrario sensu, la debilidad sindical, redunda en un menor control de los procesos productivos, la limitación o restricción en el acceso a información socioeconómica que se podría vincular en términos distributivos en la relación capital-trabajo, y a la posibilidad de accionar en términos de progresividad en el control de la discrecionalidad/arbitrariedad empresarial. Sin embargo, y para favorecer la unidad para la acción, valdría destacar que, si bien nos encontramos en un momento de pérdida de horizontes; las divisiones histórico-ideológicas en el ámbito sindical, no son tan rígidas como otrora lo fueron, lo que debería llamar a las organizaciones sindicales a una todavía mayor recomposición articulada en el plano global en defensa de sus intereses sectoriales, y a impulsar su propia renovación como actor necesario y relevante para un modelo renovado de integración social protectoria y anclado en la justicia social, como preconizamos desde el enfoque crítico tutelar de las relaciones laborales.

Se trataría así, entre otras cosas, de atender la regularización no solo laboral sino económica, en vista de la distribución de la riqueza y el acceso a los bienes universales, de cuyo destino universal deberían ser acreedores todos los seres humanos. Impulsando un modelo que no se agote en lo material, que atienda lo colectivo sin abandonar la dignidad individual; expresada, esta última, en términos de individuos, social y participativamente integrados, democráticamente.

3.- Por una centralidad sindical

Sostenemos que lo sindical no debería interpretarse en forma aislada. En tal sentido, correrían estas organizaciones, el riesgo de volverse autorreferenciales y diluir sus potencialidades integradoras en beneficio, no solo respecto de sus representados sino también de la sociedad toda. Concebimos a los sindicatos como un actor estratégico, una herramienta para la distribución e integración en un proyecto de país; sin embargo, es dable apreciar que, más allá de sus propias falencias, externamente:

  1. al sindicato se lo pretende debilitar (sea prioritariamente desde las grandes empresas o desde determinados gobiernos a cargo de la gestión del Estado), especialmente, en su rol político, tratándoselo de circunscribir a lo gremial, en tanto limitación unidimensional sectorial;
  2. Se articula con el movimiento sindical como si este fuera una estructura unívoca, monolítica; sin atenderse su diversidad convergente-divergente, tanto en términos de visiones como de acciones.

Por su parte, la compleja realidad de la globalización, hoy prioritariamente económica, requiere de un sindicalismo que: sea parte integrante e impulsora de sus intereses sectoriales; pero no se limite a eso, sino que, a la vez, integre y construya un proyecto transformador, en función del interés general que se expresa en un proyecto de país, para y desde la centralidad del trabajo. Y esto nos atrevemos a expresar que es en la práctica una necesidad regional. A modo de ejemplo, podríamos destacar y sintetizar objetivos como:

  1. la transformación del trabajo -en sus heterogeneidades- en empleo tutelado;
  2. la potenciación del sindicato no solo como actor gremial sino también político;
  3. la ampliación del rol de acompañamiento y consulta, con la cada vez mayor participación en decisiones políticas;
  4. la convergencia desde el interés sectorial integrado hacia el interés general;
  5. potenciar el rol institucional sindical de: canalización, integración y equilibrio, en términos sectoriales, con otros actores sociales; en cuanto a participar constructivamente en vista del interés general.

Un proyecto de país que ponga foco en la centralidad del trabajo, no podría serlo sin atender algunos de los componentes que hemos tratado de bosquejar, en torno de una acción estratégica integradora que, se nutre de lo que hemos esbozado, y nos atrevemos a categorizar como una centralidad sindical. Dicha centralidad requiere: revalidar desde lo propiamente sindical, el poder de representación, negociación y conflicto. Pero a la vez, se necesita, complementariamente, y sin afectar la autonomía de las organizaciones; de una institucionalidad que refleje la intervención tutelar del Estado en favor de las organizaciones sindicales -como la que impulsamos desde el enfoque crítico tutelar de las relaciones laborales-, generando un escenario más protectorio para el desarrollo, la subsistencia y el crecimiento del accionar sindical.

De este modo, podremos acercarnos a una efectiva libertad sindical que se vea reflejada, en lo que hemos caracterizado como sus reglas de aplicación, a saber: autonomía sindical, democracia sindical, tutela estatal, derecho de huelga; y la más dinámica y operativa de ellas, la negociación colectiva. Irónicamente, sospechamos que ésta última, es la que más preocupa a los poderosos por todo lo que conlleva; como proyección desde lo sindical, en términos de democratización y distribución; y como reconfiguración institucional con un anclaje en la justicia social. Lo expuesto, es parte de lo que queremos visibilizar y explicitar, desde nuestro enfoque crítico tutelar de las relaciones laborales.

1En tal sentido: https://www.chicagotribune.com/espanol/sns-es-apoyo-joe-biden-sindicato-historio-que-significa-20210513-rb3pgdoalzg5lppbecvsyfxmm4-story.html

Información consultada al 9 de junio de 2022.

2https://www.amazonlaborunion.org/

3En tal sentido: https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-56696522

https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/amazon-hace-valer-su-peso-y-el-sindicalismo-sufre-una-amarga-derrota-nid09042021/

https://www.telam.com.ar/notas/202204/588266-empleados-trabajadores-amazon-sindicato-empresa-estados-unidos-eeuu.html

https://www.lapoliticaonline.com/usa/interview-us/hay-un-nuevo-movimiento-sindical-liderado-por-latinos-y-afroamericanos/

https://www.infobae.com/america/agencias/2022/05/02/intento-de-crear-un-sindicato-en-una-segunda-sede-de-amazon-falla-en-nueva-york/

https://www.rfi.fr/es/am%C3%A9ricas/20220503-falla-el-intento-de-crear-un-sindicato-en-una-segunda-sede-de-amazon-en-nueva-york

Información consultada al 9 de junio de 2022.

4En tal sentido: https://magnet.xataka.com/en-diez-minutos/sabotajes-cierres-amenazas-como-starbucks-esta-batallando-ola-sindical-sus-trabajadores

https://forbescentroamerica.com/2022/05/04/starbucks-niega-alza-de-salario-a-los-trabajadores-que-se-unan-al-sindicato/

https://www.france24.com/es/estados-unidos/20211210-starbucks-sindicato-nueva-york-eeuu

https://www.swissinfo.ch/spa/ee-uu–sindicatos_empleados-de-starbucks-han-formado-115-sindicatos-pese-a-trabas-de-compa%C3%B1%C3%ADa/47656196

Información consultada al 9 de junio de 2022.

5En tal sentido: https://hipertextual.com/2022/02/los-polemicos-tweets-de-elon-musk-sobre-los-sindicatos-vuelven-a-ponerle-en-el-punto-de-mira

https://www.infobae.com/economia/2021/04/04/jeff-bezos-y-elon-musk-los-dos-hombres-mas-ricos-del-mundo-ante-un-desafio-comun-los-sindicatos/

Información consultada al 9 de junio de 2022.

6Broockman, D.; Ferenstein, G. y Malhotra, N. (2017) “Wealthy Elites’ Policy Preferences and Economic Inequality. The Case of Technology Entrepreneur” (Working Paper) This study was approved by the Stanford University Institutional Review Board, pp. 1-31.

7Gambacorta, M.L. (2021). Un enfoque critico tutelar para las relaciones laborales: categoría de análisis a modo de manifiesto. Conceptos, 96 (51), 73-105.

REDES SOCIAIS E DIREITO DO TRABALHO: ENTRE O CANCELAMENTO E OS TRENDING TOPICS

Oscar Krost

O recente caso noticiado na mídia sobre postagem feita no tiktok por uma demandante em ação trabalhista em companhia de ex-colegas convidadas para depor como testemunhas reacendeu um antigo debate. Atenta às manifestações da ex-empregada na internet, a empresa se deparou com um vídeo em que aquela afirmava se dirigir à Justiça do Trabalho com as “amigas para processar a empresa tóxica“.

A prova do fato foi juntada aos autos, invalidando os depoimentos. No entendimento da Desembargadora Silvia Almeida Prado Andreoni, Relatora do acórdão:
Trata-se de uma atitude jocosa e desnecessária contra a empresa e, ainda, contra a própria Justiça do Trabalho. Demonstra, ainda, que estavam em sintonia sobre o que queriam obter, em clara demonstração de aliança, agindo de forma temerária no processo, estando devidamente configurada a má-fé”.1

Embora o precedente diga respeito a redes sociais e Direito Processual do Trabalho, dia a dia, pela intensificação da conectividade, situações similares vem exigido cada vez mais respostas do Direito Material do Trabalho. Poucas vezes a “leitura” dos fatos sociais atenta às mudanças culturais e tecnológicas características da atualidade.

Limites e parâmetros ao agir dos contratantes em todas as etapas da relação de emprego – pré, contratual e pós – são questionados perante a Justiça Laboral, sem qualquer sinal de formação de jurisprudência, sequer em âmbito regional. A dissonância entre o ser e o dever ser se justifica, em parte, pelo antagonismo de ritmos e de tempos da internet em comparação aos do devido processo legal.

Para Rui Portanova, os julgamentos realizados pelo Poder Judiciário, de modo implícito ou explícito, em maior ou menor medida, no tocante a razões de decidir, fundamentação e convencimento, podem ser entendidos e examinados sob o recorte de classe, raça e gênero.2 No Direito do Trabalho, ramo jurídico forjado pela e em meio à luta de classes, tais prismas ficam ainda mais evidentes.

Contudo, um quarto viés costuma passar despercebido, sendo atinente à comunicação virtual em redes sociais e dotado de central importância: a projeção etária-geracional. Para além do fato em si, a exemplo de postagens, interações ou recusas de participar do mundo “.com”, os “porquês” do agir são fruto da imagem formada pelas lentes subjetivas e personalíssimas de cada indivíduo em sua singularidade, matéria-prima dos dados sensíveis, conforme rol não exaustivo do art. 5º, inciso II, da LGPD.3

As revoluções industriais, tecnológicas, científicas e informacionais há muito ocupam pesquisas e debates na academia, o mesmo não ocorrendo com as diferentes percepções tidas pelos sujeitos subordinados em relação a elas. Uma nova ferramenta virtual é recebida, entendida e utilizada de maneiras muito diversas por alguém com 20, 40 e 60 anos de idade, independente da escolaridade ou do grau de instrução, embora jurídica e judicialmente as respostas dadas às demandas tendam a ser apresentadas sem esta atenção.

Não podemos examinar a questão apenas sob o eixo etário, tampouco meramente geracional, devendo relacioná-los, considerando a expectativa natural quanto aos comportamentos passíveis de agravamento ou de atenuação. Funcionam como presunções relativas, cujo afastamento dependerá de apurado exame dos elementos no caso concreto.

Neste sentido, o magistério de Denise Pires Fincato, Guilherme Wünsch e Pedro Guilherme Beier Schneider:

A análise dos grupos geracionais permite concluir por uma mudança na forma como o trabalhador encara o fenômeno do trabalho e quais são as características de cada um. Os padrões acima apresentados delineiam inúmeras diferenças entre os integrantes de cada geração, mas também demonstram algumas semelhanças (…) o tempo, neste caso, não deve ser compreendido como o cronológico. Pelo menos não inteira e unicamente.”4

Assim, a interação nas redes, o tempo da comunicação e a ideia de privacidade, inegavelmente, variam de alguém nascido na Era do USB, wi-fi e terabite, para outro alguém que apenas na fase adulta se deparou com ferramentas e linguagens digitais, em contexto diametralmente diverso. Entender que amb@s externam descontentamentos, tecem elogios ou se relacionam com colegas de forma igual, inevitavelmente, conduz à quebra de um padrão razoável de isonomia, ao dispensar tratamento idêntico a pessoas substancialmente diferentes.

Não se defende a isenção de responsabilidade de jovens por atos virtuais, ainda que sujeitos profissionais ou em busca de colocação no mercado de trabalho, mas uma interpretação em perspectiva, contexto e equidistância.

Propõe-se contextualizar os fatos, preservar os Direitos Fundamentais à intimidade e à privacidade, proteger os dados pessoais e, acima de tudo, dentro de um sentido substancial de valor social do trabalho e da livre iniciativa, educar. Enfatizam-se o fundamento protetivo do Direito do Trabalho, emanado de seus Princípios, e os propósitos constitucionais, como etapas de um projeto societário fraterno, pluralista e sem preconceitos, na conjugação consagrada no preâmbulo da Constituição da República.

Afinal, redes sociais são naturais para adolescentes e adultos jovens, fazendo parte de suas vidas desde sempre. Para os “menos jovens”, “jovens há mais tempo” ou “mais experientes” liames mediados pela tecnologia se apresentam como opções por vezes indesejáveis e impostas.

Ocorre que @s Profissionais do Direito do Trabalho em atividade, via de regra, fazem parte de “gerações analógicas”, cujo contato com novas ferramentas informáticas se deu paulatinamente e em paralelo a saberes prévios, e respondem pelo julgamento do agir em redes dos integrantes das “gerações digitais”. Admite-se que Advogad@s, Juízas, Juízes e Membros do Ministério Público possam manter contato com pessoas mais jovens, contemporâneas aos jurisdicionados, o que não lhes confere “fluência” no dialeto “www”, quando muito certo conhecimento de causa, coisa bastante diversa.

Há um sem número de perguntas clamando por respostas dos juslaboralistas, desde o grau de acesso à privacidade virtual de candidat@s a uma vaga de emprego pelo recrutador (fase pré-contratual), passando pelos limites do Poder Diretivo e do Direito de Resistência quanto ao uso de perfis pessoais para promover produtos/serviços do empregador (etapa contratual), chegando a manifestações públicas sobre a relação de emprego, causa da dispensa e responsáveis pelo ato (momento pós-contratual). Tais hipóteses são reais e foram obtidas em notícias e precedentes amplamente veiculados na web.

Norteando o enfrentamento de tal desafio, inspiradoras as reflexões do Ministro Eros Grau sobre a construção normativa:

A norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser)“.5

Alea jacta est“, citariam uns; #ficaadica, marcariam outros: entre eles, com a palavra, o Direito do Trabalho…

1 BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região/SP, Provas testemunhais anuladas pela Justiça do Trabalho após vídeo no tik tok, 14.07 2022, disponível em <https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/provas-testemunhais-sao-anuladas-pela-justica-do-trabalho-apos-video-no-tik-tok&gt;. Acesso em: 10 ago. 2022

2 PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

3 Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/18), art. 5º, inciso II:

Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

(…)

II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

Íntegra da norma disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm&gt;. Acesso em: 11 ago. 2022.

4 FINCATO, Denise Pires; WÜNSCH, Guilherme; SCHNEIDER, PEDRO Guilherme Beier. O Direito e as metamorfoses do trabalho: desafios e perspectivas de direito do trabalho em um cenário de transformações. Londrina: Thoth Editora, 2021, p. 32.

5 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 22.

“APLICATIVOS”: POR QUE MUDAR O RUMO DA PROSA

Vitor Araújo Filgueiras – Economista, Pós-Doutor (UNICAMP), Doutor (UFBA), Mestre em Ciência Política (UNICAMP) e Professor (UFBA), autor de “É tudo novo”, de novo: as narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital“ *

Os últimos dias têm trazido novidades para a regulação do trabalho dos chamados “aplicativos” e “plataformas”. Decisões favoráveis à proteção mínima dos trabalhadores dessas empresas ocorreram no Tribunal Superior do Trabalho (TST), que reconheceu o vínculo de emprego entre o Uber e um motorista1, e no Tribunal Regional do Trabalho da Bahia (TRT 5), que concedeu liminar em favor de um entregador do Ifood, baleado em serviço, obrigando a empresa a pagar seu salário enquanto ele estiver afastado2.

Essas decisões dão esperança para que o Brasil siga a tendência mundial de reconhecimento da fraude contratual utilizada por “aplicativos e “plataformas”, e passe a reconhecer a natureza assalariada das relações e garantir a proteção do direito do trabalho contra a exploração sem limite. Que fique claro: o reconhecimento do vínculo do emprego é uma proteção mínima: é um ponto de partida, não de chegada. Ele impede salários abaixo do mínimo, jornadas extenuantes, ausência de descanso, dá alguma proteção à dispensa, entre muitos outros direitos elementares para limitar o arbítrio patronal, além de facilitar a ação coletiva dos trabalhadores para ampliar esses direitos mínimos.

Nas últimas décadas, e particularmente nos últimos anos, a ideia de que grandes mudanças nas empresas têm alterado a natureza das relações de trabalho, e de que o próprio assalariamento estaria em declínio, tem impregnado o imaginário de boa parte da sociedade, incluindo parcela das instituições e dos próprios trabalhadores. As empresas que se identificam como “aplicativos” e “plataformas” são a atual coqueluche que radicalizou essa narrativa, afirmando que os trabalhadores não apenas não são seus empregados, mas que seriam seus clientes. É nessa esteira que difundem o argumento de que os trabalhadores teriam autonomia, liberdade e flexibilidade para definir onde, como e quando prestar os serviços.

Trata-se de uma falácia completamente desprovida de base empírica, mas que muitas vezes é assumida, ainda que parcialmente, até mesmo por quem critica as péssimas condições de trabalho nos “aplicativos”. A retórica empresarial induz à confusão, desinformação e posições contraditórias por boa parte das instituições (incluindo a academia) e dos trabalhadores. Ainda é comum ler e ouvir as seguintes justificativas para que os trabalhadores de “aplicativos” não tenham seus direitos trabalhistas reconhecidos (via CLT):

1. Estaríamos tratando de novas relações de trabalho que não se enquadrariam no emprego;

2. Esses trabalhadores (ou “empreendedores”) teriam mais autonomia, flexibilidade e ou renda sem CLT;

3. A legislação do trabalho no Brasil é precária, não garante boas condições de trabalho;

4. Os trabalhadores de “aplicativo” não gostariam ter o vínculo de emprego reconhecido e isso deve ser respeitado.

Sumariamente3, esses argumentos não se sustentam porque:

1- As relações entre trabalhadores e “aplicativos” são flagrantemente assalariadas, marcadas por completa subordinação que beira a tirania. Estamos tratando de empresas como outras quaisquer, mas que usam, dentre outros instrumentos, uma ferramenta tecnológica (a plataforma/aplicativo) para gerir a produção e o trabalho. Os aplicativos, uma vez privatizados – assim como as máquinas físicas desde há alguns séculos – , servem como ferramentas de dominação entre indivíduos, e ela tende a ser tanto mais brutal quanto menor for o papel do direito do trabalho.

2- Os trabalhadores de “aplicativos” têm renda menor, jornadas mais extensas e menos tempo de descanso, e enfrentam maior despotismo dos patrões em comparação aos trabalhadores com carteira assinada4.

3- É verdade que a CLT é precária, mas ela prevê condições superiores àquelas vividas por esses trabalhadores (portanto, pior sem ela), e é apenas um ponto de partida da disputa, um patamar mínimo a partir do qual lutar.

4- Sobre o último argumento, é preciso refletir um pouco sobre a “pegadinha” que ele promove. Há questões fundamentais para questionar essa suposta opção de trabalhadores por não ter direitos, e a principal delas é que a irrenunciabilidade é fundamento do próprio direito do trabalho, sem a qual os limites à exploração tendem a desaparecer, já que o “não querer” dos trabalhadores é promovido pela coerção do mercado de trabalho. Para entender o caso concreto dos “aplicativos”, é necessário ter em mente a massificação dos discursos ideológicos em diversos níveis, a exemplo da campanha de uma empresa que disseminou mentiras para desmobilizar as reivindicações de seus entregadores, como divulgado semana passada em reportagem detalhada da Agência Pública5.

Mas chamo atenção aqui para o fato de que defender que os trabalhadores não tenham carteira assinada por uma questão “democrática” (“vamos ouvi-los”) ou para “não imputar interesses”, na verdade promove o arbítrio patronal (contra a democracia) e joga contra os interesses declarados pelos próprios trabalhadores. Ou seja, é preciso ouvi-los com atenção. Quando um trabalhador diz não querer um contrato de emprego (CLT), ele o faz como conclusão a partir de determinados objetivos, e em particular da premissa de que perderá autonomia, flexibilidade e renda. Contudo, todos os dados indicam que, sem contrato formal de emprego, as relações são mais arbitrárias, rígidas e geram menos renda. Portanto, existe uma contradição que precisa ser apontada e denunciada para que os interesses declarados pelos trabalhadores sejam efetivamente alcançáveis.

Os golpes retóricos empresariais sobre supostas transformações nas relações de trabalho não são tão novos. Terceirização, cooperativas, parcerias, empresas “compradoras”, foram apresentados como fenômenos diferentes do que são como estratégia de legitimação, e já causaram muitos estragos ao redor do mundo. Como o campo do trabalho não tem enfrentado as premissas dessas estratégias do capital, elas vão sendo radicalizadas. Um pressuposto para uma luta que seja mais efetiva, para o campo do trabalho, é não tomar pela aparência o discurso patronal. E, no caso concreto do conteúdo das relações de trabalho, não assumir que as empresas estão efetivamente se afastando da gestão do trabalho. Pelo contrário, elas nunca controlaram tanto os trabalhadores, e usam a retórica do afastamento precisamente para reduzir as chances de limitação da exploração.

* Resenha disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/05/22/e-tudo-novo-de-novo-as-narrativas-sobre-grandes-mudancas-no-mundo-do-trabalho-como-ferramenta-do-capital-resenha/&gt;>.

1 Justiça do Trabalho. Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: <https://www.tst.jus.br/web/guest/-/3%C2%AA-turma-reconhece-v%C3%ADnculo-de-emprego-entre-motorista-e-uber&gt;. Acesso em: 11 abr. 2022.

2 https://www.metro1.com.br/noticias/turismo/121759,em-decisao-inedita-justica-determina-que-baiano-receba-salario-do-ifood-ate-sair-auxilio-acidente

3 Os argumentos do presente texto são desenvolvidos no livro “É tudo novo, de novo”, da Editora Boitempo. https://www.youtube.com/watch?v=4hIzyfAmYhs

4 Relatório Caminhos do Trabalho

5 https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/?utm_source=twitter&utm_medium=post&utm_campaign=ifood

Texto publicado originalmente em <https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/aplicativos-por-que-mudar-o-rumo-da-prosa/>, 15.04.2022, reproduzido com autorização pessoal do autor.

BARATAS, MAÇÃS E LIQUIDAÇÕES: O COMPROMISSO DO DIREITO COM A PALAVRA

Oscar Krost

Para alcançarmos a compreensão sobre algo é essencial o desapego a “pré-conceitos”, ou seja, a juízos de valor prontos e acabados, via de regra assimilados sem reflexão. Atualmente, por mais paradoxal que possa parecer, dado o ritmo exponencial com que os avanços científicos e tecnológicos se apresentam a cada dia, o elementar precisa ser dito, repetido e afirmado até sua assimilação como algo natural.

Em “A metamorfose”, célebre obra de Franz Kafka, não há menção no texto à barata ou a outro animal específico. O protagonista desperta ao amanhecer, se enxergando como um “monstruoso inseto“.

A descrição, mesmo detalhada, não permite definir a espécie em que a personagem teria sido transmutada, apenas referido que “de costas ficou e ele as sentia como couraça” e enxergando “que o seu ventre estava grande, curvo, castanho e dividido por profundos sulcos”.1 No lugar de duas pernas, inúmeras, “lamentavelmente finas e agitavam-se sem que pudesse contê-las”.2

Assim que os demais membros da família se deparam com a nova realidade, são acometidos de profunda ojeriza. A menção sobre inseto, repulsa e mudança física pode ter levado tradutores e leitores à interpretação de estarem diante do ser que maior asco costuma produzir nas pessoas.

Como sabiamente lembra o Ministro Eros Grau, “jamais descrevemos a realidade; o que descrevemos é o nosso modo de ver a realidade”, a qual “determina nosso pensamento (…)”, a partir de nossa compreensão prévia dela e do lugar que ocupamos ao descrevê-la.3 Não à toa, existem autoras e autores que afirmam escreverem apenas metade dos próprios textos, cabendo a quem os lê a conclusão, em uma espécie de coautoria.

E assim consagramos a cultura de “acompanhar o voto do Relator”, no caso, ter por nossas tanto as “leituras”, quanto as “conclusões” dos outros, ainda que não examinemos com nossos próprios olhos e lentes os “autos”. Importante destacar a impressão de que a “interpretação-guia“ está menos pautada em elementos concretos, objetivos e plausíveis, do que na subjetividade de quem a apresenta.

A título de exemplo, a “barata” como monstruoso inseto, em “A metamorfose”, e a “maçã” enquanto fruto proibido, na “Bíblia Sagrada”.4 No meio jurídico, mais especificamente na seara trabalhista, lembremos a “liquidação de pedidos” no lugar de indicação de seu valor, conforme a CLT, art. 840, §1o, com a redação dada pela Reforma Trabalhista (Lei no 13.467/17).5

Mas, atenção: as palavras nunca são neutras, desafiando intérpretes e tradutoras/tradutores para muito além da semântica.6

O Direito como produto do intelecto humano é pródigo em máximas desprovidas de mínima importância, data venia, mas cuja repetição as consagra em brocados. Uma espécie de “coisa julgada” sobre superficialidades do senso comum jurídico.

Que bacharela ou bacharel nunca ouviu ser o método literal-gramatical de interpretação “pobre”, “superficial” ou “insuficiente”? Ninguém em sã consciência se arriscaria a contestar em público tão notória, quanto ilibada “sentença”.

Mutatis mutandis, a questão a ser repensada não está em adotar o critério em questão no processo de compreensão de regras. Este sempre será ponto de partida em um sistema jurídico-normativo escrito. O problema é considerá-lo o único necessário ou, ainda, o ponto de chegada em termos de cognição.

O mesmo serve para as “críticas clichês” sobre o positivismo jurídico, sem qualquer pretensão de sermos mais kelsenianos que Kelsen. Se vivo estivesse, o filósofo de Viena aprofundaria e reformularia muitas ideias que o consagraram, por ter sido mal compreendido, distorcido e desvirtuado.

Direito nunca foi sinônimo perfeito de lei, embora esta seja a principal fonte jurídica, ao menos em sistemas da família romano-germânica. Sem o Princípio da Legalidade, base do positivismo, não haveria Constituições formais, tampouco a consagração de institutos como o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, ao menos não com os contornos precisos que conhecemos.

Positivismo jurídico, portanto, não é raso, tampouco insuficiente. É conquista histórica importante em dado momento, cujo aperfeiçoamento depende de estudo e esforço, para muito além da “crítica pela crítica”.

A palavra é poder para o Direito, seja lida, presumida ou negada. Escolher entre diversos sentidos é algo inevitável, revestindo-se de verdadeiro compromisso assumido por Operadoras e Operadores do Direito. Mas não sejamos inocentes: é preciso percorrer distâncias e beber das fontes para formar o próprio entendimento, seja ele qual for.

Sem tal desprendimento, além de baratas, maçãs e liquidações, corremos sérios riscos de acabar nos tornando a versão jurídica do “analfabeto político” descrito por Brecht.7

1KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro S.A., 1971, p. 25.

2Ob. cit. p. 25.

3 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. XII

4O relato original, contudo, não menciona nome algum. Diz que era o ‘fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal’. A ideia de considerar esse fruto uma maçã veio aos poucos, muito provavelmente por obra dos antigos tradutores da Bíblia. Ao versarem o texto do grego antigo para o latim, eles utilizaram a palavra “pomum”. Que acabaria sendo maçã, nas línguas modernas – mas poderia ser qualquer fruto com formato semelhante, como figo ou pera.

(…)

No livro apócrifo de Enoque, a árvore do Éden é descrita como ‘uma espécie de tamarineira, produzindo frutos que se assemelhavam a uvas’. O antigo texto diz que a ‘fragrância’ podia ser sentida a uma distância considerável.” (VEIGA, Edison. Por que a maçã não pode ter sido o ‘fruto proibido de Adão e Eva’, segundo a ciência. BBC News Brasil. 28 de maio de 2019, disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-48424612#:~:text=No%20relato%20b%C3%ADblico%20da%20cria%C3%A7%C3%A3o,se%20configurou%20no%20imagin%C3%A1rio%20humano.> Acesso em: 24 jul. 2022).

5 “A inovação trazida na Lei n. 13.467/17 fica por conta da exigência de que o pedido deva ‘ser certo, determinado e com indicação de seu valor’.

Isso, no entanto, não representa uma alteração substancial, pois a precisão e a determinação do pedido dizem respeito à sua própria essência e a indicação do valor, como está expresso no dispositivo legal referido, não passa de uma indicação, ou seja, não se trata de uma liquidação, vez que essa só decorre da condenação.O texto legal faz referência expressa a ‘indicação do seu valor’ (do pedido), o que deve ser tomado, literalmente, como uma indicação e não como uma certeza, a qual só se obterá com os limites fixados no julgamento e após a necessária liquidação.” (SOUTO MAIOR, Jorge. Petição inicial trabalhista: desnecessidade de liquidação dos pedidos. 15 de abril de 2018, disponível em <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/peticao-inicial-trabalhista-desnecessidade-de-liquidacao-dos-pedidos&gt;. Acesso em: 24 jul. 2022).

6 Para Foucault, “se todos os nomes fosse exatos, se a análise em que repousam fosse perfeitamente refletida, se a língua fosse ‘benfeita’, não haveria nenhuma dificuldade para pronunciar juízos verdadeiros, e o erro, no caso em que ocorresse, seria tão fácil de desvendar e tão evidente quanto num cálculo algébrico. (…) não se pode pensar uma palavra – por mais abstrata, geral e vazia que seja – sem afirmar a possibilidade daquilo que ela representa.” (FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. 10a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 165, Coleção Tópicos).

7 Inteiro teor do poema disponível em <https://www.pensador.com/frase/MjMzMDA5/>. Acesso em: 24 jul. 2022.

A Divina Comédia teletrabalhista”

Oscar Krost

Dante, perdido numa selva escura. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.”1

Assim inicia A Divina Comédia, poema épico e teológico escrito em dialeto florentino em meio ao Renascimento pelo italiano Dante Alighieri, nos primeiros anos do século XIV. A obra é composta por 3 partes (inferno, purgatório e paraíso) e narra uma viagem às profundezas do inferno, passando por cada um de seus níveis.

Sintetiza a cosmovisão medieval, pela qual o universo seria dividido em círculos concêntricos, definidos a partir dos respectivos ocupantes e das penas cabíveis a cada pecado. O inferno seria composto por 9 círculos, 3 vales, 10 fossos e 4 esferas.2 Tal atmosfera deu origem ao neologismo “dantesco”, adjetivando algo “de um horror grandioso; pavoroso, diabólico, medonho“.3

A Divina Comédia pode ser lida, ainda, como uma sequência de exemplos sobre causa e efeito, contra a qual nada podem os seres humanos. Consagra a polarização entre merecedores da dor eterna e da redenção, conforme escolhas individuais realizadas em vida na terra.

Eis que em meio a tantas alegorias, nosso estimado Dante, cansado de repetir o mesmo roteiro há 700 anos, decide conhecer o Brasil e as novidades do novo milênio. Em meio à pandemia de Covid-19, nada lhe chama mais a atenção do que o “teletrabalho”.

Como primeiro ato de sua incursão, vai à fonte do fenômeno, causando surpresa não ser a Bíblia Sagrada, mas a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Depara-se com apenas 8 brevíssimos círculos, chamados artigos, e que o fazem, estranhamente, se sentir em casa. São eles:

* Art. 6º, o paraíso pela igualdade em plenitude,

* Art. 62, a profundeza do inferno pela discriminação escancarada e

* Arts. 75-A a F, os níveis intermediarios entre os extremos.

Lendo-os como uma adaptação de A Divina Comedia, impossível não questionar os porquês das coisas, buscar a razão de serem/deverem ser assim e perceber como uma releitura ressignificante pode levar a menos dor e a mais sentido.

O art. 6º consagra algo elementar: não importa onde se trabalha, se a estrutura da relação jurídica é subordinada, pessoal, por conta alheia e a título oneroso. Usar ou não tecnologia não altera a essência das coisas, sendo mera ferramenta. Sabia-se disso há mais de 10 anos, quando a Lei nº 10.551/11 modificou a redação do dispositivo e sabe-se em 2022.
Aliás, tem-se esta noção desde 1824, quando a Constituição do Império expressamente vedava práticas de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos.4

Mas o que são 200 anos de história diante da ação do Legislador reformista que, ao produzir a Lei nº 13.467/17 (Reforma trabalhista), entendeu não ser “teletrabalho” sinônimo de trabalho, condenando aquela e aquele que o executa a penar alijado de parte de seus direitos?

Banimento este positivado na regra do art. 62 da CLT, pelo acréscimo do inciso III, pelo qual fica afastada a aplicação do capítulo da CLT atinente à jornada a “teletrabalhadores”. Do céu ao inferno em um piscar de olhos.

Inconstitucional, discriminatório e injustificável.

Em primeiro lugar, não de hoje sustento inexistir “teletrabalho”5 como categoria ontologicamente autônoma. O que existe e sempre existiu é trabalho, passível de ser realizado dentro ou fora das dependências do empregador.

O que pode ser “tele” não é o trabalho em si, mas seu resultado, transmitido por via telemática. No entanto, esta possibilidade não altera o fazer, nada impedindo que a remessa ocorra por meio físico (CD, DVD ou pendrive, por exemplo).

Considerar que o uso de uma ferramenta seja capaz de modificar o ofício em que se insere consagra uma inversão da milenar dinâmica jurídica entre acessório e principal. A pessoa que trabalha pode laborar dentro das instalações daquele para o qual atua e usar meios telemáticos para destinar o fruto do labor para outro setor ou filial, não caracterizando algo novo, “teletrabalho”. Mas se atravessar a rua e realizar a mesma operação fora do ambiente patronal, pela lei, a magia acontece.

Tem-se neste recorte artificial e insubsistente o primeiro aspecto dantesco sobre o “teletrabalho”: a diferenciação entre iguais sob pretexto de existir substancial diferença. Consagra-se uma discriminação negativa incompatível com o Princípio Isonômico do 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII, da Constituição, juntamente com o estabelecido nos arts. 6º, 83, 358 e 461 da CLT.

Avançando sua incursão pelo “teletrabalho”, Dante se depara com algo que o lembra o aviso do cântico III:Chegam os poetas à porta do Inferno, nas quais estão escritas terríveis palavras”.6 No caso, os dizeres trazem: “CAPITULO II-A: Do teletrabalho”.

O anúncio evidencia ter ficado para trás o “CAPÍTULO II: Da duração da jornada”, como pena imposta a quem, de modo pecaminoso, “teletrabalhar”. O desdobramento do numeral, transparece a opção do Legislador por diferenciar os destinatários do título daqueles aos quais aplicável o capítulo original e anterior. São trabalhadores, enfim, não havendo como deixar de reconhecer, mas não para todos os efeitos, dentre os quais a limitação horária, uma das conquistas sociais mais importantes no século XX.7

Apegado ao valores da Renascença como a igualdade, Dante se questiona o que poderia ser pior do que tratar desigualmente os iguais, como trabalhadores e “teletrabalhadores”. Sem muito refletir, conclui: dispensar tratamento igual aos desiguais. Logo conclui a frase e lhe vem à mente a ideia de que, na hipótese de executado trabalho remoto, este pode ser síncrono (serviços de suporte e atendimento ao cliente) ou assíncrono (peticionamento em processos judiciais), controláveis pelo empregador em maior ou menor medida, inexistindo justificativa plausível para tratar a ambos como se livres fossem. Ocorre o nivelamento por baixo, pela supressão de direitos, como se a regra fosse não haver horário específico para o trabalho.

O primeiro artigo do capítulo paralelo (art. 75-A da CLT) dispõe que “a prestação de serviços pelo empregado em regime de teletrabalho observará o disposto neste Capítulo.” Uma interpretação literal do texto sugere que toda a relação envolvendo o “teletrabalho” se encontra regida pelas disposições do capítulo desdobrado, afastando outras regras, inclusive da própria CLT.

O critério literal ou gramatical de interpretação é essencial ao Direito, não podendo ser menosprezado ou superestimado, ou seja, exige o reconhecimento de seus limites, como ponto de partida do processo hermenêutico, jamais de chegada. Desta forma, não há como entender que o trabalho prestado de modo remoto e com emprego de meios telemáticos prescindam de uma leitura em conformidade e harmonizada com a Constituição,8 os Princípios do Direito do Trabalho,9 ao Direito Comparado10 e às diretrizes da OIT.11

E como em termos infernais/dantescos nada é tão ruim que não possa piorar, temos no dispositivo seguinte o conceito de “teletrabalho” como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com uso de tecnologia, sem constituir-se atividade externa. Não explicita qual o critério para aferir a preponderância da atuação fora da empresa, perdendo a oportunidade de simplificar, adotando o conceito do artigo 165º do Código de Trabalho de Portugal, da habitualidade,12 ou mesmo a ideia consagrada na Resolução nº 151/15 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, que prevê apenas a atuação do servidor fora das dependências do Tribunal e com uso de tecnologia, podendo configurar regime de trabalho remoto integral ou parcial. 13

Impossível não lembrar da abertura do canto XII de A Divina Comédia, em uma espécie de versão telemática e punitiva de quem merece proteção: “O minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticam violências contra a vida ou as coisas dos próximos”.14

Eis que o Poder Executivo publica a Medida Provisória nº 1.108, em 25 de março de 2022, 15 e promove, respeitados entendimentos em contrário, substanciais mudanças de redação do texto da CLT sobre “teletrabalho” sem qualquer indício de relevância ou urgência, na forma exigida pelo art. 62 da Constituição. A medida de exceção foi prorrogada por 60 dias e até a data de conclusão deste texto, em 11 de julho, não há notícia sobre sua conversão em lei, lembrando que mesmo em um cenário infernal, há o purgatório nem sempre temporário.

Pela regra precária foi agregada ao caput do art. 75-B a expressão “ou não” depois de preponderante, esvaziando a ideia inicial sobre o critério essencial da modalidade. Contudo, tampouco indicou o elemento fático ou normativo a ser empregado em substituição, dificultando ainda mais a consecução da almejada segurança jurídica.

Além da mudança em questão, foram acrescidos 9 parágrafos ao dispositivo, ampliando o número de ciclos infernais e aproximando, ainda mais, a realidade da ficção. Nosso visitante do além-mar e da Renascença tem ainda mais motivos para ficar surpreso e à vontade, sentindo-se quase em casa.

Pelo §1º, “o comparecimento, ainda que de modo habitual, às dependências do empregador para a realização de atividades específicas, que exijam a presença do empregado no estabelecimento, não descaracteriza o regime de teletrabalho ou trabalho remoto“. E nem poderia, pois o caput do artigo define os elementos essenciais do “teletrabalho”, não havendo motivo, ainda mais considerando o trecho “preponderantemente ou não” também inserido.

O §2º determina que “o empregado submetido ao regime de teletrabalho ou trabalho remoto poderá prestar serviços por jornada ou por produção ou tarefa“. Ao tratar do critério de apuração do salário, a regra confirmou aquilo que quase todos sabem: ser possível mensurar e controlar a jornada de quem presta serviços à distância em contradição com o art. 62, inciso III.

O §3º estabelece que “na hipótese da prestação de serviços em regime de teletrabalho ou trabalho remoto por produção ou tarefa, não se aplicará o disposto no Capítulo II do Título II desta Consolidação“. Em que medida o critério de apuro de salário guarda relação com limite e controle de jornada é mistério indecifrável, não por ignorância ou má-vontade, mas por absoluto nexo de causalidade.

O que torna dada atividade passível de controle são as condições fáticas em que prestadas, não a forma de apurar a remuneração. Questão de caráter lógico, atraindo a aplicação do Princípio da Primazia da Realidade.

Embora reducionista, a questão apresenta caráter binário: atividade é controlável ou não é. Sendo e não havendo controle, cabe a quem assume os riscos da atividade arcar com as consequências de suas escolhas; não sendo, a prova cabe a quem alegar eventual prorrogação.

Em qualquer hipótese, não existe atividade realizada sob a égide do Direito do Trabalho no Brasil sem limites diários, semanais ou anuais. A interpretação do art. 62 a CLT, de receptividade duvidosa pela atual Constituição,16 deve ser feita a partir dos valores e disposições da própria Constituição, especialmente a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e o direito à jornada/carga-horária (arts. 1º, inciso III, e 7º, inciso XIII).

Além disso, outras fontes devem inspirar a leitura das normas, com destaque aos Princípios do Direito do Trabalho, as orientações da OIT e diplomas do Direito Comparado.
Na pior das hipóteses, pode-se aventar, com a devida cautela, estar-se diante de regra sobre inversão da distribuição do ônus probatório.

Pelo §4º foi exposto que “o regime de teletrabalho ou trabalho remoto não se confunde e nem se equipara à ocupação de operador de telemarketing ou de teleatendimento“. Dantesca a observação, pois o que fará com que qualquer atividade, partindo do próprio texto elaborado pelo Legislador, seja “teletrabalho” é o atendimento ao disposto no art. 75-B da CLT, não a nomenclatura adotada. Pode haver operadores de telemarketing em “teletrabalho”, assim como em regime presencial.

A Medida Provisória parece imbuída do receio de os intérpretes do Direito, fazendo valer o Princípio do Não Retrocesso Social positivado no art. 7º, caput, da Constituição, bem como pelo Princípio Protetivo, defendam a extensão dos direitos dos operadores a quem não o seja, mas esteja submetido a condições semelhantes. De qualquer forma, “confundir” e “equiparar” são ações diversas, cujas possibilidades devem ser examinadas topicamente, caso a caso.

O §5º dispõe que “o tempo de uso de equipamentos tecnológicos e de infraestrutura necessária, e de softwares, de ferramentas digitais ou de aplicações de internet utilizados para o teletrabalho, fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou em acordo ou convenção coletiva de trabalho“. Houvesse possibilidade de retorno imediato e Dante abortaria a incursão pelo “teletrabalho” brasileiro.

O que constitui tempo à disposição, alheio ou não à jornada, é o estado à disposição. Mais uma vez, a primazia da realidade x a vontade do Poder Executivo em embate por condicionar o direito à “autonomia da vontade individual”.

Fosse assim e poderíamos imaginar a seguinte regra para por fim ao conflito entre capital e trabalho: “As disposições da presente Consolidação (CLT), assim como as constantes da Constituição da República Federativa do Brasil, disposições internacionais ou quais fontes, inclusive hábitos e costumes, aplicam-se aos contratos individuais de trabalho, salvo acordo individual ou coletivo dispondo em contrário“. Em um passe de mágica, o céu de uns e o inferno de outros.

Pelo §6º ficou autorizada a adoção do regime de “teletrabalho” ou trabalho remoto para estagiários e aprendizes, o que deve ser analisado com todo cuidado. Não há como deixar os futuros profissionais fora do alcance das novas e atuais realidades do mundo do trabalho. Porém, essa transposição deve se dar com cautela, a fim de não acarretar mais prejuízos do que ganhos, tanto ao processo de ensino prático, quanto ao ambiente profissional em que se desenvolve.

Para melhor adequar meios e fins, poderia o Poder Executivo estabelecer, por exemplo, critérios específicos sobre o modo de interação do estagiário e aprendiz, adotando preferencialmente um sistema híbrido (parte remoto, parte presencial), na forma prevista em âmbito interno no Poder Judiciário, pela Resolução nº 151/15, assim como no Direito Comparado, na Lei nº 10/2021, da Espanha, que em seu art. 3º, prescreve que os contratos envolvendo menores de idade e “práticos” devem ter, no mínimo, 50% do tempo presencial.17

Quase ao fim do círculo dos parágrafos sem fim, o §7º assegurou a aplicação aos empregados em “teletrabalho” das “disposições previstas na legislação local e nas convenções e acordos coletivos de trabalho relativas à base territorial do estabelecimento de lotação do empregado.”Adotou o Princípio da territorialidade, medida importante, pelo completo vazio legal até então existente no capítulo II-A sobre “teletrabalho”, gerando celeumas sobre relações de emprego iniciadas de modo telepresencial.

Contudo, como tudo o diz respeito à Divina Comédia, é preciso desconfiar. A territorialidade estabelecida é relativa e, portanto, passível de ser alterada em situações concretas quando forem de encontro aos Princípios Protetivo e da Primazia da Realidade, em manobra para afastar a aplicação da regra mais favorável ou, ainda, se prestar a uso que comprometa a melhoria das condições sociais das pessoas trabalhadoras, visando baratear, SIC, o “custo da mão de obra”. Além disso, faz-se essencial recordar a importância das negociações coletivas e da representação sindical em dados espaço e tempo.

As observações feitas acima, aplicam-se, por razões óbvias, à previsão do §8º , no sentido de que o “contrato de trabalho do empregado admitido no Brasil que optar pela realização de teletrabalho fora do território nacional, aplica-se a legislação brasileira, excetuadas as disposições constantes na Lei nº 7.064, de 6 de dezembro 1982, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes.

Novamente a questão territorial se apresentando e demandando cautela dos Operadores do Direito e do Poder Público. Recorde-se, no aspecto, o conteúdo da Súmula nº 207 do TST, cancelada pela resolução nº 181/12, verbete que por muito tempo estabeleceu a adoção do Princípio da Lex Loci Executionis em contratos de trabalho chamados “internacionais”. 17 Tal qual afirmado em relação ao parágrafo anterior trazido pela Medida Provisória, tem-se nesta previsão uma presunção juris tantum e um ponto de partida, podendo ser afastada na análises de casos concretos quando artificial ou utilizada em fraude da finalidade protetiva das regras trabalhistas.

O §9º garantiu a possibilidade de se estabelecer por ajuste individual horários e meios de comunicação entre empregado e empregador, desde que assegurados os repousos legais. Sabemos que a lei não contém palavras inúteis ou desnecessárias, mas o mesmo não se pode dizer quanto a ser livre de prolixidades.

Havendo os arts. 444 e 468 da CLT tratamento sobre os limites da autonomia da vontade das partes e sendo o repouso semanal remunerado Direito Fundamental assegurado no art. 7º, inciso XV, da Constituição, que acréscimo este parágrafo traz ao ordenamento jurídico?

Apenas um: confirmar que o título II-A sobre teletrabalho é um microssistema consideravelmente autônomo dentro da CLT e que dispensa o diálogo com demais disposições da Consolidação e do Direito do Trabalho. Além disto, a fixação de horário é elemento essencial do contrato de trabalho ao prever a limitação do tempo de atividade ou à disposição, repercutindo nos descansos inter e entrejornadas.

O discurso sobre as supostas liberdade e flexibilidade na execução dos serviços à distância não pode se sobrepor aos Direitos Fundamentais Sociais. Quando tudo é possível, nada é garantido.

Exaurido pela incursão, mas imbuído e empenhado, Dante segue sua tele-epopeia deparando-se com o dever de constarem a “modalidade” teletrabalho no contrato individual de trabalho, juntamente com a especificação das atividades (redação original do art. 75-C da CLT) ou trabalho remoto (expressão trazida pela Medida Provisória nº 1.108/22).

Labaredas, chamas e calor. Muito calor.

Se o capítulo II-A se intitula “Do teletrabalho”, por óbvio, as regras nele contidas regerão esta figura jurídica ficcional e artificial. Se “trabalho remoto” for sinônimo de “teletrabalho”, por que inclui um segundo termo na lei? E se não for, estaria no locus normativo adequado, sem sequer explicar o que possuem de diferença?

Como referido em outra oportunidade,19 há relativo consenso na doutrina sobre as semelhanças e distinções entre teletrabalho, home office e trabalho em domicílio. Quanto ao lugar, o teletrabalho pode ocorrer em qualquer espeço fora das dependências do empregador, enquanto que os demais, necessariamente se desenvolvem na residência do empregado. No tocante às ferramentas, teletrabalho e home office exigem o uso de tecnologia de comunicação, o que não e essencial no trabalho em domicílio. A natureza do serviço no teletrabalho e no home office é intelectual, o mesmo não podendo se dizer no trabalho em domicílio. Por fim, o resultado do trabalho deve ser transmitido on line no teletrabalho, podendo ou não sê-lo nas outras duas modalidades, situações em que pode deslocar fisicamente, ainda que armazenado em um DVD, pendrive ou HD externo.

Como seria de se esperar na dinâmica de uma relação de trato sucessivo e suscetível às variações produtivas e tecnológicas, o Legislador Reformista previu a possibilidade das partes promoverem a alteração do local em que prestado o trabalho, de fora para dentro da empresa ou em sentido contrário (art. 75-C). Por ta disposição confirmou não haver diferença material entre o “fazer” e o “telefazer”.

Para tanto, exigiu mútuo acordo entre as partes e o registro da mudança em aditivo contratual no §1º, incorrendo em uma impropriedade gramatical, na medida em que se há acordo há convergência de intenções entre ambas as partes contratantes. Parece mais adequada a expressão “mútuo consentimento” utilizada no art. 468 da CLT.

A imposição de aditivo traduz a obrigatoriedade ao empregador de produzir prova formal. De qualquer modo, as modificações contratuais no teletrabalho e em qualquer relação de emprego, por uma questão de coerência, não podem causar prejuízo ao empregado, sob pena de nulidade, pela incidência do disposto no art. 9o e 444, ambos da CLT, bem como pelo Princípio da Proteção.

Já o §2o tratou da alteração do sistema de teletrabalho para presencial por determinação do empregador. Prevê um prazo de transição mínimo de 15 dias, devendo também ser documentado em aditivo.

Com efeito, não pode o jus variandi patronal, como projeção da assunção dos riscos do negócio e do poder diretivo, de modo unilateral, impor modificação gravosa ao empregado sem sua concordância. Primeiro, pela quebra da lógica instituída no parágrafo anterior, tornando a modificação do regime presencial e de teletrabalho uma via de mão dupla apenas ao patrão. Segundo, por deixar de considerar a ausência de prejuízo ao trabalhador como requisito essencial, tal qual previsto no art. 468 da CLT.

No Direito do Trabalho brasileiro, o teletrabalho se apresenta como mais uma possibilidade ao empregador estruturar e reestruturar seu negócio, conforme necessidade e pertinência, trazendo perdas ao patrimônio jurídico do sujeito subordinado. Em sentido diametralmente contrário, exemplos do Direito Comparado, como Portugal, Argentina, Espanha e Uruguai, dão conta de se tratar o teletrabalho de um direito sem perdas aos trabalhadores, estando com estes o poder de escolha.20

A cada país cabe decidir como disciplinar as relações de trabalho. Não se questiona a autonomia e soberania. Mas, igualmente, fica evidente que o tratamento dispensado aos arranjos produtivos, independente de discursos, sempre podem ser mais ou menos protetivas, assim como mais ou menos lucrativas, não sendo inevitáveis como muitos defendem.

Ainda que se dirigindo à parte final da aventura, nosso viajante não para de se surpreender com os percalços, se questionando de modo retórico: se provisória a medida, por que alterar algo que exige enfrentamento definitivo? Não querendo fazê-lo se arrepender ainda mais da viagem, prosseguimos, destacando uma sutil inserção no texto da CLT pela Medida Provisória nº 1.108/22, o §3º do art. 75-C, pelo qual “o empregador não será responsável pelas despesas resultantes do retorno ao trabalho presencial, na hipótese do empregado optar pela realização do teletrabalho ou trabalho remoto fora da localidade prevista no contrato, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes.

Seguimos sem saber o que o Poder “Executivo-Legislador” entende por trabalho remoto e o que o levou a trazê-lo, sem maiores cuidados para o microssistema de teletrabalho. No entanto, a isenção de responsabilidade patronal frente ao dever de fazer frente a despesas impostas ao empregado na hipótese de permanecer em teletrabalho não pode prevalecer por alguns fundamentos.

Primeiro, por caber ao empreendedor da atividade assumir todos os riscos do negócio, dentre os quais despesas (CLT, art. 2º). Segundo, pelo interesse do trabalho à distância nunca ser apenas de uma das partes como faz crer o dispositivo, de modo que ônus devem atentar a isto. Terceiro, por atribuir ao trabalhador despesa decorrente da prestação de serviços representa redução salarial, prática constitucionalmente vedada (art. 7º, inciso VI).

A repetição sem trégua de aparentes impropriedades nas regras trazem mais uma passagem de A Divina Comédia, mais especificamente o canto XX, no qual é descrito o quarto compartimento e a punição de os “impostores que se dedicam à arte divinatória. Eles tem o rosto e o pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso”. 21 Legislar é atividade presente, a partir de experiências passadas, projetando um futuro. O ser de ontem e de hoje como experiência para realizar o de amanhã. Ao menos, em tese, assim deveria ser.

Na mesma linha, inviável esperar que as partes, livre e individualmente, disciplinem questões sobre a responsabilidade de aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos/infraestrutura necessários ao teletrabalho em contrato (art. 75-D). Desnecessário ser Dante ou estar nas profundezas da terra para saber que na relação de emprego quem empreende assume dos riscos e, como tal, os custos e despesas, devendo o dispositivo da CLT ser lido “como” o empregador vai fazer frente às despesas, não “se” ou “quando”.

Outra questão relevante, mas que sem o devido cuidado pode representar cláusula diabólica, está no uso do verbo reembolsar. Não cabe ao empregado despender recursos para trabalhar, sob pena de estar financiando a atividade patronal da qual não aufere os lucros, tampouco se avente de utilizar seu parco crédito, quando o possuir, para tal fim.

Não basta o trabalhador esperar 35 dias ou mais para receber salários pelos serviços prestados (CLT, art. 459), agora, teria que “telefinanciar” a estrutura do labor, correndo os riscos da mora empresária, em prejuízo ao próprio sustento e de sua família. Deve o patrão, sem ressalvas, antecipar valores para custear as condições de teletrabalho ou comunicar o trabalhador onde retirar o equipamento/serviço tecnológico ou celebrar negócios de fornecimento de internet por sua exclusiva responsabilidade. A natureza não salarial dos equipamentos, utensílios e bens necessários, nesta e em qualquer hipótese, mesmo presencial, é evidente, tornando desnecessária menção na regra (parágrafo único).

Antevendo a saída do último círculo infernal teletrabalhista, quase um novo pórtico, uma singela disposição trazida pela Reforma de 2017 (art. 75-E) sobre saúde e ergonomia, pela qual o empregador deve instruir os empregados em regime remoto sobre precauções a doenças e acidentes, impondo a observância de parte destes.

Não é possível aplicar o Direito sem atentar a seu caráter sistêmico, tornando quase herético, como diria Dante, pretender a limitação do dever empresário, em matéria de saúde de quem ele emprega, a meramente informar. Deve, na realidade, oportunizar todos os meios preventivos, inclusive formação, treinamento e atualização, bem como fiscalizar a aplicação prática de tais saberes. A própria CLT (art. 157, incisos I, II e IV), expressamente impõe aos patrões, para além de instruir, cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente e facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente. Com isso, informar é apenas uma das vias possíveis a promover a redução dos riscos de adoecimento e de acidentes.

De acordo com Rodrigo Carelli “esses dispositivos não isentam a reparação de danos aos trabalhadores relacionados ao trabalho, pois não há qualquer imunidade trazida pela reforma, meras obrigações recíprocas, inclusive ambas sem qualquer efetividade”.22 Do Direito Comparado vem novamente o exemplo, do Código do Trabalho Português, ao reconhecer o direito à igualdade de tratamento do trabalhador presencial de quem labora à distância, inclusive em matéria de segurança e saúde do trabalho (art. 169O, 1),23 o mesmo ocorrendo na Lei do Contrato de Trabalho Argentina (art. 11 da Lei no 27.555/20),24 e na Lei nº 19.978/21 do Uruguai (art. 11).25

A assinatura do empregado em termo de responsabilidade, comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador, quanto a medidas preventivas, na forma do caput, é mera formalidade. Afinal, qual trabalhadora ou trabalhador, na relação de emprego deixa de assumir o dever de cumprir todos os comandos empresários?

Finalizando a incursão pela legislação do “teletrabalho” no Brasil de 2022, ainda tentando entender a lógica das Medidas Provisórias, Dante se depara com a prioridade conferida ao teletrabalho dos ”empregados com deficiência e aos empregados e empregadas com filhos ou criança sob guarda judicial até quatro anos de idade na alocação em vagas para atividades que possam ser efetuadas por meio do teletrabalho ou trabalho remoto.” A medida traduz uma suposta ação afirmativa (discriminação positiva), lembrando a experiência do Direito do Trabalho Portugal, Argentina, Espanha e Uruguai.

Seria louvável e digna de elogios, se não partisse a Iniciativa louvável do Executivo-Legislador de uma discriminação negativa do trabalho remoto, mencionada nas primeiras linhas deste texto. Dar oportunidade a quem normalmente não as tem seria o ideal se não partisse de uma oportunidade condicionada ao rebaixamento de proteção e direitos. Nada que o devido processo legislativo não possa corrigir, acaso venha a ocorrer, seja em relação à Medida no 1.108/22 ou a outras iniciativas já em tramitação no Parlamento.

Viagem concluída, nem o viajante, nem aquelas e aqueles que o acompanharam ate aqui, sabe-se lá a que custo, saem iguais a como iniciaram a jornada. Tudo dentro do esperado. A questão agora é saber o que fazer daqui para frente: agir em prol de mudanças concretas ou “Assim falando, a passo igual seguia”.26

Notas de rodapé

1. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução José Pedro Xavier Pinheiro. São Paulo: Atena Editora, 1955, p. 17, disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2022.

2. Fonte <https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Divina_Com%C3%A9dia>. Acesso em: 10 jul. 2022.

3. Fonte <https://www.google.com/amp/s/www.dicio.com.br/dantesco/amp/>. Acesso em: 10 jul. 2022.

4. Sobre o tema, ver KROST, Oscar. Proibição de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, Reforma Trabalhista e ‘teletrabalho’: diferenciando iguais para reduzir direitos”. In: ARAUJO, Adriane Reis de; D´AMBROSO, Marcelo José Ferlin. (Coordenadores). Democracia e Neoliberalismo: o legado da Constituição de 1988 em tempos de crise. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 331-360.

5. A este respeito, ALMEIDA, Almiro Eduardo de; KROST, Oscar. Teletrabalho: trabalho à distância e o distanciamento do Direito do Trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Florianópolis, no 30, 2018, p. 29-48, também disponível em <http://www.trt12.jus.br/portal/areas/revista/extranet/revistatrt12/Revista%20TRT%202018%20pageflip/index.html#page/1>. Acesso em: 10 jul. 2022. Ver, ainda, KROST, Oscar. Teletrabalho: a verdade que esqueceu de acontecer. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/03/21/teletrabalho-a-verdade-que-esqueceu-de-acontecer/#:~:text=%E2%80%9CTELETRABALHO%E2%80%9D%3A%20A%20VERDADE%20QUE%20ESQUECEU%20DE%20ACONTECER*,-Publicado%20porokrost&text=A%20pandemia%20de%20Covid%2D19,o%20que%20est%C3%A1%20por%20vir&gt;. Acesso em: 10 jul. 2022.

6. Ob. cit., p. 30.

7. Rosângela Gil e Vito Gianotti. 1º de Maio: dois séculos de lutas operárias. Rio de Janeiro: Núcleos Piratininga de Comunicação/Cadernos de Formação, 2005 e SOUTO MAIOR, Nívea. A despadronização da jornada de trabalho: expressões da reforma trabalhista brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.

8. A exemplo do art. 7º, caput e incisos XXX, XXXI e XXXII. Constituição brasileira disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 jul. 2022.

9. Especialmente o Protetivo por sua projeção da aplicação da regra mais favorável e da não-discriminação.

10. Destaquem-se, neste aspecto, as recentes normas trabalhistas em Portugal, Argentina e Espanha, examinadas em: KROST, Oscar. Painel on-line Teletrabalho: uma experiência do Direito Comparado entre Brasil e Portugal, apresentado no Seminário Virtual Internacional: Projetos e Impactos tecnológicos sobre o Direito do Trabalho, mesa sobre teletrabalho, promovido pela Escola da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, no dia 10 de novembro de 2020, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=8gerSV5RctQ&gt;, desde novembro/2020, KROST, Oscar. Teletrabalho na Argentina e no Brasil: tão perto, mas tão longe, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/08/28/teletrabalho-na-argentina-e-no-brasil-tao-perto-mas-tao-longe/>, desde agosto/2020, e KROST, Oscar; TRINDADE, Rodrigo. Teletrabalho na Espanha: redescobrindo a América, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/07/27/teletrabalho-na-espanha-redescobrindo-a-america/>. Acesso em: 10 jul. 2022.

11. Convenção nº 177 da OIT não ratificada pelo Brasil, disponível na íntegra em Organização Internacional do Trabalho (OIT), <https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:312322>. Acesso em: 10 jul. 2022.

12. PORTUGAL. Lei no 7/2009 – Código do Trabalho de Portugal, disponível em <http://www.unl.pt/sites/default/files/codigo_do_trabalho.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2022.

13. BRASIL. CONSELHO SUPERIOR DA JUSTIÇA DO TRABALHO – Resolução nº 151/15, disponível em <https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/63630/2015_res0151_csjt_rep02.pdf?sequence=14&isAllowed=y>. Acesso em: 09 jul. 2022.

14. Ob. cit. p. 94.

15. Inteiro teor da Medida Provisória disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Mpv/mpv1108.htm#art6>. Acesso em: 10 jul. 2022.

16. Ver KROST, Oscar. Releitura do conceito de atividade externa incompatível com fixação de horário: uma abordagem vinculada aos Direitos Fundamentais. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Florianópolis, no 23, janeiro/dezembro 2007, p. 270-82, disponível em <https://www.trt12.jus.br/portal/areas/revista/extranet/documentos/23/Oscar_Krost.pdf&gt;. Acesso em: 10 jul. 2022.

17. ESPANHA. Lei nº 10/2021, disponível em <https://www.boe.es/eli/es/l/2021/07/09/10>. Acesso em: 10 jul. 2022.

18. A Súmula nº 207 contava com o seguinte teor:

207. CONFLITOS DE LEIS TRABALHISTAS NO ESPAÇO. PRINCÍPIO DA “LEX LOCI EXECUTIONIS” (cancelada) – Res. 181/2012, DEJT divulgado em 19, 20 e 23.04.2012.

A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação.

Sobre algumas hipóteses de exceção à adoção do entendimento sumulado, ver KROST, Oscar. A relativização do Princípio da Aplicação da lex loci executionis no Direito do Trabalho Brasileiro: análise crítica do Enunciado 207 de Súmula do TST. Revista Justiça do Trabalho. Porto Alegre: HS Editora, nº 239, novembro/2003, p. 62-73.

19. KROST, Oscar. Teletrabalho, Covid-19 e Medida Provisória no 927/20: reduzindo distâncias entre meios e fins. In:MOLINA, André Araújo; COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; MARANHÃO, Ney. (Coordenadores). Anais do 1o Ciclo de Palestras do grupo eletrônico “Ágora Trabalhista”: Direito e Processo do Trabalho no ano de 2020. São Paulo: OAB/SP ESA, 2020, posição 1.862-2.205/16.086 (e-book).

20. Sobre a lei do teletrabalho no Uruguai, KROST, Oscar. Análise da regulação do teletrabalho na Argentina, Brasil e Uruguai, no prelo.

21. Ob. cit., p. 152.

22. CARELLI, Rodrigo. O teletrabalho In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. SEVERO, Valdete Souto (Coordenadores). Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 332.

23. PORTUGAL. Lei no 7/2009 – Código do Trabalho de Portugal, disponível em <http://www.unl.pt/sites/default/files/codigo_do_trabalho.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2022.

24. ARGENTINA. Leis no 25.800/03 e no 27.555/20, disponíveis em <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/verNorma.do?id=90682>. Acesso em: 10 jul. 2022.

25. Lei nº 19.978/21 disponível em<https://www.impo.com.uy/bases/leyes/19978-2021>. Acesso em: 10 jul. 2022.

26. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução José Pedro Xavier Pinheiro. São Paulo: Atena Editora, 1955, p. 158, disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2022.

A DESCONEXÃO PROFISSIONAL E A DGAEP: TOMEMOS A SÉRIO O DEVER DE ABSTENÇÃO DE CONTACTO*

João Leal Amado – Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

1. Tempo de trabalho, tempo de descanso e tempo de vida

Comecemos pela Constituição da República Portuguesa (CRP): todos os trabalhadores têm direito «ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas», lê se no seu art. 59.º, n.º 1, al. d); e o n.º 2, al. b), do mesmo preceito acrescenta incumbir ao Estado «a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho». Trata se de preocupações que acompanham o Direito do Trabalho desde o seu nascimento: limitar o tempo de trabalho, proteger o equilíbrio físico e psíquico do trabalhador, tutelar a sua saúde, garantir períodos de repouso para este, salvaguardar a sua autodisponibilidade, assegurar a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, enfim, criar e preservar a própria noção de tempo livre, de tempos de não trabalho durante a vigência do contrato que não se reduzam aos períodos indispensáveis ao sono reparador.

Nesta matéria, a lei assenta no binómio tempo de trabalho/período de descanso, sendo certo que o período de descanso recortado negativamente pela lei e consistindo, nos termos do art. 199.º do Código do Trabalho (CT), em todo aquele que não seja tempo de trabalho. O trabalhador tem como que “duas vidas”, a vida no trabalho e a vida fora do trabalho, vale dizer, uma vida profissional em que se encontra numa situação de heterodisponibilidade e uma vida extraprofissional em que recupera a sua autodisponibilidade. E por isso mesmo, aliás, para muitas pessoas, a “verdadeira vida”, aquela que merece ser vivida, só começa quando a jornada de trabalho acaba e quando, finalmente, elas recuperam a sua liberdade.

É certo que aquela repartição dicotómica, aquela lógica binária tempo de trabalho/período de descanso, nunca foi linear. Trabalhadores há, por exemplo, que estão isentos de horário de trabalho, o que significa que não dispõem das tradicionais balizas limitadoras da situação de heterodisponibilidade representadas pela figura do horário de trabalho. Por outro lado, a lei sempre permitiu que, verificando-se determinadas circunstâncias (casos de força maior, acréscimos eventuais e transitórios de trabalho, etc.), a entidade empregadora pudesse ir além do horário de trabalho, pudesse afastar-se do programa contratual, ordenando ao trabalhador a prestação de trabalho extraordinário ou suplementar. Ainda assim, era de exceções que aqui se cuidava: nem todos os trabalhadores, mas apenas aqueles que exercem certo tipo de funções (de administração ou direção, de confiança, exercidas fora do estabelecimento, etc.), podem ser isentos de horário de trabalho, se nisso acordarem; e o recurso ao trabalho suplementar apenas é lícito quando se verificarem certos requisitos de necessidade ou indispensabilidade na esfera da empresa, sendo que o trabalhador poderá desobrigar-se da respetiva prestação se invocar e provar motivos atendíveis para a sua dispensa.

No essencial, aquele modelo binário era válido: por via do contrato de trabalho, o trabalhador abdicava de uma parte da sua liberdade, perdia a sua autodisponibilidade, ao subordinar-se a outrem; mas isso, em regra, apenas no tempo e no local de trabalho, pois, fora do espaço-tempo empresarial, o trabalhador passava para segundo plano, quase desaparecia, volvendo-se em pessoa e cidadão, assim recuperando a liberdade alienada ─ isto, claro, até ao início de nova jornada de trabalho. Lá, na empresa, no seu horário, cumprindo a jornada, o trabalhador reencontrava o trabalho dependente, colocando a sua autodisponibilidade entre parêntesis, a troco de um salário. 

2. O desafio das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação

Sucede, porém, que, nos últimos anos, com o advento e com o incremento das NTIC (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação), surgiu um novo e complexo desafio para o Direito do Trabalho, dado que as NTIC possibilitam que o trabalho acompanhe o trabalhador fora do espaço/tempo profissional, invadindo o seu tempo de (suposta) autodisponibilidade. São de todos conhecidas as impressionantes mudanças registadas na nossa forma de viver, de comunicar e de trabalhar, resultantes da informatização, da internet, do e-mail, das redes sociais, dos telemóveis, dos computadores… E um dos principais efeitos destes fenómenos consiste, sem dúvida, na diluição das tradicionais fronteiras entre vida profissional e vida pessoal, sobretudo no âmbito das atividades de cariz intelectual. Agora, em muitos casos, o trabalho (e, por via disso, o empregador) pode facilmente acompanhar o trabalhador, seja quando for e onde quer que este se encontre. Agora, o modelo é o de um trabalhador conectado e disponível 24 sobre 24 horas, pois a tecnologia permite a conexão por tempo integral (hiperconexão), potenciando situações de quase escravização do trabalhador ― a escravatura, diz-se, do homo connectus, visto, amiúde, como “colaborador” de quem não se espera outra coisa senão dedicação permanente e ilimitada.

Trata-se de uma cultura empresarial que tem de ser combatida[1]. Ou seja, a cultura empresarial que se gerou, de disponibilidade permanente dos trabalhadores, tem de ser contrariada por uma contracultura que ao Direito do Trabalho cabe construir. A ideia de desconexão profissional tem de ser afirmada, o direito do trabalhador a desligar, no seu período de descanso, tem de ser reafirmado.

O grande problema, para a maioria dos trabalhadores, é, contudo, este: como exercer, realmente, esse “direito à desconexão”, num tempo de concorrência global e desenfreada? Como ousar desligar e desconectar-se, como premir o botão off, numa época marcada pelo excesso de trabalho de alguns, mas também pelo desemprego de muitos? Neste contexto, ousar desconectar-se pode implicar, a curto ou médio prazo, ser desligado da empresa… E o receio da perda do emprego, a luta infrene para escapar às agruras do desemprego, ou, mesmo que em moldes menos drásticos, a simples preocupação em assegurar que os canais permanecem abertos para uma eventual progressão na carreira (promoções, por exemplo), tudo isto redunda em que o trabalhador, mesmo se fatigado, desgastado, perturbado, contrariado, devassado, no limiar do esgotamento, sem tempo para si e para os seus, não ousará desconectar-se. Esse é, simplesmente, um luxo a que ele não poderá dar-se. Ele poderá sonhar com isso, poderá fantasiar com isso, mas, em regra, tudo não passará do plano dos devaneios, pois ele não ousará fazer isso…

3. Direito à desconexão profissional?

Tenho, pelo exposto, algumas dúvidas em relação à conveniência de reconhecer ao trabalhador, por via legal, um “novo” direito, uma “nova” faculdade, o chamado “direito à desconexão profissional”. A desconexão, creio, não é propriamente um direito. O direito aqui em causa é, sim, tal como se consagra na CRP, o direito ao repouso e aos lazeres, ao descanso semanal, a férias periódicas, à limitação da jornada de trabalho… Mais do que como direito, a desconexão surge, assim, como o efeito natural da limitação da jornada de trabalho, isto é, do balizamento do tempo de trabalho através da definição do horário de trabalho de cada trabalhador. O horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal. Já se disse, jornada de trabalho é tempo de vida, ao trabalhar o sujeito entrega tempo de vida ao empregador, que lhe toma esse tempo em troca de dinheiro. Mas esse tempo é limitado (período normal de trabalho) e delimitado (horário de trabalho) pelas normas jurídico-laborais. Fora do tempo de trabalho estaremos, então, em período de descanso, isto é, período de lazer, período de autodisponibilidade, tempo de vida do trabalhador, tempo que este não alienou nem entregou à empresa para a qual trabalha.

Diríamos, portanto, que o período de descanso equivale, deve equivaler, a um período de do not disturb patronal! Um período, pois, em que o trabalhador deve ser deixado em paz pelo empregador, para descansar ou para se dedicar, livremente, a outras dimensões da sua vida. Não é, pois, sobre o trabalhador que recai o ónus de colocar o dístico do not disturb! na porta do seu quarto, assim exercendo um qualquer “direito à desconexão profissional”. Pelo contrário, a obrigação de não perturbar, de não incomodar, recai sobre a empresa. O trabalhador goza, assim, de um “direito à não conexão” (dir-se-ia: de um right to be let alone) por parte da empresa, de um do not disturb! resultante do contrato de trabalho e da norma laboral aplicável[2].

Em certo sentido, o tempo de desconexão profissional surge, pois, como uma versão virtual do período de descanso, típica do mundo digital em que vivemos, como o direito à vida privada do século XXI. O desafio da conexão permanente é novo, não se colocava anos atrás. Justifica-se, por isso, que o Direito do Trabalho tente responder a esse desafio, tente enquadrar e regular o fenómeno. A ideia-chave, porém, deverá aqui consistir, não tanto em conceder ao trabalhador um suposto novo direito ─ o direito à desconexão profissional, que, se e quando exercido pelo seu titular, fará dele, aos olhos do empregador, um mau profissional ─, mas antes em disciplinar o comportamento invasivo da entidade empregadora, em sublinhar que esta, em princípio, deverá abster-se de estabelecer conexão com o trabalhador quando este se encontra a gozar o seu período de descanso.

Neste sentido, creio que é mais de um “dever de não conexão patronal” do que de um “direito à desconexão do trabalhador” que, in casu, se trata. É que, de certa forma, falar num “direito à desconexão” parece pressupor que a entidade empregadora teria, prima facie, um direito à conexão. Ora, resulta da própria ideia de contrato de trabalho e da liberdade que este pressupõe, bem como das normas laborais sobre limitação e organização do tempo de trabalho, justamente, a ideia oposta: fora do tempo de trabalho, no período de descanso, impõe-se ao empregador a não-conexão, um do not disturb!, uma trégua na conectividade que permita ao trabalhador repousar e… viver a vida, viver a sua vida[3].

4. A Lei n.º 83/2021, o dever de abstenção de contacto e a DGAEP

A matéria veio a merecer a atenção do legislador recentemente, através da Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro, diploma que se propôs, sobretudo, modificar o regime jurídico do teletrabalho. O legislador aproveitou o ensejo para aditar um novo artigo ao CT, o art. 199.º-A, uma norma de alcance geral, que não se cinge ao fenómeno do teletrabalho, cujo n.º 1 é do seguinte teor: «O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior».

A norma ora publicada adota a perspetiva correta, não se limitando a enunciar um truísmo, isto é, a reconhecer ou conferir um “direito à desconexão” ao trabalhador, mas corrigindo a mira, vale dizer, afirmando, de forma expressa, o dever patronal de se abster de contactar o trabalhador, no período de descanso deste. Contudo, segundo uma nota interpretativa da DGAEP – Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, ao ser colocada perante a questão «Verifica-se incumprimento do dever de abstenção, no caso de empregador que envie um email ao trabalhador durante o seu período de descanso?», em lugar de dar a resposta que parece óbvia, atenta a clareza da lei ─ a de que sim, se verifica tal incumprimento, salvo se se verificarem situações de força maior que legitimem tal contacto ─, a DGAEP sustenta, estranhamente, que «não estaremos perante uma situação de incumprimento do dever de abstenção, no caso de um empregador que envie um email ao trabalhador durante o período de descanso deste, em que não seja solicitada resposta ou se determine qualquer outra ação imediata por parte do trabalhador»[4].

Não posso subscrever esta afirmação da DGAEP, que me parece contrariar tanto a letra como a teleologia da lei. O dever de abstenção de contacto implica, repete-se, um autêntico do not disturb! endereçado ao empregador, pelo que o facto de a mensagem enviada não solicitar resposta nem determinar uma ação imediata por parte do trabalhador não descaracteriza a atuação patronal como violação desse dever de abstenção. A norma legal em apreço proíbe contactar, não proíbe perguntar! A norma legal proibitiva impõe uma abstenção de contacto, não uma abstenção de emitir ordens ou de formular questões! Se o trabalhador continuar a receber mensagens no seu período de descanso, ele irá sentir-se obrigado a lê-las, irá pensar no seu conteúdo, pensar no que fará quando regressar ao emprego, como responderá ou agirá então, etc., isto é, ele irá ser perturbado por elas, ele irá continuar a estar “com a cabeça no trabalho” durante o seu período de descanso e não, como a lei pretende, desconectado.

A nota da DGAEP sugere até que poderão ser dadas ordens nesse email enviado ao trabalhador, desde que determinem uma ação mediata (e não imediata) por parte deste. Como quem diz: aí vai um email, com vários relatórios em anexo, em pleno sábado, com imenso trabalho para fazer, mas não para fazer hoje nem amanhã (não se preocupe com isso, nem sequer pense nisso, relaxe, goze o seu fim de semana), só para tratar a partir de segunda-feira… Não custa ver no que isto redundaria: numa rotunda violação da letra e num claro esvaziamento dos objetivos subjacentes à proibição legal de contacto instituída pelo art. 199.º-A do CT. Sejamos francos: enviar um email ao trabalhador não é contactar o trabalhador? Não vislumbro como o não seja.

De resto, se tais ordens determinarem uma ação imediata por parte do trabalhador, parece difícil que não caiamos no âmbito do recurso ao trabalho suplementar por banda do empregador, com as respetivas consequências, máxime remuneratórias, para o trabalhador. O problema da desconexão é diferente, é outro, resulta de, amiúde, o contacto patronal não se traduzir numa qualquer ordem para trabalhar, mas representar uma pressão psicológica para que o trabalhador acabe mesmo por trabalhar naquele que seria o seu período de descanso[5], até para não ficar mal visto perante os demais colegas e as chefias quando, mais tarde, comparecer na empresa para retomar a sua atividade.

É caso para dizer: tomemos a sério o dever de abstenção de contacto instituído pela lei. Este é um dever que visa combater a cultura de disponibilidade permanente que se instalou no mundo empresarial, é um dever que tenta preservar o descanso e o tempo de vida livre do trabalhador, que tenta salvaguardar a sua saúde e evitar o burnout resultante da conectividade permanente. Salvo o devido respeito, esta orientação da DGAEP faz descaso de tudo isto, permitindo, afinal, aquilo que a lei proíbe ─ isto é, que a entidade empregadora continue a contactar o trabalhador, via NTIC, no seu período de descanso, contanto que tenha o cuidado de não lhe dar ordens de execução imediata nem lhe fazer perguntas. Discordo.


* texto originalmente publicado em <https://observatorio.almedina.net/index.php/2022/04/18/a-desconexao-profissional-e-a-dgaep-tomemos-a-serio-o-dever-de-abstencao-de-contacto/>, autorizada sua reprodução neste espaço pelo autor.

[1] Isso mesmo se reconhece no Acordo-Quadro sobre a Digitalização, celebrado pelos parceiros sociais europeus em junho de 2020 ─ European Social Partners Framework Agreement on Digitalisation, de 22 de junho de 2020, p. 10.

[2] Pode haver, claro, situações pontuais, de emergência, casos de força maior, etc., em que esse tempo de desconexão profissional poderá ser sacrificado. Mas estas terão de ser sempre situações excecionais e devidamente justificadas, nunca a rotineira prática da empresa.  

[3] Particular atenção merece, em toda esta matéria, a recente Resolução do Parlamento Europeu, de 21 de janeiro de 2021, contendo recomendações à Comissão sobre o direito a desligar (2019/2181(INL)), na qual o Parlamento Europeu, entre muitas outras relevantes considerações, afirma, sem tibieza, que o direito a desligar é um direito fundamental da nova organização do trabalho na nova era digital.

[4] www.dgaep.gov.pt, FAQ – Teletrabalho, n.º 30, atualizado em 11/02/2022

[5] E, se não trabalhar, ele não deixará, em regra, de ficar preocupado com isso e, quiçá, de “consciência pesada” por não o ter feito, o que o impedirá, outrossim, de fruir verdadeiramente do seu período de descanso.

COMPETÊNCIA TERRITORIAL TRABALHISTA EM TEMPOS DESTERRITORIALIZADOS: CONTRIBUIÇÕES GARANTISTAS E COM “VONTADE DE CONSTITUIÇÃO”

O discurso jurídico, em suas múltiplas manifestações, tem aversão a tudo quanto é novo.”

Luiz Alberto Warat1

Oscar Krost

A competência territorial trabalhista é determinada pelo local da prestação dos serviços do trabalhador, independente de onde tenha acontecido a contratação (CLT, art. 651, caput). Entretanto, quando a lide for proposta por agente ou viajante comercial, o processamento competirá à Vara do Trabalho em que o empregador tenha agência ou filial e a esta o empregado esteja subordinado e, em sua falta, à Unidade Jurisdicional da localidade em que domiciliado o empregado ou a mais próxima (CLT, art. 651, §1º).

A jurisdição laboral alcança, ainda, os dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o sujeito subordinado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário (CLT, art. 651, §2º). Acaso o empregador promova atividades fora do lugar do contrato de trabalho, faculta-se ao empregado propor ação no foro da celebração ou da execução do contrato (CLT, art. 651, §3º).

A matéria é regida exclusivamente por disposições infraconstitucionais, mais especificamente por um único artigo de lei.

Contudo, é comum que após a extinção da relação de emprego, em busca de nova colocação ou retornando às origens, o trabalhador mude o Município de domicílio e encontre dificuldades para, ajuizada demanda, se deslocar fisicamente até a cidade em que foi admitido, atuou e foi dispensado, anteriormente, a fim comparecer às audiências no processo do trabalho e à eventual perícia.

Nesta encruzilhada, é posto em xeque o Direito Fundamental de acesso à Justiça, protegido inclusive contra a ação legislativa (Constituição, art. 5º, inciso XXXV). Opta, então, pela propositura da ação perante a Vara com jurisdição sobre a localidade em que atualmente reside.

Citado, o ex-empregador pode apresentar exceção de incompetência em razão do lugar. Assim procedendo, requer a remessa dos autos ao Juízo competente.

Nada de extraordinário, portando-se ambas as partes de modo legal e até previsível.

Antes de adentrar nas possibilidades postas, de grande valia recordar as palavras de Wilson de Souza Campos Batalha que, já em 1951, alertava: ”O princípio genérico da competência do fôro do local da prestação de serviços foi mantido em nossas leis mais recentes. Mas, o princípio não ficou rigidamente estabelecido, admitindo-se atenuações.”2

Agora sim, às hipóteses:

1. LEITURA LITERAL, GRAMATICAL E LEGALISTA: acolhe-se a exceção e remetem-se os autos ao Juízo competente, dando margem ao:

a. prosseguimento do feito e ao exercício do direito de ação SE o autor puder se deslocar até o local das audiências, independente dos custos e intercorrências, ou SE a audiência for realizada de modo remoto

ou

b. arquivamento dos autos, “após o trânsito em julgado. Cientes os presentes. Nada mais”, SE nenhuma das possibilidades anteriores apresentar-se viável.

Para além dos “SEs”, uma ameaça considerável de negação ao regular exercício de um Direito Fundamental.

2. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA, GARANTISTA E CONSTITUCIONAL: rejeita-se a exceção, prorroga-se a competência, assegura-se a tramitação do feito de modo digital (Juízo 100% digital) e o exercício dos também fundamentais Direito à Ampla Defesa e ao Contraditório, possibilitando à demandada:

a. acatar a decisão e contestar as pretensões deduzidas, de modo remoto, produzindo as provas que entender pertinentes no curso do feito

ou

b. recorrer e insistir no deslocamento da competência.

Como podemos perceber, a pandemia trouxe possibilidades que antes de se traduzirem em respostas definitivas, ampliam o campo de discussão. Não há resposta absolutamente certa, tampouco absolutamente errada no campo jurídico.

Existem, entretanto, respostas melhor ou pior fundamentadas, com mais ou menos argumentos e aderência. Temos, então, que reconhecer que a adoção de uma ou de outra via, em se tratando de competência territorial trabalhista, é fruto da conjugação de escolhas com prioridades, não apenas legais, mas, principalmente, jurídicas.

Onde ocorreu a relação trabalhista também tende a ser o local em que mais facilmente podem ser produzidas as provas. Local este, inclusive, em que pode se realizar eventual perícia e cuja Unidade da Justiça do Trabalho bem conheça o dia a dia da atividade econômica patronal e das empresas.

Sem sombra de dúvida, não há como negar.

Mas assim como a máxima “o que não está nos autos, não está no mundo” teve que ser revista após os autos serem alçados à nuvem e se dissiparem na grande rede mundial de computadores, a ponto de tudo estar nos autos, as observações acima apresentadas também exigem revisão.

No “Brasil de 2022 quase pós-pandêmico” praticamente tudo está ao alcance da mão que segura o smartphone: consultas médicas, encomendas de alimentos, transporte urbano, serviços bancários…a lista é extensa. Por que motivo tudo se imaterializa e avança em matéria de consumo, mas segue rígido, litúrgico e arcaico em se tratando da defesa de Direitos Fundamentais Sociais e de verbas alimentares?

Para além de uma leitura tópica de regras de competência, essencial ter-se a “vontade de Constituição” referida por Konrad Hesse em 1959.3 Do contrário, de que adiantaria uma Constituição Cidadã, principiológica e com vocação pós-positivista se as lentes que a lêem insistem em fazê-lo sob a ótica de leis editadas sob a égide de outra Norma Ápice, sob tipos normativos fechados e uma inspiração positivista clássica?

Nelson Hamilton Leiria, ao abordar o papel dos Juízes na obtenção do acesso à Justiça, entende que estes precisam “abandonar a interpretação positiva e dogmática em nome de visão sociológica”, atualizandotextos obsoletos por meio da atividade hermenêutica.4 Sem essa guinadao, seguirão habitando “torres de marfim” e se colocando cada vez mais distantes dos jurisdicionados, razão de ser de sua função.

Muito mais poderia ser aqui escrito, explicado e destrinchado. Poderia, mas não vai. A intenção não é informar, apenas provocar.

Assim, a título de “inconclusão”, uma ironia derradeira: dar-me conta do quanto refleti, ponderei e argumentei para defender algo lógica, formal e materialmente óbvio, além de condizente com a realidade contemporânea, enquanto que há quase 05 anos, sem tanto esmero e coerência, o Poder Legislativo promoveu, por meio da Lei nº 13.467/17 (“Reforma Trabalhista”), a alteração de 100 artigos da CLT, sob o pretexto de modernizar a normatividade laboral e desburocratizá-la. Detalhe: dentre as dezenas de dispositivos não figurava justamente aquele que clamava por uma “repaginada”, o art. 651.

Questão de competência.

1 WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito: interpretação da lei – temas para uma reformulação. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p 25.

2 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Instituições de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Max Limonad, 1951, p. 146, grifei.

3 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Mendes Ferreira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 19.

4 LEIRIA, Nelson Hamilton. A pós-modernidade e a necessária redesignação do conceito de ‘acesso à justiça’. In: KÜLZER, José Carlos et at. Direito do Trabalho Efetivo: homenagem aos 30 anos da Amatra12. São Paulo: LTr, 2013, p. 427.

“O (sujeito) DESAPARECIDO” (que vive do trabalho) OU AMERIKA: Kafka sendo Kafka

Oscar Krost

Primeiro romance de Franz Kafka (1883-1924), O desaparecido ou Amerika foi escrito entre 1912 e 1914. Por fatores desconhecidos, sua publicação ocorreu apenas em 1927, após O processo (1925) e O castelo (1926).

Obra inacabada, contou com a organização de Max Brod, amigo, testamenteiro, editor e, em alguma medida, coautor de Kafka. A trama se desenvolve em torno da viagem do jovem Karl Rossmann, do Velho para o Novo Mundo, em um navio de bandeira alemã.

Aos 17 anos, K. foi seduzido por uma empregada da família, a engravidando. Envergonhados, os “pobres pais”1 enviam o filho para outro continente, onde há anos vive um tio desconhecido, poupando-lhes de ter que conviver com o causador de tamanha vergonha.2

Em redação fragmentada, O desaparecido é considerado um “anti-romance de formação“, segundo palavras de Márcio Seligman-Silva. A definição decorre do entendimento de que no lugar “de contar histórias que se desdobram no tempo, ele descreve instantâneos que revelam a triste situação do sujeito e de sua desaparição na modernidade“.3

A divergência permeia todo o livro, desde a publicação à revelia do autor, passando pelo título formado pela junção do nome atribuído por Kafka com “ou Amerika” aposto por Brod, em pretensa atenção à referência feita em rascunhos pelo autor a seu “romance americano”.4

Centenária, a narrativa expõe a trajetória de alguém sem lugar, tempo ou voz, empurrado por aqueles que deveriam protegê-lo a uma condição extrema de privações. A troca do velho pelo novo, de forma imposta, ainda que sob as vestes de opção, não deixa chances para questionamentos, se velho, se novo, se troca…enfim. Lembra Filgueiras,5 traz elementos de Calvino6 e até traços do próprio Kafka.7

Não à toa, o foguista da embarcação é quem primeiro se relaciona com Rossmann, tão logo o navio atraca em Nova York, no início da história.8 Sem nome, a persona é identificada “para o que serve”, não por quem é, como um utensílio vivo cujo único traço comum com o interlocutor se limita à origem germânica.

Após trocarem poucas frases, o trabalhador se sente à vontade para queixar-se do maquinista-chefe, Sr. Schubal, o romeno. Sua indignação se foca em um aspecto secundário, ao afirmar que “esse cão sarnento nos esfola a nós, alemães, num navio alemão!“. E, culpado, esboça uma justificativa: “Não creia – perdia o fôlego, agitava a mão – que reclamo por reclamar“.9

A revolta do sujeito explorado não se dirige contra o sistema que a ele impõe tal condição, tampouco em face de quem dela se beneficia. É direcionada a outro empregado, de hierarquia sutilmente superior e a partir de uma percepção estereotipada de nacionalidade.

Novidade do começo do século XX ou herança de tempos remotos a diferenciação de iguais por conta de detalhes/desconsideração das causas estruturais de iniquidades e discriminações?

Inexiste nada novo debaixo do sol, ensina o Eclesiastes. Nada “de novo” como novidade ou enquanto repetição?

Não há resposta, mas respostas e independente do que se diga, imprescindível dimensionar o quanto os fenômenos atuais do mundo do trabalho não passam de “remakes”, “déjà vus” e reprises. A eterna, intrínseca e insanável contradição entre capital e trabalho, produto de um sistema fundado na propriedade privada e no lucro unilateral.

Algoritmos, plataformas, virtualidades são apenas alguns exemplos de um léxico de modismos que tentam ocultar a exploração do ser humano por quem detém os meios de produção.

E aqui está o legado de O desaparecido ao “Direito (alquebrado) do Trabalho”: se nada for feito de diferente, a depender apenas do arbítrio dos “pobres pais”, o desaparecimento do sujeito que vive da própria força produtiva tornar-se-á uma profecia autorrealizável. Isto acontecerá não apenas pelo uso da retórica impregnada de termos como empreendedor, colaborador e pessoa jurídica, mas a partir deles, até que o sujeito se sujeite a ponto de se coisificar.

Emblemática, a este respeito, a advertência feita pelo passageiro Karl ao trabalhador foguista ao reconhecê-lo como vítima de grande injustiça na embarcação: “– Mas tem que se defender, dizer que sim ou que não, senão as pessoas não terão idéia de qual é a verdade. Tem de prometer que vai me obedecer, pois eu mesmo – tenho muitas razões para temer isso – não poderei mais ajudá-lo.”10

O empurrão rumo à novidade como única alternativa simboliza e sintetiza a sina diária de trabalhadoras e trabalhadores em seu drama existencial, atemporal e universal. Quem tudo tem dita a desdita de quem só tem a si mesmo.

Afinal, “pontos de partida falsos, inevitavelmente, conduzem a conclusões inverídicas, impedindo o enfrentamento dos problemas e prestando-se à criação de mitos“.11 Encontra-se ao alcance de cada uma e de cada um a escrita da própria história, partindo da tomada de consciência, refletida e crítica, transformável em ação. Saibamos, de antemão, que o preço do não agir frente a tamanha oportunidade acaba por conferir poderes para que outros o façam, atendendo por nomes como Brod, “pobres pais”, Mercado, tecnologia…

1 A expressão adotada por Kafka faz lembrar os genitores de Gregor Samsa, protagonista de A metamorfose.

2 KAFKA, Franz. O desparecido ou Amerika. Tradução, notas e posfácio Susana Kampff Lages. 1ª edição. Sao Paulo: Ed. 34, 2003, p. 13.

3 Texto da orelha de KAFKA, Franz. O desparecido ou Amerika. Tradução, notas e posfácio Susana Kampff Lages. 1ª edição. São Paulo: Ed. 34, 2003. Também de Seligman-Silva, ver Direito, Política e Literatura, evento promovido pela Escola Paulista da Magistratura, em 11.10.2019, fala sobre “O processo” de Kafka, disponível em <https://youtu.be/ewPc2xBHpaQ>. Acesso em: 27 mai. 2022.

4 Nota da tradutora, Ob. cit. p. 07.

5É tudo novo”, de novoas narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital“, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/05/22/e-tudo-novo-de-novo-as-narrativas-sobre-grandes-mudancas-no-mundo-do-trabalho-como-ferramenta-do-capital-resenha/>. Acesso em: 27 mai. 2022.

6 Trabalhador inexistente, mas o show tem que continuar. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/12/04/trabalhador-inexistente-mas-o-show-tem-que-continuar/>. Acesso em: 27 mai 2022.

7 Lições de “Odradek” de Kafka a um Direito do Trabalho em pandemia. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/07/06/licoes-do-odradek-de-kafka-a-um-direito-do-trabalho-em-pandemia/> e Metamorfose da competência trabalhista: contribuições de Kafka à interpretação dos artigos 8º, §3o, e 855-B da CLT. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/04/14/metamorfose-da-competencia-trabalhista-contribuicoes-de-kafka-a-interpretacao-dos-artigos-8o-%c2%a73o-e-855-b-da-clt/>). Acesso em: 27 mai. 2022.

8 O foguista é título do capítulo 1 de O desaparecido ou Amerika. Por sua complexidade e relevância acabou publicado separadamente do restante do livro, sendo mais conhecido do grande público do que este. Ironicamente ou não, a personagem foguista finda sua aparição na trama sem um nome ou sobrenome, ensejando reflexões sobre o papel de trabalhadoras e trabalhadores na sociedade e no processo produtivo de modo geral, em papeis de absoluto anonimato enquanto sujeitos.

9 Ob. cit. p. 18.

10 Ob. cit. p. 39.

11 Direito do Trabalho descomplicado para adultos. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/09/16/direito-do-trabalho-descomplicado-para-adultos/>. Acesso em: 27 mai. 2022.