EDUARDO GALEANO: RESGATANDO A IMPORTÂNCIA DO FATO E DO VALOR PARA O DIREITO DO TRABALHO

Oscar Krost

O Direito do Trabalho é um ramo do conhecimento jurídico atrelado, desde sua gênese, a Principios específicos, que não apenas o caracterizam, como justificam. Algo como sua razão de ser ou lugar no mundo. Por isto, inviável estudá-lo sem conhecer o jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez (1919-2008), autor do clássico “Princípios de Direito do Trabalho” (1975).

Plá Rodriguez identificou e abordou com precisão os mais importantes Princípios juslaborais, discorrendo sobre sua relevância e aplicabilidade, aspectos comumente menosprezados em comparação às análises relativas às regras, ainda que ambas integrem o gênero norma.

Como nos legou outro grande jurista, o brasileiro Miguel Reale, de acordo com a Teoria Tridimensional do Direito1 este vai além da norma, sendo integrado, ainda, por outros dois elementos: fato e valor. Aqui está o motivo para refletir sobre o Direito do Trabalho não pelo olhar de Plá Rodriguez, mas de Galeano. Mesmo conhecendo, em tese, as lições de “Princípios de Direito do Trabalho”, tal fato, por si só, parece não bastar a filtrar máximas difundidas há algum tempo, pautadas em frágeis premissas, repetidas à exaustão, tais como: “o trabalhador deve decidir sozinho o que é melhor para ele, não podendo ser tratado como criança pela lei ou pela Justiça do Trabalho”, “no Brasil, existem direitos demais para os empregados, retirando a competitividade das empresas” ou, ainda, “menos MPT, mais empregos”. Liberdade de expressão é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, não podendo ser tangenciada. Contudo, as falas em questão, para além de opiniões, não fazem justiça ao que representa em termos históricos, filosóficos e civilizatórios o complexo normativo trabalhista. Talvez seja interessante repensá-las e reavaliá-las a partir de conteúdos menos normativos e mais fáticos e valorativos. Ouçamos a voz de outro mestre uruguaio, engrossando um coro com aquele já escutado.

Eduardo Hughes Galeano (1940 – 2015) foi jornalista e escritor, nascido em Montevidéu, autor de mais de 40 livros, traduzidos para dezenas de idiomas. É mundialmente conhecido pelo clássico “As veias abertas da América Latina” (1971), obra em que examinou a exploração do continente desde o período colonial. Seus textos podem ser classificados como ficção, jornalismo, política ou história, embora mesclem, nas mais variadas proporções e medidas, elementos de cada gênero. Galeano também é considerado um contador de causos,2 figura intermediária entre o trovador e o mentiroso, além de um crítico do americanismo e do capitalismo.3

O que Galeano pode dizer sobre fatos e valores, transcorridos cinco anos de sua morte, acrescentando algo ao Direito do Trabalho e ao mundo em plena pandemia de Covid-19?

Pouca coisa, mas de muita importância.

A centralidade de narrar o óbvio, buscando preservar intacta a memória, pois “para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos.”4

A compreensão de que o entendimento das coisas não se trasmite pela genética, sendo resultado de um compromisso que jamais tem fim, tendo em vista que “segundo dizem, o homem é o lobo do homem. Mas nenhum lobo mata outro lobo. Eles não se dedicam, como nós, ao extermínio mútuo.”5

O papel da metáfora, na simplificação de questões complexas, em uma prática de alteridade, ao observar que “estalactites descem do teto. Estalagmites crescem do chão. (…) algumas vão demorar um milhão de anos até se tocarem. Não têm pressa.”6

A importância da indignação diante da injustiça, a exemplo de quando, “há cento e trinta anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela.7

O compromisso de jamais relativizar o que não pode ser relativizado, sem chance alguma ao “mas”, ao lembrar que “o medo de fazer nos reduz à impotência (…).mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória“.8

Assim, mesmo não possuindo formação jurídica, Eduardo Galeano discorre com autoridade sobre histórias de vida e relações de exploração, lendo as pessoas em si, no espaço e no tempo, não deixando dúvidas de que entre forças diferentes e desiguais, ausente interferências externas, equalizando esta discrepância, crueldade e miséria são mera questão de tempo.

O Direito do Trabalho não existe apenas para proteger o trabalhador. Serve, também e fundamentalmente, para preservar o sistema capitalista no qual se emprega o sujeito subordinado. Ganhos do trabalho retornam ao mercado pelo consumo de produtos por quem trabalha. Mais salário, mais poder de compra, o que, por sua vez, gera mais lucro e mais produção e, também, empregos. Não entender que a exploração desmedida gera ganhos imediatos tão somente a quem a promove signfica ignorar o sentido do termo “capital”, o mesmo ocorrendo com as expressões função social do contrato e da propridade. Princípio da Proteção é um eufemismo mal compreendido, pois suas projeções não se limitam a tutelar um dos pólos da relação trabalhista. Protege ambos, inclusive o empregador que empreende, ao assegurar patamares concorrenciais mínimos.

Galeano nunca poupou críticas a práticas colonialistas e imperialistas, predatórias em termos sociais, econômicos e ambientais, prejudicando parcelas hipossuficientes das populações. Equivocadamente, há quem o rotule de opositor de alguns países, não das ações por eles praticadas. Por isto, premente ler e reler a obra de quem, como poucos, discorreu sobre fatos e valores, a fim de pautarmos nossas falas e ações em constatações, conclusões e provas, não nos contentando com versões ou indícios, cabendo, acerca destes, transcrever o seguinte trecho:

Indícios

Não se sabe se aconteceu há séculos, há pouco, ou nunca.

Na hora de ir para o trabalho, um lenhador descobriu que o machado tinha sumido. Observou o vizinho e comprovou que tinha o aspecto típico de um ladrão de machados: o olhar, os gestos, a maneira de falar…

Alguns dias depois, o lenhador achou o machado, que estava perdido num canto qualquer.

E quanto tornou a observar seu vizinho, comprovou que não parecia nem um pouco um ladrão de machados, nem no olhar, nem nos gestos, nem na maneira de falar”.9

Pensar Galeano é essencial à compreensão e ao resgate do papel do fato e do valor ao Direito do Trabalho. Para a norma, sigamos com Plá Rodriguez.

1 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. Editora Saraiva, São Paulo, 2003.

2 Pecha, aliás, confirmada pela editora L&PM, responsável pela publicação da maior parte do acervo de Galeano, no Brasil, conforme anunciado em seu site: <https://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=527090&ID=730006>. Acesso em: 23 jul. 2020.

3 Informações obtidas em <https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Galeano>. Acesso em: 23 jul. 2020.

4 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Galeno de Freitas. 8a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 14.

5 Tradução livre de GALEANO, Eduardo. El cazador de historias. 1a ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores Argentina, 2016, p. 140.

6 GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Tradução Eric Nepomuceno. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 21.

7 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 02.

8 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução Eric Nepomuceno. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 110.

9 GALEANO, Eduardo. Bocas do tempo. Tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p. 236.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

7 comentários em “EDUARDO GALEANO: RESGATANDO A IMPORTÂNCIA DO FATO E DO VALOR PARA O DIREITO DO TRABALHO

  1. Lendo seu texto pensei, bem…talvez o capitalismo seja o lobo do capitalismo, pois sem compreender que, como o sr disse “O Direito do Trabalho não existe apenas para proteger o trabalhador. Serve, também e fundamentalmente, para preservar o sistema capitalista no qual se emprega o sujeito subordinado”, e no restante desse importante parágrafo, fica evidente que o próprio capitalismo não se importa com o capital, mas apenas e tão somente em lucrar a qualquer custo. O que somos nós, humanos (se o somos), no centro desda matança?? Alteridade? Ao menos temos a literatura, as letras e aqueles que traduzem sentimentos para que nossa indignação seja, ao menos, lógica e fundamentada.

    Curtir

  2. Reflexões que nos levam ao óbvio: se toda engrenagem ( meios de produção e trabalho) estiver ajustada, tudo fica certo e equilibrado. O problema é que às vezes, existe uma engrenagem que quer se sobressair e aí desequilibra todo contexto.

    Curtir

  3. Eita, hein, Oscar?!
    Sua interconexão – diriam os mais jovens, seu ‘link’-, com a obra do Galeano, a partir do conterrâneo Plá Rodrigues, é prá lá de oportuna.
    Precisamos resgatar o Direito que realmente dialoga com a filosofia e a sociologia, para além da visão de grade meramente arcádica. Os dois autores forjaram minha formação nas duas áreas. E a propósito do Galeano, você está tão certo no seu diálogo, que o Autor, ao relançar, 39 anos depois, seu celebrado “Veias Abertas da América Latina”, prefaciou a edição (2010), lamentando que o livro não tenha perdido atualidade, completando:
    “A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome de hoje -, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia” (L&PM, 2010, trad. Sergio Faraco).
    Parabéns, por isso meu prestigioso colega, e mais que isso, meu querido amigo.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: