Oscar Krost
Primeiro romance de Franz Kafka (1883-1924), O desaparecido ou Amerika foi escrito entre 1912 e 1914. Por fatores desconhecidos, sua publicação ocorreu apenas em 1927, após O processo (1925) e O castelo (1926).
Obra inacabada, contou com a organização de Max Brod, amigo, testamenteiro, editor e, em alguma medida, coautor de Kafka. A trama se desenvolve em torno da viagem do jovem Karl Rossmann, do Velho para o Novo Mundo, em um navio de bandeira alemã.
Aos 17 anos, K. foi seduzido por uma empregada da família, a engravidando. Envergonhados, os “pobres pais”1 enviam o filho para outro continente, onde há anos vive um tio desconhecido, poupando-lhes de ter que conviver com o causador de tamanha vergonha.2
Em redação fragmentada, O desaparecido é considerado um “anti-romance de formação“, segundo palavras de Márcio Seligman-Silva. A definição decorre do entendimento de que no lugar “de contar histórias que se desdobram no tempo, ele descreve instantâneos que revelam a triste situação do sujeito e de sua desaparição na modernidade“.3
A divergência permeia todo o livro, desde a publicação à revelia do autor, passando pelo título formado pela junção do nome atribuído por Kafka com “ou Amerika” aposto por Brod, em pretensa atenção à referência feita em rascunhos pelo autor a seu “romance americano”.4
Centenária, a narrativa expõe a trajetória de alguém sem lugar, tempo ou voz, empurrado por aqueles que deveriam protegê-lo a uma condição extrema de privações. A troca do velho pelo novo, de forma imposta, ainda que sob as vestes de opção, não deixa chances para questionamentos, se velho, se novo, se troca…enfim. Lembra Filgueiras,5 traz elementos de Calvino6 e até traços do próprio Kafka.7
Não à toa, o foguista da embarcação é quem primeiro se relaciona com Rossmann, tão logo o navio atraca em Nova York, no início da história.8 Sem nome, a persona é identificada “para o que serve”, não por quem é, como um utensílio vivo cujo único traço comum com o interlocutor se limita à origem germânica.
Após trocarem poucas frases, o trabalhador se sente à vontade para queixar-se do maquinista-chefe, Sr. Schubal, o romeno. Sua indignação se foca em um aspecto secundário, ao afirmar que “esse cão sarnento nos esfola a nós, alemães, num navio alemão!“. E, culpado, esboça uma justificativa: “Não creia – perdia o fôlego, agitava a mão – que reclamo por reclamar“.9
A revolta do sujeito explorado não se dirige contra o sistema que a ele impõe tal condição, tampouco em face de quem dela se beneficia. É direcionada a outro empregado, de hierarquia sutilmente superior e a partir de uma percepção estereotipada de nacionalidade.
Novidade do começo do século XX ou herança de tempos remotos a diferenciação de iguais por conta de detalhes/desconsideração das causas estruturais de iniquidades e discriminações?
Inexiste nada novo debaixo do sol, ensina o Eclesiastes. Nada “de novo” como novidade ou enquanto repetição?
Não há resposta, mas respostas e independente do que se diga, imprescindível dimensionar o quanto os fenômenos atuais do mundo do trabalho não passam de “remakes”, “déjà vus” e reprises. A eterna, intrínseca e insanável contradição entre capital e trabalho, produto de um sistema fundado na propriedade privada e no lucro unilateral.
Algoritmos, plataformas, virtualidades são apenas alguns exemplos de um léxico de modismos que tentam ocultar a exploração do ser humano por quem detém os meios de produção.
E aqui está o legado de O desaparecido ao “Direito (alquebrado) do Trabalho”: se nada for feito de diferente, a depender apenas do arbítrio dos “pobres pais”, o desaparecimento do sujeito que vive da própria força produtiva tornar-se-á uma profecia autorrealizável. Isto acontecerá não apenas pelo uso da retórica impregnada de termos como empreendedor, colaborador e pessoa jurídica, mas a partir deles, até que o sujeito se sujeite a ponto de se coisificar.
Emblemática, a este respeito, a advertência feita pelo passageiro Karl ao trabalhador foguista ao reconhecê-lo como vítima de grande injustiça na embarcação: “– Mas tem que se defender, dizer que sim ou que não, senão as pessoas não terão idéia de qual é a verdade. Tem de prometer que vai me obedecer, pois eu mesmo – tenho muitas razões para temer isso – não poderei mais ajudá-lo.”10
O empurrão rumo à novidade como única alternativa simboliza e sintetiza a sina diária de trabalhadoras e trabalhadores em seu drama existencial, atemporal e universal. Quem tudo tem dita a desdita de quem só tem a si mesmo.
Afinal, “pontos de partida falsos, inevitavelmente, conduzem a conclusões inverídicas, impedindo o enfrentamento dos problemas e prestando-se à criação de mitos“.11 Encontra-se ao alcance de cada uma e de cada um a escrita da própria história, partindo da tomada de consciência, refletida e crítica, transformável em ação. Saibamos, de antemão, que o preço do não agir frente a tamanha oportunidade acaba por conferir poderes para que outros o façam, atendendo por nomes como Brod, “pobres pais”, Mercado, tecnologia…
1 A expressão adotada por Kafka faz lembrar os genitores de Gregor Samsa, protagonista de A metamorfose.
2 KAFKA, Franz. O desparecido ou Amerika. Tradução, notas e posfácio Susana Kampff Lages. 1ª edição. Sao Paulo: Ed. 34, 2003, p. 13.
3 Texto da orelha de KAFKA, Franz. O desparecido ou Amerika. Tradução, notas e posfácio Susana Kampff Lages. 1ª edição. São Paulo: Ed. 34, 2003. Também de Seligman-Silva, ver Direito, Política e Literatura, evento promovido pela Escola Paulista da Magistratura, em 11.10.2019, fala sobre “O processo” de Kafka, disponível em <https://youtu.be/ewPc2xBHpaQ>. Acesso em: 27 mai. 2022.
4 Nota da tradutora, Ob. cit. p. 07.
5 “É tudo novo”, de novo: as narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital“, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/05/22/e-tudo-novo-de-novo-as-narrativas-sobre-grandes-mudancas-no-mundo-do-trabalho-como-ferramenta-do-capital-resenha/>. Acesso em: 27 mai. 2022.
6 Trabalhador inexistente, mas o show tem que continuar. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/12/04/trabalhador-inexistente-mas-o-show-tem-que-continuar/>. Acesso em: 27 mai 2022.
7 Lições de “Odradek” de Kafka a um Direito do Trabalho em pandemia. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/07/06/licoes-do-odradek-de-kafka-a-um-direito-do-trabalho-em-pandemia/> e Metamorfose da competência trabalhista: contribuições de Kafka à interpretação dos artigos 8º, §3o, e 855-B da CLT. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/04/14/metamorfose-da-competencia-trabalhista-contribuicoes-de-kafka-a-interpretacao-dos-artigos-8o-%c2%a73o-e-855-b-da-clt/>). Acesso em: 27 mai. 2022.
8 O foguista é título do capítulo 1 de O desaparecido ou Amerika. Por sua complexidade e relevância acabou publicado separadamente do restante do livro, sendo mais conhecido do grande público do que este. Ironicamente ou não, a personagem foguista finda sua aparição na trama sem um nome ou sobrenome, ensejando reflexões sobre o papel de trabalhadoras e trabalhadores na sociedade e no processo produtivo de modo geral, em papeis de absoluto anonimato enquanto sujeitos.
9 Ob. cit. p. 18.
10 Ob. cit. p. 39.
11 Direito do Trabalho descomplicado para adultos. Disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/09/16/direito-do-trabalho-descomplicado-para-adultos/>. Acesso em: 27 mai. 2022.
Oscar, você sempre publica textos que nos levam à reflexão. Esse, então…Essa coisificação do trabalhador é sim, questão recorrente, desde sempre. E o empreendedorismo? Tenho um exemplo bem triste. Um moça formada em administração foi contratada por uma empresa que exigiu uma MEI. Trabalho remoto, sem qualquer custo para a empresa, ela ganha 600 reais por mês. E acha bom, porque estava desempregada. É isso. Um abraço.
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