Oscar Krost
“Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.“
Wyslawa Szymborska1
Para a espécie humana, a expressão de ideias e de sentimentos representa verdadeira necessidade. Tal atividade realiza-se por meio de uma ou mais formas de linguagem, verbais ou não.
Ao contrário de elementos integrantes de sistemas exatos e herméticos, as palavras, em qualquer idioma, jamais apresentam significado único. E justamente aí, na polissemia, encontram-se, lado a lado, a grande riqueza e o maior perigo no uso do vernáculo.
Conscientes do “canto da sereia”, impõe-se reconhecer a inexistência de neutralidade na relação símbolo-objeto, pois cada escolha significa a renúncia das demais alternativas possíveis, preteridas na constituição da “gramática”. Todo código carrega traços dos criadores/usuários, especialmente ideológicos, aqui entendidos os formadores de uma visão de mundo forjada por explicações e crenças.2
Quanto mais rústicos forem os instrumentos, menor a autonomia de voo da aeronave ou quanto menor a autonomia de voo, mais rústicos serão os instrumentos?
Afinal, para que aperfeiçoar símbolos e códigos, despendendo tempo e outros recursos, se podemos lançar mão de alternativas, como visual law, fluxogramas e esquemas? Rapidez e simplicidade não trazem apenas ganhos?
Para evitar reducionismos, simplificações e estereótipos, que ao invés de viabilizar a compreensão dos fatos em um contexto mais amplo, os deturpam e distorcem, obstando um entendimento coerente a respeito. Se o argumento tem uma intenção, mas manifesta outra, diversa, que se alinhem os planos, em detrimento de uma razão dissimulada. Questão de boa-fé – subjetiva e objetiva – na mais plena acepção.
Tomando como exemplo a não tão recente reforma da legislação trabalhista, justificada no excesso de proteção do trabalhador, por uma CLT antiquada e paternalista, que redundaria na perda de competitividade das empresas, que sem entraves, teriam condições de gerar mais empregos e riqueza.
Notório o teor falacioso da premissa inicial: empreendimentos lucrativos com menor custo de mão de obra não repassam eventuais economias ao preço de venda, de modo a aumentar o consumo de clientes. O que isso tem a ver com a CLT?
Consumo é poder de compra, preponderantemente gerado por salário. A reforma de 2017 chancelou a redução dos ganhos do trabalho, derrubando o poder aquisitivo e elevando a inadimplência, agravando o quadro econômico recessivo. O poder para pôr fim a um problema multicausal não se encontra no campo jurídico, por passe de mágica ou decreto, envolvendo questões de macro e de microeconomia. Atribuir à legislação protetiva a pecha de causadora de mazelas complexas é absoluta e inadmissivelmente errôneo.
O uso dúbio ou malicioso de alguns termos, de outro lado, pode disfarçar, intencionalmente, o verdadeiro desencadeador de consequências indesejadas, conduzindo, novamente, a conclusões equivocadas. Pontos de partida falsos, inevitavelmente, conduzem a conclusões inverídicas, impedindo o enfrentamento dos problemas e prestando-se à criação de mitos.
Consciência e compreensão do real só podem ser buscadas pelo uso adequado da linguagem, base do mais singelo raciocínio. Linguagem não necessariamente técnica, mas razoavelmente apropriada ao estudo dos fenômenos postos, sem ironia, pecha ou duplo sentido.
A desmoralização do Direito do Trabalho, o enfraquecimento da Justiça do Trabalho e o aviltamento das garantias laborais interessam a quem e por quê?
Como ensina Noberto Bobbio, “não se pode afirmar um novo direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir algum velho direito, do qual se beneficiavam outras categorias de pessoas“.3 Considerando a quantidade de beneficiários das conquistas sociais, durante o século XX, e de “prejudicados”, não haveria, em tese, como fazer frente à progressão da igualdade sem reconhecer a existência de classes sociais “diversas”, em permanentes tensão e conflito.4
Para quem não aceita abrir mão de direitos, a melhor estratégia é a negação do litígio e o abrandamento do viés exploratório da relação. “Empreendedor” e “colaborador” substituem “patrão” e “operário” na medida, e a superação da luta de classes se daria pelo mero avanço tecnológico.
Aquele que emprega, aloca outrem em sua estrutura produtiva, pautada no binômio risco e lucro. Responde pelos empregados dos quais extrai mais-valor em busca da majoração do capital, em um ciclo de ampliação da subordinação e da exploração.
Já quem empreende, arrisca o certo pelo duvidoso, “dando” oportunidade a quem não tem, de forma benevolente e digna de elogios e de reconhecimento. Não pode ser responsabilizado por eventuais infortúnios da atividade, por não ser “culpa” sua, sob pena de desistir das boas ações, tornando-se um rentista.
Mesma situação, idênticos sujeitos, distintamente vistos e considerados…tal qual água e vinho. Um, nu e cru, e outro, com “filtro”.
Se alguém falsifica um documento particular, incorre na conduta tipificada no art. 298 do Código Penal,5 sujeitando-se à pena de reclusão de 01 a 05 anos e multa. Crime.
Mas se o documento for um cartão-ponto, abranda-se o enquadramento para “irregularidade”, gerando a inversão do ônus probatório em demanda judicial, acaso proposta, conforme entendimento consagrado na Súmula nº 338, item III, do TST.6 Lapso.
Sensação de estarmos diante de histórias de ninar, adaptações dos quadrinhos para as telas ou a vida explicada em 5 passos. Infelizmente, dados de realidade.
De nada adianta falar em dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho ou Princípio da Proteção se as demais peças do jogo argumentativo se posicionarem de modo eufemístico, esvaziando o objetivo real das ações.
De nada adianta alterar a CLT ou manter a Constituição, se Juizas e Juízes do Trabalho seguirem entendendo litigância de trabalhadoras e trabalhadores como causa do afogo do Judiciário ao invés da cultura do descumprimento da lei por empregadores.
De nada adianta criticar sindicatos por sua suposta crise de representatividade se ante a menor paralisação ou mobilização são acolhidas toda e qualquer medida inibitória por alegados esbulho ou turbação do direito de propriedade.
Sejamos responsáveis, assumindo a parte que nos cabe neste latifúndio. Nada de terceirizar, transferir ou negar a natureza das coisas. Sejamos descomplicados e adultos. Não há culpados ou inocentes.
Como ponto de partida, boa vontade, esforço e estudo. Trocas e compartilhamentos, também. Se mesmo assim não der “certo”, não será por falta de empenho ou saber jurídico, pois raramente os nós são simples de desatar, exigindo maior amplitude tanto no olhar, quanto no agir.
Façamos a diferença a partir de percepções e ações diferentes, rumo a um Direito do Trabalho descomplicado e adulto, iniciando pela terminologia adotada.
1 SZYMBORSKA, Wyslawa. As três palavras mais estranhas In: Poemas. São Paulo Companhia das Letras, 2011, p. 107.
2 Segundo Roberto Lyra Filho, o termo ideologia, em um primeiro momento, correspondeu ao estudo da origem e do funcionamento das ideias e dos respectivos signos. Posteriormente, passou a representar o conjunto de ideias organizadas em torno de um padrão, o que levou à revelação sobre “deformações do raciocínio, pelos seus conteúdos e métodos, distorcidos ao sabor de vários condicionamentos, fundamentalmente sociais“, justificando o motivo pelo qual “a imagem mental não corresponde exatamente à realidade das coisas.” (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 14 – coleção primeiros passos).
3 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 20.
4 Não se confunda poder aquisitivo com classe social. Classe social corresponde à relação de subsistência da pessoal, se relacionada a ganhos do seu trabalho ou do trabalho alheio/capital. Poder aquisitivo tem a ver com o quanto estes ganhos podem proporcionar em termos de conforto. A origem do ganho importa para entender onde o sujeito se encontra na estrutura social, não o volume. Mais um jogo de palavras que pode levar a conclusões absolutamente dissociadas da realidade.
5 CP, art. 298:
Art. 298 – Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.
6. Súmula 338 do TST. Jornada de Trabalho. Registro. Ônus da prova.
(…)
III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir.
Artigo de elevada importância para reflexão de quem se interessa por buscar sempre compreender os fenômenos difíceis das relações de poder na sociedade capitalista. Gratidão!
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Excelente texto, pois retrata bem a nossa realidade. Infelizmente, vemos interesses se sobrepondo aos direitos trabalhistas, e pouco podemos fazer para mudar isso. Precisamos continuar lutando enquanto operadores do direito com nossas vozes por meio da escrita, para fazermos a diferença em meio a tantas injustiças.
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