Oscar Krost
Dedico as linhas que seguem às pessoas que me conduziram até elas, a partir das experiências proporcionadas pelas trocas ocorridas no exercício da titularidade das jurisdições trabalhistas em que atuei (São Miguel do Oeste/SC, de outubro/21 a fevereiro/23) e atuo (Rio do Sul/SC, desde fevereiro/23), todas, sem exceção/: partes, testemunhas, Servidoras/Servidores, Estagiários, terceirizad@s, perit@s, Advogad@s, membros do MPT e colegas em sentido geral. Sem cada uma e cada um de vocês, em diversa medida, isto não seria possível.
Sem mais, nem porque, o improvável bate à porta e anuncia o início não de um processo qualquer, mas de “O processo”: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”.1
Pouco antes das 08h, quando costumeiramente a Sra. Grubach trazia o café da manhã, um homem desconhecido adentra a residência sem se identificar. K. pede a identificação do visitante, sendo ignorado. Deixa, então, o quarto, indo até o cômodo contíguo, onde se depara com outro homem, que lhe dá voz de prisão.
Pura e simplesmente assim.
Os invasores – pretensamente investidos em poder e autoridade – não informam quem propôs a causa contra o protagonista, a partir de quais fatos ou o que pretende. Sequer a natureza do litígio ou o nome do tribunal são revelados. Nada está documentado.
A inconsistência do relato se agrava a cada parágrafo. Dados e versões se desencontram a todo instante, não raras vezes se chocando. Forja-se um labirinto processual em cujos caminhos estreitos e sinuosos K. se depara com dúvidas sem fim. Ignora como o pesadelo começou, quando e se acabará.
Para mais detalhes, recomendo a leitura do livro. A proposta destas breves linhas é somente recompor a atmosfera “processual kafkiana”, ponto de partida para o raciocínio a ser desenvolvido.
Mas, antes, é importante destacar que “Der Prozess”, de Franz Kafka, escrito em 1914, foi publicado em 1925, ano seguinte a seu falecimento. A vontade do autor era que Max Brod, amigo e testamenteiro, destruísse os esboços, não sendo atendido.
Inexistia, de fato, uma obra estruturada e concluída, somente fragmentos, em capítulos sequer numerados, alguns, inclusive, inacabados.2 Brod assumiu uma pseudo coautoria do texto, definindo o desenvolvimento cronológico da história e redigindo o desfecho. Em tese, nada complexo, pois todo processo, seja judicial, biológico ou histórico, como desencadeamento de atos lógicos, respeitam, em linhas gerais, uma estruturação previsível. De fato, apenas em tese.
Um “clássico” pode ser assim considerado quando seu conteúdo rompe os limites do senso comum, comunicando além da mensagem pretendida pelo artista e permitindo a incorporação da “leitura” de todos os públicos e épocas, sem limitações no espaço ou no tempo. Atemporal, não datado, sem fronteiras, eis alguns predicados atribuídos às produções de alcance universal.
Não é segredo algum o quanto estimo, aprecio e me identifico com o maior autor Tcheco do século XX, conseguindo, inclusive, para deleite de uns e desgosto de outros, com uma licença nada poética, desenvolver ideias sobre o Direito e o Processo do Trabalho em paralelo às metáforas e aos aforismos de Kafka. Este blog é repleto de exemplos, de “Odradek” à “Metamorfose”, passando por “Diante da Lei” e “Amerika ou o desconhecido”. Interessad@s, acessem www.direitodotrabalhocritico.com, rolando a barra ou indo direto ao sumário.
A leitura pertinente a esta digressão diz respeito a como regras de procedimento, enquanto garantias fundamentais dos litigantes e um norte a ser seguido por membros da Advocacia, do Ministério Público e da Magistratura podem acabar se revelando, na prática, uma ameaça à tutela pretendida e a um ideal mínimo de Justiça.
As razões não são poucas, tendo como ponto em comum a carcomida QUESTÃO DE ENTENDIMENTO. Para quem ainda não a conhece ou dela não lembra, estamos diante de expressão “mil-e-uma-utilidades-jurídica”, empregada sempre que fundamentar, não só decisões, mas também requerimentos e protestos, meramente tangencie o comando do art. 93, inciso IX, da Constituição.
Antes que alguém invoque como solução para todos os males a elaboração de um Código de Processo do Trabalho, considero desnecessárias mais regras no já complexo sistema normativo, embora seja corrente a alegação, não infundada, de que cada Juiz ou Juíza do Trabalho possui sua própria normatividade procedimental. A CLT apresenta o essencial e um pouco mais, parametrizando de maneira suficiente o iter processual.
Eventuais lacunas legais – jamais normativas, pois onde não há regra, atua o Princípio em caráter supletivo -, podem ser colmatadas pelas disposições do Direito Processual Civil3 (em sede de cognição) e da Lei de Execuções Fiscais (em sede de execução).4
O processo trabalhista sempre foi e segue sendo um ramo de vanguarda do Direito Adjetivo, especialmente por se inspirar nos Princípios da Simplicidade das Formas, Oralidade, Irrecorribilidade das Decisões Interlocutórias e do jus postulandi, verdadeiros cânones da adaptação do agir em conformidade com o bem jurídico tutelado e às peculiaridades do caso concreto. Prova disto é a prática há décadas da “convenção processual” positivada no art. 373, §§3º e 4º, do CPC, em 2015.
Ao invés de insistir no mito da completude da codificação e na desconfiança sobre a capacidade dos juristas, deveríamos buscar o amadurecimento na interpretação e na aplicação das disposições do sistema.
A potência e a efetividade máximas residem, justamente, no tensionamento ao limite da abertura e da maleabilidade do regramento, jamais descuidando de uma leitura em duplograu: constitucional-fundamental-garantista e Principiológico Material/Processual do Trabalho. Para tanto, bastam objetividade e fundamentação.
Obviedades que precisam ser ditas, lembradas e efetivadas.
A angústia que não só acompanha, mas caracteriza Josef K. e se avoluma capítulo a capitulo provavelmente acomete trabalhadoras e trabalhadores, inclusive aquelas e aqueles que trabalham no e pelo processo nos Foros de todo o país. Como resultado, a renúncia de direitos por meio de “conciliações” nem sempre caracterizadas por concessões recíprocas e proporcionais. Advogadas e Advogados premidos por respostas a clientes, empregad@s ou empregadores, também padecem de um mal-estar kafkiano ao se depararem com questionamentos sem resposta objetiva, mais ou menos assim:
A Doutora ou o Doutor tem certeza de que devo ou não devo fazer assim ou assado?
Está ou não está na lei?
Sei de pessoas que fizeram diferente, pode?
Apenas algumas hipóteses que batem à porta, qual a cena descrita no começo destas linhas, anunciando uma espécie de detenção, não física, como a de K., mas hermenêutica e procedimental.
Para não ficar na “crítica pela crítica” ou no “abandono ao desalento”, apresento de modo não taxativo possibilidades de adoção prática e imediata. Nenhuma delas põe fim a todos os problemas, mas cada qual os reduz e os atenua substancialmente:
anonimização de nomes próprios e de dados sensíveis nos autos processuais, de partes e de testemunhas, em atenção à LGPD e resguardando envolvidos de inclusão em listas sujas ou outras práticas discriminatórias, evitando golpes virtuais.
clareza no estabelecimento de parâmetros para condução processual, primando pelos Princípios da Lealdade, da Boa-Fé e da Instrumentalidade das Formas, sanando de pronto irregularidades e inépcias, pela concessão de prazo antes de pôr fim a qualquer pretensão, mesmo de defesa.
saneamento processual antes de dar prosseguimento à demanda, tão logo definidos os limites da lide, como o exame de pedido de concessão de benefício da gratuidade da Justiça na primeira oportunidade possível, medidas de urgência, designação fundamentada do momento da perícia, fixação de pontos controvertidos e distribuição do ônus probatório. Adoção mais prévia possível da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, conforme o art. 818, §1º, da CLT.
publicidade sobre critérios objetivos para apreciação e homologação de acordos (judiciais ou extrajudiciais), bem como realização de mediações pré-processuais.
Respeitados o contraditório e a ampla defesa, inexistente prejuízo concreto/provável, não há falar em nulidade, ainda que o procedimento adotado desvie da praxe ou da leitura literal da lei. O mais importante é fugir do jogo de espelhos em que se encontra K., evitando transformar o instrumento de solução de litígios (processo) em um problema maior do que aquele que busca solucionar. A opressão de ser réu em uma demanda sobre a qual nada se sabe, sem tempo ou prazo para chegar ao fim, tampouco regras claras, para Josef K., soa como a pior das penas possíveis. Qualquer desfecho é menos cruel do que a absoluta incompreensão do que está acontecendo e por acontecer.
As coisas precisam ser razoavelmente compreendidas por tod@s, técnicos ou leigos, para que possamos ouvir “não foi tão ruim assim” ao invés de “já não aguentava mais”. Reduziremos, provavelmente, o número de pedidos de desculpas das pessoas ao se colocarem “diante da lei”, “pois nunca fui de confusão, sendo a primeira vez que faço isso”, referindo-se a contratar uma/um Advogad@ e ajuizar/contestar uma ação.
Passou do tempo de tratar os Direitos Sociais Laborais como meros créditos não satisfeitos, em uma inversão entre causa (cultura da violação da Constituição e das leis protetivas) e consequência (excesso de demandas/ “indústria das reclamatórias”). Não é o Direito do Trabalho que gera milhões de demandas judiciais a cada ano no Brasil, mas sua violação em larga escala sem uma resposta à altura.
Para que essa guinada possa começar, essencial a tomada de consciência sobre os ciclos viciosos e kafkianos em que vivemos e aos quais nos habituamos como Operadoras e Operadores do Direito do Trabalho, em práticas anacrônicas. Assim, não precisaremos ouvir dos “guardiões diante da lei”5 que “aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.”6
1 KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 07 . A mesma publicação conta, ainda, com um apêndice composto por “capítulos incompletos”.
2 CARONE, Modesto. Posfácio. KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 258.
3 CLT, art. 769:
A;rt. 769 – Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título.
4 CLT, art. 889:
Art. 889 – Aos trâmites e incidentes do processo da execução são aplicáveis, naquilo em que não contravierem ao presente Título, os preceitos que regem o processo dos executivos fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal.
5 Parábola narrada no capítulo IX de “O Processo” em que um homem do campo, após esperar por toda a vida pela permissão para transpor a porta da lei, pergunta ao guardião da entrada por que ninguém além dele nestes anos todos ali apareceu, considerando que todos aspiram à lei. Como resposta, o trecho transcrito ao final da presente reflexão. “Diante da lei” foi mote de uma das primeiras postagens neste espaço, em julho/2020, quando, no começo da pandemia de Covid-19, a obrigatoriedade ou não da realização de audiências remotas na Justiça do Trabalho ocupava a pauta do dia, estando disponível em <://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/07/31/diante-da-lei-de-kafka-e-as-audiencias-por-videoconferencia-na-justica-do-trabalho/>. Acesso em: 05 mar. 2023.
6 KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 215.
Prezado, o processo trabalhista foi referência para modificações processuais que encontramos no CDC e no CPC. O CPC atual, inspirado no neoprocessualismo e no neoconstitucionalismo reforça a ideia de regras, princípios e normas gerais processuais constitucionais, principalmente no art. 5º da Constituição. Podemos notar, principalmente nos arts. 1º ao 15, conforme parte inicial das razões de motivos do CPC, que este código pode ser compreendido como a “carta politica processual”, de aplicação subsidiária e supletiva em todos os Ramos especializados processuais (art. 15). E todo esse avanço certamente tem a influência do processo do trabalho. Mas hoje, é o CPC, que conjuntamente com as partes não contaminadas da CLT, que nos ajuda a sustentar o livre e amplo acesso ao judiciário (tão propagado por Cappelletti e Garth) e um autêntico devido processo legal comprometido com a dignidade da pessoa humana e a cidadania. Temos que aprofundar o debate
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