“TELETRABALHO”: A VERDADE QUE ESQUECEU DE ACONTECER*

Oscar Krost

A pandemia de Covid-19 parece estar próxima do fim. Não tanto quanto alguns crêem, mas já há sinais que permitem avistar uma luz logo adiante.

Ainda assim, “novo normal” e “pós-pandemia” são algumas expressões adotadas na tentativa de explicar o que está por vir. Dentre as adaptações que aparentemente “chegaram para ficar”, uma se aproxima da unanimidade nos mais diversos setores e com pequenas variações: o “teletrabalho”.

A despeito da controvérsia acerca do primeiro marco normativo sobre o tema na esfera trabalhista, se teria sido o art. 6º da CLT, com a redação dada pela Lei nº 12.511/11, ou os arts. 75-A a E, também da CLT, acrescidos pela Lei nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista),1 fato é que as coisas não andam bem, com forte tendência a piorarem.

Neste particular, importante recordar o teor dos arts. 75-A e B da CLT:

Art. 75-A. A prestação de serviços pelo empregado em regime de teletrabalho observará o disposto neste Capítulo.

Art. 75-B. Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo.

Com todo o respeito, não há como reputar o “teletrabalho” um regime em termos jurídicos, assim considerado o conjunto normativo composto por regras e Princípios, disciplinador de relações que, por sua natureza, justifiquem um tratamento diferenciado e específico.

Se, efetivamente, apresenta-se essencial para sua configuração que a trabalhadora/o trabalhador (1) atue fora das dependências do empregador e (2) utilize tecnologia de informação/comunicação, (3) não se caracterizando como trabalho externo, então estamos diante de um modus operandi ou, melhor dizendo, uma maneira de fazer algo, sem que isso guarde qualquer relação com a natureza do fazer. Não há menção sobre o conteúdo do agir, de modo a diferenciá-lo de figuras próximas, tampouco o adjetivando/qualificando.

A definição legal se refere ao local, à ferramenta e àquilo que não pode ser. Apenas e tão somente.

Ao visualizar alguém atuando como “Operadora/Operador de Telemarketing”, mostra-se plenamente possível identificar, por suas peculiaridades, qual o cargo desempenhado, com baixa margem de erro. Sabe-se, perfeitamente, não estarmos diante de um mineiro, ferroviário ou eletricitário em ação.

Mas no que consiste o “teletrabalho”?

Em absolutamente nada para além de trabalho, a despeito da previsão legal.2

A distinção entre trabalho e “teletrabalho”, em termos objetivos, está no local em que prestados os serviços e na transmissão de seu resultado, seja ele qual for, normalmente, de cunho intelectual, como petições, gráficos, fotografias, mapas, mídias…

Estamos tratando, sem maiores distinções, do velho trabalho em domicílio previsto nos arts. 6º e 83 da CLT, com a diferença de que o uso de meios telemáticos permite a remessa do resultado de modo imaterial, por meio de redes. Costureiras, sapateiros e outros trabalhadores manuais sempre puderam atuar fora da sede da empresa-mãe, inclusive em suas próprias casas, não configurando “teletrabalho”, pelo fruto de seu labor exigir ser fisicamente deslocado.

Se adotado o critério literal de interpretação dos arts. 75-A e B da CLT, passaríamos a nos deparar com trabalhadoras/trabalhadores (presenciais) e as/os respectivas/respectivos “teleavatares” (remotos), todas e todos fazendo realizando exatamente os mesmos serviços, mas recebendo tratamentos diferenciados. Advogados x “teleadvogados”, psicólogos x “telepsicólogos”, arquitetos x “telearquitetos”, em uma lista sem fim. Quem sabe até chegarmos em algum dia a “telejuizes”.

O que mais chama a atenção no particular é o emprego do termo “regime” pela regra, seguido do advérbio “preponderantemente”, “técnica” que permite que o sujeito seja “telealguma coisa”, total ou em parte, sem nem ao menos desconfiar. Como aventado em outro estudo,3 a preponderância exigida se pauta em horas por jornada, em dias por semana, em semanas por mês ou em produtividade ao cabo de determinada fração de tempo? A natureza das coisas e dos acontecimentos parece não importar, enfatizando-se apenas o enquadramento legal em manifestado retrocesso ao mínimo civilizatório sedimentado no art. 7º da Constituição.

Aos exemplos.

Duas trabalhadoras são contratadas para realizar atendimentos telefônicos em um consultório médico, atuando na sede da clínica em 5 dias por semana. No curso da pandemia, ambas passam a trabalhar em suas residências, retornando às dependências da empregadora, gradual e paulatinamente, no curso de 2022.

Ocorre que uma delas passou a trabalhar 2 dias por semana em casa e 3 na empresa, Já a outra, trabalha 3 dias em casa e 2 na empresa.

A aplicação dos arts. 75-A e B da CLT em seu sentido estrito leva a:

* situação 1: duas secretárias

* situação 2: duas “tele-secretárias”

* situação 3: uma secretária e uma “tele-secretária”

Para além da nomenclatura, justifica-se uma diferenciação onde não há causa a ampará-la, discriminando-se negativamente iguais pela simples predominância da atuação de uma em determinado ambiente, quando comparada a outra.


A secretária seguiria a vida com jornada e rotinas laborais inalteradas, tal qual à época da admissão, com pequenas variações decorrentes do período “tele”. Já a “tele-secretária” estaria “isenta” de controle de horário, podendo ser reembolsada por gastos decorrentes da “telecondição”, ficando à mercê de ajuste individual e adaptando-se a “tele-surpresas” de toda ordem. Note-se a abismal distinção entre colegas, ainda que a diferença seja o espaço físico em que trabalham em um único dia da semana.

As regras dos arts. 75-A a E da CLT contrariam Princípios elementares do Direito do Trabalho, ao determinarem a aplicação de disposições menos favoráveis aos sujeitos subordinados, bem como ao estabelecerem condições menos benéficas.


Rompem, ainda, com o Princípio Constitucional da Isonomia,4 fazendo, simplesmente, terra arrasada do Princípio do Não-Retrocesso Social, assim como da proteção em face da “automação”.5

Ignoram a proteção dos salários consagrada pelo Princípio da Intangibilidade, bem como o sinalagma contratual inerente à relação de emprego, especialmente à assunção dos riscos/custos pelo empregador, conforme previsão da CLT.6

Como admitir a hipótese de reembolso de gastos feitos pelo empregado pela aquisição e manutenção de equipamentos de propriedade do empregador dos quais é mero depositário pela utilização de créditos ou numerário de caráter alimentar?

Quem empreende deve comprar ou disponibilizar recursos a quem é empregado no empreendimento.

Do contrário, aquela e aquele que espera 30 dias para receber a remuneração por sua labuta terá que aguardar ainda mais, pois parte dos ganhos poderá ser destinado aos interesses patronais, até que venha a ser ressarcido. E isso se houver ressarcimento, nos termos estabelecidos pelo art. 75-D da CLT.

Desde 1824 as Constituições brasileiras vedam a diferenciação de trabalho manual, técnico e intelectual ou entre profissionais respectivos,7tradição simplesmente desconsiderada pelo Legislador reformista.

O Direito Comparado, com destaque a sistemas semelhantes ao brasileiro, traz exemplos sobre possibilidades protetivas e equânimes de regulação do trabalho remoto com uso de tecnologia telemática, “teletrabalho”. Neste sentido, as regras vigentes na Argentina, Uruguai, Portugal e Espanha, nas quais são assegurados o controle e o limite de jornada por “teletrabalhadores”, o direito à desconexão e até a proteção à intimidade e privacidade.

A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) sugere diretrizes amplas na Convenção no 177, possíveis de observação pelo Legislador nacional, dendo servir inspiração, ainda que não ratificada pelo Brasil, ao contrário da vizinha Argentina.


Os arts. 62, inciso III, 75-A a E da CLT vigem e demandam interpretação e aplicação. Que assim seja, não havendo como ou porque ser diferente.


Mas que interpretem-se e apliquem-se por meio de um olhar materialmente comprometido com a Constituição, com os Princípios do Direito do Trabalho, com as Convenções da OIT e com o Direito Comparado.

Ouça-se o Direito do Trabalho, permitindo-se escutar o diálogo das fontes.

Assim, além de não existir um “teletrabalho” como fenômeno autônomo digno de disciplina por um regime próprio, mas apenas o trabalho, pelo fazer de sempre, porém em local diverso, há um último detalhe capaz de gerar a reflexão sobre entendimentos em contrário.

O trabalho remoto com uso de tecnologia pode se dar de modo síncrono ou assíncrono, ser realizado em horários específicos, como o atendimento ao público, ou não, caso do peticionamento eletrônico judicial. Permite a exigência da visualização de quem o presta, ou não, hipóteses de consultas pessoais e de serviços de reclamação de clientes.

Inexiste impedimento, ainda, para que o “teletrabalho” conte com todas estas características, não simultaneamente, mas em semanas diversas do mês ou períodos específicos do ano. Ainda assim, se mostra sustentável defender a impossibilidade de controle de jornada? Mesmo quando atuam de modo síncrono e visíveis? Ainda que atendam clientes ou prestem suportes a terceiros que possuem horário de atuação conhecido?

Motoristas, policiais e cidadãos em cumprimento de penas restritivas de liberdade em regime condicional circulam pelo mundo desacompanhados, monitorados e até acessados em tempo real. O que impediria que quem atua dentro da própria residência também o seja?

Direito é sistema, síntese e coerência, pelo que propõe-se a leitura do capítulo II-A, “Do teletrabalho”, da CLT, com máxima cautela, jamais esquecendo fazer parte de um todo cujos principais fundamentos são a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e a não-discriminação.

Ao (tele) trabalho !

Dedico as reflexões aqui apresentadas às/aos colegas da turma 1 do curso “Tecnologia e Trabalho”, desenvolvidas na aula 3, “tele” realizada em 18 de março, último. Obrigado.

* o subtítulo deste texto parafraseia o conhecido verso de Mário Quintana: “A mentira é um verdade que esqueceu de acontecer.” Que perdoe-me o poeta.

1 KROST, Oscar. Teletrabalho, Covid-19 e Medida Provisória no 927/20: reduzindo distâncias entre meios e fins. In: MOLINA, André Araújo; COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; MARANHÃO, Ney. (Coordenadores). Anais do 1o Ciclo de Palestras do grupo eletrônico “Ágora Trabalhista”: Direito e Processo do Trabalho no ano de 2020. São Paulo: OAB/SP ESA, 2020, posição 1.862-2.205/16.086 (e-book).

2 Tal posição, mesmo minoritária, nada ostenta de original, sendo, inclusive, defendida por autores de outros países, como Uruguai, em época anterior à promulgação da Lei nº 19.978/21. Neste sentido, GHIONE, Hugo Barretto.¿Es necesario legislar sobre teletrabajo?, <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/02/05/es-necesario-legislar-sobre-teletrabajo/>. Acesso em: 19 mar. 2022.

3 KROST, Oscar. Comentários ao art. 75-B da CLT. In LISBÔA, Daniel; MUNHOZ, José Lúcio. (Organizadores). Reforma Trabalhista comentada por Juízes do Trabalho: artigo por artigo – Atualizada até o fim da vigência da MP 808/17 e Lei 13.660. São Paulo: LTr, 2018, p. 111.

4Art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII.

5Art. 7º, caput, e inciso XXVII.

6Arts. 2º, 3º e 462 da CLT.

7 KROST, Oscar. Proibição de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, Reforma Trabalhista e ‘teletrabalho’: diferenciando iguais para reduzir direitos. In ARAUJO, Adriane Reis de; D´AMBROSO, Marcelo José Ferlin. (Coordenadores). Democracia e Neoliberalismo: o legado da Constituição de 1988 em tempos de crise. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 331-360.

Publicado por okrost

Alguem em eterna busca.

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