Oscar Krost
Interpretar uma regra jurídica vai além de entender seu conteúdo de literalidade. Exige o entendimento prévio dos contextos normativo e social em que situada, inclusive o conceito de Direito enquanto sistema norteado pela Constituição.
A nova redação do art. 840 da CLT,1 trazida pela reforma trabalhista (Lei nº 13.467/17), gerou dúvidas à época da mudança e, prestes a completar 04 anos de vigência, segue rendendo celeumas sem fim.
A primeira leitura, ainda hoje defendida, enxerga haver a imposição à parte autora, por lisura e boa-fé, do dever de “liquidar” os pedidos. A segunda análise compreende existir apenas o dever de estimar o valor de cada pleito, em um esforço de aproximação das quantias.
Ambas as correntes não divergem sobre a intenção do Legislador em reduzir a “distância” entre pretensões e valores atribuídos às causas como um mecanismo de frear postulações excessivas, custosas às partes e ao Judiciário, ainda que não concordem quanto às causas específicas.
O nó da questão surge quando não realizada a mencionada “liquidação”, acarretando a intimação da parte para emendar a petição inicial, sob pena de extinção do feito por inépcia, com risco de o autor passar a réu, sujeitando-se à condenação ao pagamento de honorários de sucumbência em caso de procedência parcial ou improcedência do pedido ou, ainda, ter no quantum indicado um “teto” a eventual crédito reconhecido em sentença.
Devagar com o andor, pois todo cuidado é pouco.
Primeiro, lembre-se que a inicial trabalhista se trata de peça de abertura de demanda judicial proposta por trabalhador/a subordinado/a, alguém hipossuficiente, assalariado e desprovido de meios para assegurar a própria subsistência e de sua família que não a própria força produtiva. Mais do que técnica, a questão de fundo envolve reconhecer ou negar os Direitos Fundamentais de Petição e de acesso à Justiça.2
Como justificar tamanho rigor, pela escolha da interpretação mais restritiva possível, no tocante ao cálculo em um processo regido pelos Princípios da Oralidade e da Informalidade, no qual remanesce o jus postulandi3 de quem litiga por verbas alimentares?
Segundo, por questão não apenas lógica, como fática. Cabe ao empregador, a partir do instante em que empreende a atividade econômica e assume os riscos do negócio,4 documentar os acontecimentos relativos à relação de emprego, armazenando e protegendo registros. Apenas ele, desta maneira, tem condições de apurar com relativa precisão haveres não adimplidos ao empregado. Trata-se da simples e direta incidência do Princípio da Aptidão para a Prova.5
Em tese, bastaria manejar medida de produção antecipada de prova.6 Mas a realidade, ao menos em minha experiência prática, dá conta desta medida raramente ser exitosa, não produzindo qualquer resultado que não o desperdício de tempo e de recursos, dando margem até mesmo a intermináveis discussões sobre interrupção ou não dos prazos prescricionais porventura em curso.
Terceiro, ainda no campo lógico-
fático, pela existência de numerosas e diversificadas situações em que absolutamente impossível sequer estimar o valor dos pedidos, que dirá “liquidá-lo”. Como exemplos, a pretensão ao pagamento da sanção do art. 467 da CLT, atinente a haveres incontroversos. Algo só se torna incontroverso no processo depois de transcorrido o prazo para contestação, o qual só flui depois da citação, ato seguinte à postulação. Não há como antever o inconteste antes da defesa. Ações de substituição processual, nas quais sequer os efetivos beneficiários dos pedidos são identificados, são outra hipótese de impossibilidade de individualizar valores. Questões envolvendo sequelas de acidentes/ doenças e grau de insalubridade, matérias de caráter eminentemente técnico, cuja perícia é essencial à estimativa de índices e percentuais podem ser lembradas. E, por fim, as ações em que pretendida a paga de parcelas vincendas ou vencidas, estas até que dado fato, como a reintegração no emprego, efetivamente ocorra.
Quarto, por atenção ao paralelismo, equidistância e imparcialidade concretos do Juiz em relação às partes, não meramente mítica.7 Se boa-fé, precisão e objetividade são exigidas regiamente da parte autora, hipossuficiente na relação de direito material, mesmo tratamento deve ser destinado à re. Contestações específicas, indicando valores pormenorizados aos postulados, sob pena de considerar as defesas ineptas e ineficazes.
O requisito “liquidação” dos pedidos da petição inicial trabalhista está para o Direito do Trabalho assim como a maçã experimentada por Eva está para a Bíblia e a barata em que Gregor Samsa teria se transformado para “A metamorfose”. As Escrituras Sagradas mencionam “fruto proibido”, enquanto Kafka descreve o protagonista do romance como um “monstruoso inseto”. Daí em diante, versões repetidas à exaustão substituíram o sentido do texto e de seu contexto, tomando seu lugar.
Jamais deve-se deixar de primar pela harmônia ordem e proporção entre meios e fins: o Direito do Trabalho existe para humanizar a exploração do labor humano subordinado, assim como para preservar o mercado de consumo interno, enquanto que o Direito Processual do Trabalho serve para instrumentalizar a aplicação do direito material, formando um roteiro aos operadores jurídicos. Um não existe sem o outro e ambos têm por missão dar uma resposta às demandas cuja solução é buscada na Justiça do Trabalho. Sem isso, tanto a dignidade da pessoa humana, quanto os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa não passam de promessas vãs, jamais cumpridas.
1 CLT, art. 840:
Art.840 – A reclamação poderá ser escrita ou verbal.
§1o Sendo escrita, a reclamação deverá conter a designação do juízo, a qualificação das partes, a breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio, o pedido, que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu valor, a data e a assinatura do reclamante ou de seu representante.(Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
2 Constituição, art. 5º, incisos XXXIV, alínea “a”, e XXXV:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
(…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
3CLT, art. 791:
Art. 791 – Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final.
4 CLT, art. 2º:
Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
5 Para Almiro Eduardo de Almeida e Valdete Souto Severo, “a compreensão de que o Direito do trabalho possui um sistema próprio de deveres e ônus, capaz de impor uma conduta diferenciada e comprometida, por parte de seus aplicadores, representa bem mais do que mero jogo de palavras. Implica assumir uma postura diferenciada diante do processo.” (ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto Severo. A especificidade da prova no processo do trabalho: a questão dos deveres do empregador. In: Direito do Trabalho: avesso da precarização. Vol. I São Paulo: LTr, 2014, p. 223)
6CPC, art. 381:
Art. 381. A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que:
I – haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação;
II – a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito;
III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.
(…)
7 Neste sentido, a observação do Desembargador José Ernesto Manzi ao defender que a motivação das decisões judiciais servem para verificar a imparcialidade do julgador a partir do emprego de instrumentos científicos e da realização de operações lógicas no desempenho de seu ofício. (MANZI, José Ernesto. Da fundamentação das decisões judiciais civis e trabalhistas: funções, conteúdo, limites e vícios. São Paulo: LTr, 2009, p. 63)
Texto perfeito!!!!
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Acho que a pergunta certa seria o que é mais cômodo para àquele que não é imparcial?
Ora, o direito não é uma ciência exata como a matemática, para nós “tudo depende”.
Cada um interpreta a Norma jurídica como lhe convém, não é mesmo? Ainda mais para àqueles que têm o poder de decidir nossos destinos.
O que lhes parece mais conveniente? Obstacularizar o acesso à justiça para diminuir as demandas ou apenas aceitar a mera indicação do valor dos pedidos?
Eis a questão.
O sentimento que tenho enquanto advogada de trabalhador é o de quê alguns julgadores tem sido parciais, para não dizer a grande maioria.
Com o devido respeito aos que têm o poder da caneta, mas é bem mais fácil decidir algo sem muita reflexão quando se tem dinheiro no bolso.
Enquanto isso, a insegurança jurídica rola à solta, e a parte hipossuficiente fica a mercê da própria sorte, ditada por entendimentos diversos, muitas vezes injustos e que lhes causam prejuízos.
Como mencionei em depoimentos anteriores, torno a repetir, que este é um daqueles textos que te faz pensar, mexe com o interior e aflora os pensamentos, o que é maravilhoso demais pra mim.
Só tenho a agradecer pela oportunidade de ler este artigo cheio de ideias sensatas e que deveriam fazer muitos julgadores refletirem. Obrigada!
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