Oscar Krost
“Certa manhã, quando Gregor Samsa abriu os olhos, após um sonho inquieto, viu-se transformado num monstruoso inseto.”1 Assim inicia “A metamorfose” (Die Verwandlung), uma das obras mais conhecidas de Franz Kafka.2
Passado o impacto inicial, Gregor externa incômodo por ter que desempenhar o ofício de caixeiro-viajante e vontade de abandoná-lo assim que quitadas as dívidas dos pais. Planos para um futuro próximo, pois “por enquanto, o que eu tenho a fazer é me levantar porque o trem sai às cinco horas“.3
Por mais estranha que a cena possa parecer, o tom kafkiano, de normalidade absurda, impera. O irrazoável se banaliza.
O texto e seu título definem mais do que a improvável mudança física de alguém, da forma humana para a animal. Revelam um âmbito profundo da subjetividade e de suas conexões, em termos concretos e abstratos, consigo mesma e com a dos outros. Kafka nos recorda que na vida não somos, em definitivo, apenas estamos, em termos relativos, em um espaço-tempo no qual a única certeza é a constante mudança, muitas vezes involuntária.
Em pouco tempo a família Samsa acostuma-se à condição singular em que se encontra Gregor, alimentado pela irmã, enquanto os genitores mantêm-se à distância. A escolha pode também ter se dado por inúmeros fatores, dentre eles mera conveniência, pois “a mãe, deve-se dizer, quisera visitar o filho logo, mas o pai e a irmã conseguiram demovê-la do intento“.4
Entre um “tic” e um “tac” do relógio, aparentemente sem pressa alguma, o atípico se tipifica e a estranheza acaba assimilada. O espanto cede lugar ao desconforto e a vida, na medida do possível, segue um rumo. O desfecho trágico da história condiz com o enredo como um todo, importando à análise ora proposta que em nenhum momento parece haver escapatória ou opção às personagens, ainda que deixassem no ar alguma intenção de alterar o curso dos acontecimentos.
O que inseto e transformação tem a ver com a competência da Justiça do Trabalho ou a reforma da CLT promovida pela Lei no 13.467/17? Muita coisa. Vejamos.
O art. 114 da Constituição atribuía competência à Justiça do Trabalho para “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (…) e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.” A partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional no 45, em 30 de dezembro de 2004, o referido dispositivo ganhou nova redação.5
A jurisdição laboral que, em linhas gerais, contemplava o processamento e o julgamento de lides decorrentes da relação de emprego (espécie), dá lugar a contendas atinentes à relação de trabalho (gênero).
Inegável tratar-se de uma significativa alteração, não a ponto de ser comparada a uma metamorfose, nas acepções biológica ou literária-ficcional do termo. Quando muito, pode-se considerá-la uma ampliação de horizontes ou guinada paradigmática. Atente-se, contudo, não àquilo que mudou, mas ao que foi preservado em 2004: A ESSÊNCIA CONTENCIOSA DA JURISDIÇÃO, de modo que havendo pretensão resistida configurar-se-á lide e, por consequência, estará presente o objeto da jurisdictio.
A conflituosidade é um aspecto inerente à combinação capital e trabalho. O que a Constitução e a legislação fazem e, em tese, seguem fazendo, não passa de uma institucionalização do embate, deixando o espaço destinado à produção, onde acarretava perdas de diversas ordens e prejuízos ao regular giro do negócio, passando a ocupar o locus próprio, “civilizado” e criado para tanto – o Foro. Nele, um terceiro habilitado – o Juiz – resolverá as questões de modo imparcial, jamais neutro, e equidistante.
O viés contencioso marca todas as fases do processo, da cognição (incisos I a III e VI a VII) à execução (inciso VIII), inclusive ações especiais (mandados de segurança, habeas corpus e habeas data) e conflitos de competência (inciso V). Foi facultada pelo Constituinte ao Legislador a ampliação das hipóteses estabelecidas, desde que observado o eixo constitucional litigioso, como se infere do emprego da expressão “outras controvérsias” (inciso IX).
Contudo, tal particularidade não foi respeitada pela Lei no 13.467/17, conhecida por Reforma Trabalhista. Breve leitura dos arts. 8o, §3o, e 855-B da CLT6 permite entender o porquê:
Art. 8º. (…)
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§3o No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.
Art. 855-B. O processo de homologação de acordo extrajudicial terá início por petição conjunta, sendo obrigatória a representação das partes por advogado.
O art. 8o, em sua redação anterior,7 tratava das fontes do Direito do Trabalho, indicando possibilidades aos intérpretes para o preenchimento de lacunas na lei. Apontava o Direito Comum como fonte subsidiária, quando compatível com os Princípios laborais. O arts. 855-B não existia, assim como os dispositivos seguintes, sendo a conciliação um ato jurídico bilateral, consensual e endoprocessual, alcançada pela transação (concessão recíproca) sobre pontos controvertidos (res dubia).
Mais do que evidente a inobservância pelo Legislador reformista da racionalidade do sistema trabalhista, bem como dos limites dos poderes delegados pelo art. 114 da Constituição para inovar a ordem jurídica. Para além da literalidade da Lei Maior, configurou-se afronta ao cerne de sustentação e à razão de ser do próprio Direito do Trabalho: a proteção do sujeito hipossuficiente na formação, execução e extinção do contrato, pela disparidade de condições inerentes às figuras do empregado e do empregador. A iniciativa padece de vícios formais e materiais insanáveis.
Como leciona Supiot, “não há ‘eu’ possível sem uma instância garante do ‘eu’, ou, em termos jurídicos, sem uma instância garante do estado das pessoas”.8Ou seja: inviável a concretização da tutela prometida pelo Direito Material, e instrumentalizada pelo Direito Processual, sem uma jurisdição autônoma e independente que lhes corresponda. A capitis diminutio pretendida pelas alterações da CLT acima transcritas põe em xeque, diretamente, a independência do Poder Judiciário e a harmonia com o Legislativo e o Executivo e, indiretamente, a expectativa de subsistência do sujeito jurisdicionado.
Em um cenário de “pós-verdade” e de “fim da história” parece não bastar um Magistrado ou uma Magistrada “boca da lei”, sendo necessário reduzi-los à “boca muda da lei”, integrantes de um Poder desprovido de poder, figurativo e desfuncional. Como consectário, aniquila-se o controle difuso de constitucionalidade, ressignificando o Princípio da Proteção em favor de que quem não necessita de tutela.
Se a norma coletiva apresenta forma de contrato e alma de lei, segundo metáfora consagrada por Carnelutti, qual o fundamento para a interpretação e a aplicação pelo Judiciário não seguir os padrões impostos tanto aos contratos, quanto às leis?
Acordos e convenções estariam imunes ao exame jurisdicional de seu conteúdo?
As intenções parecem ser exatamente estas. Se ainda assim não forem compreendidas e assimiladas, na contramão da passividade característica da família Samsa, impõe-se fazê-lo pela observância ao Princípio da Intervenção Mínima na Autonomia da Vontade Coletiva, criado especialmente para a ocasião. Para Carlos Eduardo Oliveira Dias, a imposição desta espécie normativa pela Reforma, sem qualquer construção teórica ou amparo nas demais disposições do ordenamento, representa um “artifício grotesco (…) com a finalidade de tentar interditar a atuação dos juízes do trabalho”.9 Afirma, diante disto, que o referido Princípio simplesmente não existe no mundo jurídico.
Inexiste vontade ou negócio jurídico, individual ou coletivo, público ou privado, que se sobreponham à dignidade da pessoa humana e ao crivo judicial, diante do que prescrevem os arts. 1o, inciso III, e 5o, inciso XXXIV, da Lei Maior. Se “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5o, inciso XXXV, da Constituição), patente a inconstitucionalidade de qualquer iniciativa que busque limitar a competência da Justiça do Trabalho, no tocante ao exame do conteúdo das normas coletivas.
Em relação ao “processo” de homologação de acordo extrajudicial, não há muito o que ponderar, tendo em conta o papel pacificador de conflitos histórica e materialmente inerente ao Judiciário Trabalhista. Onde há paz, não há necessidade da intervenção externa. As partes, de forma autônoma, aparam eventuais arestas e chegam a bom termo. Acaso descumpridos ou posta em dúvida a lisura de ajustes voluntários celebrados nasce, então, a pretensão do direito de ação de acionar o Estado-Juiz.
Causa estranheza a nova “classe processual”, ainda mais do que as características descritas por Gregor ao enxergar-se como um inseto, com um ventre “grande, curvo, castanho e dividido por profundos sulcos”, com um “convexo abdômen” e inúmeras patas,10 diante de uma das bandeiras de sustentação da Reforma Trabalhista: a “desburocratização” de procedimentos.11
Neste sentido, recorde-se a revogação do art. 477, §1o, da CLT, que exigia como requisito de validade a homologação de “rescisão” de contrato com duração superior a 01 ano, pela assistência do sindicato da categoria profissional ou a presença do Ministério do Trabalho. Sindicatos e Ministério do Trabalho não são bem-vindos no momento da ruptura contratual, seja para prestar esclarecimentos ou sanar dúvidas. Em sentido diverso, o Judiciário pode ser movimentado por Advogados, o mínimo 02, como exigido pelo art. 855-B da CLT, ainda que inexistente divergência ou desentendimento.
Para tal propósito existem há 20 anos as Comissões de Conciliação Prévia, instituídas em âmbitos sindical ou empresarial, pela Lei no 9.957/00, disciplinadas pelos arts. 625-A a H, da CLT. Além delas, há câmaras de mediação e arbitragem, além de outros órgãos de composição extrajudicial em todo o país. Busca-se, na realidade, a eficácia liberatória ampla de obrigações inadimplidas pelo empregador, inclusive as sequer sedimentadas, como lesões decorrentes de acidentes ou de doenças do trabalho, naquilo que a praxe denominou “quitação total do contrato”.12 Mais uma vez, a proteção e a irrenunciabilidade são dirigidas ao pólo mais forte da relação.
Não se defende a imutabilidade dos contornos da jurisdição trabalhista, por contrária à natureza das coisas e à razão de ser do próprio Direito enquanto meio de alcançar consensos mínimos a viabilizar a vida em sociedade. Contudo, toda e qualquer mudança deve encontrar amparo nas razões de ser do próprio ramo jurídico, sendo as do campo laboral a preservação e o avanço da tutela da dignidade humana pelo trabalho, enquanto fonte de subsistência e vetor de realização das potencialidades da pessoa.
Questão de coerência entre fins e meios ou entre promessas e realidades, atentando aos valores e aos projetos constitucionais. Ao contrário do ocorrido em “A metamorfose”, em que a mudança física de Gregor se dá sem o menor aviso, causa aparente ou possibilidade de desfazimento, as iniciativas de alterar a jurisdição trabalhista apresentam ritmos e formatações próprias, dependentes do tempo e da aceitação dos Operadores e Operadoras jurídicos para atingir sua consolidação.
Desafiam interpretação e enfrentamento. Sem isto, o burlesco se normaliza em questão de dias. O esquecimento ocupa o lugar da memória e nada mais pode ser feito. Kafka, pela escrita, deixou sua contribuição. Cabe a quem recebê-la ignorar ou agir. A arte imita a vida ou também pode avisá-la sobre o nexo entre causas e consequências?
1 KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro S.A., 1971, p. 25.
2 O termo “Verwandlung” é polissêmico no idioma alemão, podendo significar transformação, sob uma conotação ampla, ou metamorfose, em sentido biológico (MICHAELIS. Dicionário Escolar Alemão: alemão-português, português-alemão. Alfred J. Keller. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2009). A diferença entre os termos é sutil, mas de relevância capaz de alterar significativamente o ponto de partida da narrativa e a forma com que leitores e leitoras recebem a história.
3KAFKA, Franz. Ob. cit. p. 28-9.
4Ob. cit. p. 80.
5 Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data , quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.
§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.
6 Embora os arts. 855-B a E da CLT disciplinem o “processo de homologação de acordo extrajudicial”, tais dispositivos se referem à jurisdição não contenciosa, também conhecida como graciosa ou voluntária, constando, inclusive, no próprio título do novo capítulo da Consolidação: “III-A – DO PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA PARA HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL”.
7 CLT, art. 8º, antes da Reforma:
Art. 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
Parágrafo único – O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.
8 SUPIOT, Alain. Homo juridicus: Ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução Maria Hermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 25 (Justiça e Direito).
9 DIAS, Carlos Eduardo Oliveira. O trabalho em movimento: estudos críticos de Direito do Trabalho. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 277-8.
10Ob. cit. p. 25.
11 As investidas contra a normatividade de proteção do trabalhador não cessam, com destaque à consulta pública feita no site da Presidência da República sobre proposta de decreto do Ministério da Economia que
“regulamenta disposições relativas à legislação trabalhista e institui o Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas e o Prêmio Nacional Trabalhista“, (Disponível em <https://www.gov.br/participamaisbrasil/decreto-legislacao-trabalhista>. Acesso em: 08 abr. 2021). Em pouco menos de 200 artigos, são tratados diversos temas de Direito Individual e Coletivo do Trabalho, em uma versão precarizante da Consolidação das Leis do Trabalho, violando a Constituição e excedendo os limites regulamentares inerentes a um decreto, espécie normativa não sujeita ao devido processo legislativo. Como percebido, a iniciativa aparenta graves vícios formais e materiais.
12 Valdete Souto Severo e Almiro Eduardo de Almeida entendem incompatível com o Direito do Trabalho, especialmente com o Princípio da Irrenunciabilidade, o reconhecimento de validade pelo Judiciário da quitação total conferida pelo trabalhador aos haveres da relação de emprego, quando decorrente de conciliação. Consideram o entendimento carente de amparo legal, advertindo que “conciliar é legal, desde que observados os limites da lide; desde que não haja renúncia”, sob pena de nulidade, pela incidência do disposto no art. 9o, da CLT (SEVERO, Valdete Souto; ALMEIDA, Almiro Eduardo. Direito do Trabalho: avesso da precarização. São Paulo: LTr, 2014, p. 193, vol. I)
Sensacional
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Excepcional abordagem, professor!!!! Como aliás é a tônica deste espaço. Sempre uma análise oportuna que traz luz aos pontos que precisam sim ser enfrentados. Ao contrário de tantos outros casos em que observamos os que têm olhos mas não enxergam, como me pareceu ser o caso explicitado na recente retrógrada decisão da 4ª Turma do TST que sujeitou a parte reclamante à condenação em honorários de sucumbência recíproca em caso de pedido de danos morais parcialmente acolhido, ignorando por completo o entendimento até então pacificado na Súmula 326, do STJ, com o necessário registro de que lá as lides em regra se prestam para partes em simetria de condições.
Nunca é demais reiterar à que se presta o princípio da proteção.
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