JURISPRUDÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS: a última palavra, no âmbito nacional, há de ser sempre a do Supremo Tribunal Federal1

Augusto César Leite de Carvalho – Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Possui doutorado em direito das relações sociais pela Universidad de Castilla la Mancha e mestrado em Direito e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Ceará. É pós-doutor em direitos humanos pela Universidad de Salamanca

https://www.conjur.com.br/2023-set-27/augusto-carvalho-ultima-palavra-sempre-stf

Nota-se, há algum tempo, uma clara tentativa de opor, ou indispor, o Tribunal Superior do Trabalho frente ao Supremo Tribunal Federal, como se movesse a algum ministro da corte trabalhista a intenção de desafiar as decisões da corte suprema, ou de não as cumprir por qualquer idiossincrática razão.

O compromisso com a tutela de direitos de minorias ou de pessoas ou grupos vulneráveis não autoriza, nem tem autorizado, o magistrado a descumprir decisões ou teses fixadas pelo Supremo Tribunal Federal que lhe pareçam, intimamente, destoar dessa régua de eticidade. É impróprio, igualmente, opor algum espasmo de ideologia libertária contra decisões do STF que, a exemplo da exarada no recente julgamento da ADI 5322 (sobre a Lei n. 13.103/2015, a “lei dos caminhoneiros”), advertiu para a “inconstitucionalidade na exclusão do tempo de trabalho efetivo do motorista profissional, quando está à disposição do empregador durante o carregamento/descarregamento de mercadorias, ou ainda durante fiscalização em barreiras fiscais ou alfandegárias, conhecido como ‘tempo de espera’”.

Ao submeter ao crivo de constitucionalidade o tema relacionado à prevalência da negociação coletiva sobre a proteção da lei, o relator, Ministro Gilmar Mendes, determinou a suspensão dos processos que tratavam da questão discutida naqueles autos da ARE 1121633/GO (não pagamento de horas de deslocamento entre casa e trabalho), mas relatou ter sobrevindo a cautela do TST que “decidiu, por maioria, suspender a tramitação de todos os processos que trata(va)m da validade de norma coletiva que limita ou restrinja direito trabalhista não assegurado pela Constituição da República”.

Conforme se lê no acórdão lavrado por mencionado relator, essa providência do TST permitiu ao STF entender que aquele tema de repercussão geral tinha abrangência maior, vale dizer: sobreviria tese do STF que o TST e toda a Justiça do Trabalho adotariam, independentemente da matéria específica (horas in itinere) discutida naquele processo. E está agora o judiciário trabalhista a aplicar, de fato, a tese ali fixada: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

Quando o STF decidiu que a terceirização da atividade principal da empresa é lícita (ADPF 324 e RE 958.252), a jurisprudência trabalhista imediatamente se ajustou a esse entendimento. Não há uma só decisão superveniente do órgão de uniformização da jurisprudência do TST (a SBDI I) que tenha, desde então, declarado ser ilícita a terceirização pelo singelo fato de ter-se dado em atividade-fim.

Ouve-se, em alguns recantos dedicados à intriga palaciana, que o TST resiste à tese fixada pelo STF quando não reconhece a licitude da terceirização em hipóteses nas quais o trabalhador supostamente terceirizado está diretamente subordinado à empresa contratante (ou tomadora dos serviços). É verdade. Mas assim sucede com o respaldo do STF, conforme se extrai de decisão do Ministro Gilmar Mendes no ARE 1397478/DF, em que o douto relator remete a decisões nesse igual sentido da Primeira Turma do STF, no ARE 1.349.118 AgR (Rel. Min. Rosa Weber, DJe 10.12.2021) e da Segunda Turma do STF, no ARE 1.280.609 AgR (Rel. Min. Edson Fachin, DJe 25.03.2021).

Além disso, estão o STF e o TST, nesse caso, agindo em obediência ao art. 4º-A, §1º, da Lei n. 6.019/1974, com a redação que lhe dera a Lei n. 13.429/2017, pois esse dispositivo impõe seja da empresa contratada (a empresa prestadora dos serviços) a incumbência de dirigir o trabalho terceirizado. Decidem também em atenção ao direito comparado, ou seja, à experiência jurídica dos países que há muito mais tempo autorizam a terceirização da atividade-fim. É o que nos revelam o professor argentino Lucas Tamagno, a professora colombiana Luisa Fernanda Rodríguez Rodríguez, o professor espanhol David Montoya Medina e o professor mexicano Luis Raúl Meza Mora, além da professora Eliana dos Santos Alves acerca da terceirização na Itália, todos na coletânea “Estudos Jurídicos 2018 – Limites da Terceirização no Direito Comparado”, da Escola Judicial do TRT da 15ª Região2.

No tema da terceirização de serviços da administração pública, debate-se ainda se cabe ao trabalhador terceirizado a prova sobre ter ou não havido a fiscalização da empresa contratada quanto ao cumprimento de suas obrigações trabalhistas, pois o ente público somente é responsabilizado se não a fiscaliza adequadamente.

O tema (ônus da prova) foi suscitado no RE 760931 ED-Terceiros/DF, no qual o relator, Ministro Luiz Fux, votava no sentido de vedar a presunção de culpa in vigilando da administração pública, o que sinalizava a atribuição ao trabalhador terceirizado do ônus de provar que não teria havido a devida fiscalização. A maioria do STF, reunido então em sua composição plenária, entendeu, porém e inicialmente, que o STF não deveria avançar nesse tema. Só então a Subseção I de Dissídios Individuais do TST o enfrentou, fixando que o ônus da prova recairia sobre a administração pública (E-RR 925-07.2016.5.05.0281, SBDI I, Rel. Min. Cláudio Brandão, DEJT 22.05.2020).

Ao atribuir ao ente público o encargo de provar que fiscalizara o cumprimento dos deveres trabalhistas pela empresa contratada, o TST esteve a endossar, aliás, o que a Ministra Cármen Lúcia ponderou durante o julgamento dos citados embargos de declaração: “[…] por uma questão de proteção ao trabalhador – que teria que, muitas vezes, produzir uma prova diabólica e não conseguia provar, é que se inverteu na jurisprudência […]”. Em janeiro de 2021, o STF voltou ao tema para reconhecer a sua repercussão geral (no RE 1298647, Tema 1118, Rel. Min. Luiz Fux) e, quando o julgar, estará decerto o TST a cumprir a tese que o STF estabelecer sobre o ônus da prova, caso o STF conclua que tal matéria é mesmo constitucional.

Em outras conspiratas, lê-se que o TST resiste a compreender que ao declarar a constitucionalidade da Lei n. 11.442/2007, o STF, na ADC 48, teria, em verdade, afirmado que a contratação do trabalhador que transporta cargas, se formalmente se der como contrato de trabalho autônomo, estará incondicionalmente a afastar o vínculo de emprego, não importando se em realidade, ou na ordem dos fatos, trata-se de trabalho subordinado, pessoal, oneroso e não-eventual, ou seja, de contrato regido pela CLT.

Embora haja a notícia de decisões monocráticas, oriundas do próprio STF, que aparentariam sublimar a forma em detrimento da realidade, como analisou a professora Ana Frazão no artigo “Até quando o STF vai virar as costas para a realidade?” (portal Jota, em 31/maio/20233), é certo que ao relatar a ADC 48, o Ministro Luís Roberto Barroso, inspirado em tese fixada pelo STF acerca da licitude da terceirização, esclareceu que a Lei n. 11.442/2007 deveria ser aplicada se presentes os requisitos nela dispostos, ou seja, “se estiverem presentes os elementos do vínculo trabalhista, não incide a Lei”.

Ao acompanhá-lo, o Ministro Alexandre de Moraes foi enfático: “[…] caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos”.

Em rigor, ambos os ministros decidiram em consonância com os artigos 9º da CLT e 167 do Código Civil, este a nos lembrar que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. Não há dúvida quanto a esses dispositivos estarem sintonizados com os valores da eticidade e da socialidade que conferem identidade ao nosso texto constitucional – ao menos não se conhece decisão de que seriam eles inconstitucionais.

Há inúmeras decisões do STF que observam, como era de se esperar, a soberania dos tribunais regionais para dizerem sobre o fato de estarem ou não presentes os elementos essenciais ao vínculo de emprego (e.g. Rcl 56098 AgR/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 04.08.2023, com remissão à Rcl 56.166- AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 7/12/2022, e à Rcl 48.317-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 01/12/2021). Mas essa temática se apresenta, por vezes, com abordagens diversas no âmbito do próprio STF.

Há, a bem dizer, decisões monocráticas oriundas do STF que atribuem à Justiça Comum competência para prover jurisdição nos casos em que trabalhadores pedem o reconhecimento de vínculo de emprego, sem embargo de o art. 43 do CPC prever (sem que dele jamais se tenha arguido a inconstitucionalidade) que se determina a competência no momento da propositura da ação, com base estritamente na natureza do pedido e causa de pedir. Também se tem conhecimento de outras decisões monocráticas que afirmam a ausência de trabalho sob subordinação, em casos nos quais os tribunais de segunda instância, instância derradeira da prova, teriam afirmado o contrário.

Ainda assim, a cassação de acórdãos dos tribunais regionais e do TST, nesses casos, malgrado possam revelar alguma oscilação interna entre órgãos fracionários do STF, não traduzem qualquer resistência da Justiça do Trabalho à jurisprudência e sobretudo aos precedentes de observância obrigatória, emanados do STF. Explica-se, porque os temas sensíveis carecem ser bem explicados.

Se é fato que cabe aos tribunais de segunda instância a última palavra em relação aos fatos da causa, também o é que aos tribunais superiores (STJ, TST, TSE e STM) compete a uniformização da jurisprudência e a tarefa de exercerem em última instância o controle de legalidade, atribuindo-se ao Supremo Tribunal Federal, nessa perspectiva, atribuir ao texto constitucional e aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil sua última e mais qualificada interpretação.

Nessa pirâmide, o TST, distinguindo-se nesse aspecto dos demais tribunais superiores, compartilha o controle de constitucionalidade com o STF apenas quanto à declaração incidental, aquela que gera efeitos restritos ao caso sob julgamento. Falta rematar: nas demandas em que o Estado brasileiro é acusado de violar ou permitir que se violem tratados internacionais de direitos humanos (due diligence), especialmente a Convenção Americana de Direitos Humanos, cabe à Corte Interamericana de Direitos Humanos dar a última palavra.

Essa distribuição de competências assume essa forma piramidal também quanto à amplitude do julgamento: ao STF não cabe realizar o controle de legalidade; ao STF e aos tribunais superiores não compete decidir sobre os fatos da causa. Tais restrições impedem, inclusive, que o STF fixe tese sobre temas não constitucionais (direta ou indiretamente) e que os tribunais superiores profiram decisões sobre aspectos puramente factuais.

E por que o TST, a quem cabe decidir por último no plano da infraconstitucional da legalidade, cumpriria decisões do STF que eventualmente não observassem regras legais de competência? A resposta é de base lógica ou formal: o TST, embora exerça em última instância o controle de legalidade (em temas relacionados ao trabalho humano), não controla a legalidade das decisões do STF – antes, presume-as legais e as cumpre, simplesmente.

Diferentes dos protozoários, todos os humanos, incluídos os juízes, têm convicções ideológicas e os valores éticos em que acreditam os inspiram na hora de interpretarem as linhas e entrelinhas da lei. Mas os juízes e juízas, não sendo contemplativos ou neutros, devem ser imparciais e, por igual, devem respeitar a hierarquia dos órgãos de jurisdição.

O Tribunal Superior do Trabalho exercita, sempre e a cada dia, o dever de observar as teses jurídicas emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, cumprindo incondicionalmente as determinações que do STF provêm. Esse diálogo institucional revela quão belo e insuperável é o Estado Democrático de Direito.

1 Texto originalmente publicado em <https://www.conjur.com.br/2023-set-27/augusto-carvalho-ultima-palavra-sempre-stf>, em 27.09.2023, ora respostado com expressa autorização do autor.

2 Disponível em <https://trt15.jus.br/sites/portal/files/fields/colecoesdotribunal_v/estudos-juridicos-e-livros/2019/limites-da-terceirizacao-no-direito-comparado.pdf>.

3 Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ate-quando-o-stf-vai-virar-as-costas-para-a-realidade-31052023&gt;.

POR QUE NÃO PRECISAMOS DA CONVENÇÃO Nº 158 DA OIT

Rosangela Rodrigues Lacerda – Procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região. Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo. Professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, CERS, UCSAL, UNIFACS e das Escolas Judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões

Silvia Teixeira do Vale – Juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região. Mestra em Direito pela UFBA. Doutora pela PUC/SP, Pós-Doutora pela Universidade de Salamanca. Professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, EMATRA5, CERS, CEJAS, UCSAL e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª, 13º e 16ª Regiões. Diretora da EMATRA5, biênio 2019/2021. Membra do Conselho editorial da Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região e da Revista Vistos etc. e do Conselho acadêmico da ENAMATRA, órgão de docência da ANAMATRA. Coordenadora acadêmica da EJUD5, biênio 2021/2023. Autora de livros e artigos jurídicos. Ex-professora substituta da UFRN

Após quase três décadas tramitando no Supremo Tribunal Federal, a ADI nº 1.625 finalmente teve o seu julgamento concluído. A Corte decidiu que o Decreto autônomo presidencial de Fernando Henrique Cardoso, número 2.100, é inconstitucional, por não ter sido precedido de autorização do Congresso Nacional.

Embora a Carta Política de 1988 não estabeleça claramente o trâmite a ser seguido para denúncias de normas internacionais, por maioria, os Ministros decidiram que se ditas normas, na forma do artigo 49, I da CRFB/88, necessitam de autorização via decreto legislativo para ingressar no ordenamento jurídico brasileiro, o mesmo procedimento deve ser observado para a devolução da norma internacional, e todo o imbróglio jurídico se iniciou quando o então Presidente da República denunciou a Convenção nº 158 da OIT à Repartição Internacional do Trabalho sem prévia autorização do Congresso Nacional, tendo o seu ato autônomo ensejado o ajuizamento da ADI nº 1.625.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter acolhido o pedido de inconstitucionalidade do referido Decreto, igualmente deixou claro que, por segurança jurídica serão consideradas válidas todas as despedidas imotivadas anteriores à publicação da Ata de julgamento, assim como também decidiu que todas as denúncias de normas internacionais, a partir de então, devem ser precedidas de autorização do Congresso Nacional. Se o ato de ratificação é complexo para fazer ingressar norma internacional no ordenamento jurídico brasileiro, não menos complexo deve sê-lo para devolver, diante do princípio da simetria.

Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, porém, nada muda, vez que o Decreto presidencial foi considerado válido, por segurança jurídica, fazendo valer também a denúncia da Convenção nº 158 da OIT e, com isso, o Brasil permanece sem norma específica tratante sobre a necessidade de motivação das despedidas, sejam elas individuais, plúrimas ou coletivas.

Ao revés, o artigo 477-A da CLT prevê a possibilidade de os empregadores praticarem denúncias contratuais vazias, mesmo que tais sejam plúrimas ou coletivas, norma que no sentir destas articulistas esvazia por completo o artigo 7º, I da Carta Política de 1988, padecendo de total inconstitucionalidade. Isso por que o aludido artigo, ao garantir aos trabalhadores urbanos e rurais proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, já estabelece norma de alta densidade normativa, remetendo ao exercício do Estado-Legislador a elaboração de Lei Complementar, que não poderá se distanciar do direcionamento já traçado na Lei Maior, qual seja: a proteção contra a despedida arbitrária, sendo esta entendida como a que não se funda em motivo técnico, econômico, disciplinar ou financeiro (artigos 165 e 510-D da CLT). Ou seja, algum motivo para a despedida há de ter e este deverá ser revelado, sendo certo que toda denúncia contratual vazia é alheia à Constituição da República.

Não obstante a Convenção nº 158 da OIT e a primeira parte do artigo 7º, I da CRFB, a própria Lei Maior já traz em seu texto original a necessidade de observância do devido processo legal, sendo possível se extrair da garantia fundamental aludida a necessidade de motivação dos atos punitivos, bem assim a observância do contraditório e da ampla defesa.

Nas palavras da Ministra Carmen Lúcia, o devido processo legal é princípio basilar de qualquer Estado Democrático de Direito e entre nós está previsto no artigo 5º, LIV da CRFB/88, sendo um conjunto de elementos jurídicos garantidores de direitos fundamentais, como: “a) direito de ser ouvido; b) direito ao oferecimento e produção de provas; c) direito a uma decisão fundamentada”1.

Estranho se invocar uma garantia fundamental originalmente pensada para a defesa do cidadão frente ao Estado? Pode parecer que sim, mas a doutrina civilista há décadas já vem garantindo a efetividade do devido processo legal nas relações entre particulares. Isso ocorre, principalmente, por dois motivos: i) a referida cláusula é garantia constitucional fundamental e, como tal, é de observância obrigatória em todos os setores sociais, pois todo o aparato jusfundamental estabelecido na Constituição possui dimensão objetiva e efeito irradiante; ii) as relações privadas não podem servir de refúgio à penetração dos Direitos Fundamentais, sobretudo quando se tratam de pactuações eivadas de grande desequilíbrio entre as partes envolvidas, diante da existência de poder social, como ocorre na relação de emprego.

Apenas para citar algumas hipóteses de observância do devido processo legal pela legislação, já amadurecida e alterada por força de doutrina anterior, recorde-se que o art. 57 do Código Civil prevê expressamente que o associado em risco de exclusão tem direito a tal garantia processual, nos termos do estatuto, consagrando a Lei o que já vinha sendo feito para jurisprudência de Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil e também pela jurisprudência do Supremo Tribunal federal:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. Recurso Ordinário n. 201819, 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Brasília, 11 de outubro de 2005. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 29 mai 2023.

Colhe-se, ainda, da aludida decisão, que o caráter público da atividade desenvolvida pela União Brasileira de Compositores e a dependência do vínculo associativo para o livre exercício profissional de seus sócios justificam a aplicação direta dos Direitos Fundamentais, máxime o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, demonstrando a Suprema Corte que quanto maior o poder privado, maior deve se a aplicação das normas jusfundamentais na relação particular.

O artigo 1.085 o Código Civil, por seu turno, estabelece o procedimento para exclusão de sócio minoritário das sociedades limitadas, dispondo expressamente que somente poderá se dar a pena capital por ato de “inegável gravidade”, devidamente apurado em assembleia convocada com tal fim, desde que o estatuto respectivo haja previsto a exclusão por justa causa, sendo, em todo caso, necessária a prévia ciência do acusado em tempo hábil, para que este possa comparecer à assembleia e apresentar defesa.

Em relação às sociedades cooperativas, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (RE n. 158.215-RS) já possui julgado paradigmático, cuja relatoria coube ao Ministro Marco Aurélio de Melo, decisão esta sempre apontada quando se fala em aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, como sendo a pioneira nesse sentido. Veja-se:

DEFESA – DEVIDO PROCESSO LEGAL – INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS – EXAME – LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito – o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA – EXCLUSÃO DE ASSOCIADO – CARÁTER PUNITIVO – DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembleia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa”2.

No que diz respeito às relações condominiais, o art. 1.336, I do Código Civil elaborou um sistema de aplicação de penalidade de forma graduada, sendo certo que se o condômino, praticante dos atos previstos como faltas na convenção condominial, pode ser punido, de acordo com a forma posta no ferido dispositivo legal, penalidade a ser aplicada, logicamente, pelo próprio condomínio.

A Lei Civil não traz qualquer previsão acerca da possibilidade de outras sanções que não as pecuniárias já legalmente previstas, como a restrição de áreas comuns, ou até a expulsão do condômino.

No entanto, tanto a doutrina3 quanto a jurisprudência4 têm se inclinado sobre a necessidade de aplicação do devido processo legal – principalmente a necessidade de se apresentar uma justificativa para o ato – quando o condomínio desejar aplicar penalidades não pecuniárias, devidamente previstas na norma convencional.

O Enunciado n. 92 do Conselho da Justiça Federal enfaticamente estabelece: “as sanções do CC 1.337 não podem ser aplicadas sem que se garanta direito de defesa ao condômino nocivo”.

Ora, se até as normas civis, que têm como paradigma a plena igualdade das partes, consagram o dever de motivação nas entidades privadas quando estas desejam aplicar penalidades aos seus componentes, com muito mais razão tal dever se impõe na relação de emprego, quando o empregador deseja a dispensa do empregado.

Isso ocorre porque a relação de emprego é eivada de forte poder social, sendo essa peculiaridade o principal motivo da observância dos assim denominados direitos laborais inespecíficos, como o devido processo legal e seus corolários, o dever de informação, o dever de motivação das decisões, o contraditório e a possibilidade de se defender de algo que se está sendo acusado.

1 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Devido processo legal. Revista de Informação Legislativa, ano 34, n. 136, 1997, p. 15.

2 DJ de 07/06/1996. Disponível em: www.stf.gov.br, acessado em 29 mai 2023.

3 Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Direitos Reais. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 299-307.

4 É o que se extrai da decisão emanada do TJSP: “Medida cautelar – Direito de uso do salão de festas do condomínio obstado ao condômino inadimplente -Inadmissibilidade – Imposição injustificada de restrição ao uso das áreas comuns em decorrência da inadimplência – Violação ao direito de propriedade – Discussão da dívida em regular ação de cobrança e em consignatória, ambas em trâmite – Sentença mantida – Improvida a irresignação recursal (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível Nº 0150356-03.2006.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Privado. Relator: Luiz Ambra. São Paulo, 04/07/2011. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19978391/apelacao-apl-1503560320068260000-sp-0150356-0320068260000-tjsp. Acesso em 29 mai 2023).

PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E OS IMPACTOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: PRINCÍPIOS, APLICAÇÕES E CRÍTICA – RESENHA

Oscar Krost

Lei Geral de Proteção de Dados, Direito Fundamental assegurado pelo art. 5o, inciso LXXIX,1 da Constituição, sociedade global em rede.

Temas conexos, complexos e, de certo modo, “reconvexos”, lembrando da célebre lição de Caetano Veloso. Material sobre cada um deles existe em profusão no mercado editorial, como poucas vezes se viu em relação a outros eixos, com maior ou menor profundidade e de reconhecida qualidade.

Nenhum, contudo, da envergadura e com a completude de Proteção de dados pessoais e os impactos nas relações de trabalho: princípios, aplicações e crítica (Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2023),2 do Magistrado, Professor e Jurista Guilherme Guimarães Feliciano (TRT15/USP).

Ao longo de 285 páginas, agregadas em 05 capítulos, o autor discorre com clareza, técnica e elegância, sem abdicar por uma linha sequer do olhar crítico sobre absolutamente todos os aspectos que envolvem a tutela de dados pessoais. Antecedentes históricos, Direito Comparado, processo legislativo, Princípios, precedentes judiciais, doutrinas nacional e estrangeiras e textos normativos: nada escapa à leitura de Feliciano, sequer controvérsias espinhosas e brevemente tratadas por estudiosas e estudiosos, a exemplo da aplicação ou não da LGPD à relação de emprego em âmbito doméstico (p. 147) e o porquê de seu posicionamento.

Define ao diferenciar com precisão conceitos normalmente confundidos, como dado, informação e conhecimento, com singular praticidade, ao afirmar que “os dados são a matéria-prima da informação, obtenível a partir da estruturação/organização dos próprios dados; e a informação é a matéria-prima do conhecimento, obtenível a partir da reflexão crítica lançada sobre a própria informação”, e conclui: “uma informação converte-se em conhecimento, portanto, quando se logra conectá-la a outras informações, avaliando-a (s) e entendendo seu (s) significado (s) no interior de um contexto específico” (pp. 84-85).

Com prefácio do Ministro Cláudio Brandão (TST) e prólogo do Professor Mário Garmendia Arigón (Decano da Facultad de Derecho de CLAEH/Uruguai) o texto se apresenta como um dos grandes títulos sobre a proteção de dados para além da LGPD no campo juslaboral. Integra seleto rol de obras essenciais a quem pretende compreender o verdadeiro significado tutela da pessoa natural no século XXI em termos de dados pessoais.

Parabéns ao autor, à editora e aos demais sujeitos envolvidos neste magnífico projeto, a quem agradeço em nome de tod@s @s que se dedicam ao estudo, à reflexão e ao debate a respeito da temática.

1Constituição, art. 5º, inciso LXXIX:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LXXIX – é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022)

2 Ficha da editora disponível em <https://www.livrariart.com.br/protecao-de-dados-pessoais-e-os-impactos-nas-relacoes-de-trabalho/p?gclid=Cj0KCQjwusunBhCYARIsAFBsUP9yIBFeJ6-HoKXFOYb6Z0ExTHai-kC6-Cb9unrM5gSj6eqhaZF4vosaAoklEALw_wcB>. Acesso em: 02 set. 2023.

TRABALHO PRESTADO EM CONDIÇÕES INSALUBRES E PERIGOSAS: POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE ADICIONAIS 1

Oscar Krost – Professor Substituto – Departamento de Direito Econômico e do Trabalho da Faculdade de Direito da UFRGS

Não devemos ser pessimistas a ponto de nos abandonarmos ao desespero, mas também não devemos ser tão otimistas que nos tornemos presunçosos”. Norberto Bobbio2

1. Introdução.

Diante dos valores que servem de base à Carta Política de 1988, dentre os quais se encontram o bem-estar e o desenvolvimento, em decorrência de sua supremacia no ordenamento,3 impõe-se uma verdadeira releitura da função social dos contratos, mais especificamente dos deveres do empregador, até bem pouco adstritos ao mero pagamento de salários.

Como espécie de efeito anexo do próprio poder diretivo do organizador do empreendimento econômico, exsurgem também algumas obrigações, merecendo destaque a proteção à saúde de seus empregados, justamente pelo envolvimento destes nos riscos físicos e psíquicos imanentes à brutalidade que reveste todo processo produtivo, em especial o fabril.4

Sob tal perspectiva, objetiva o presente ensaio a realização de um apreço crítico acerca da possibilidade da percepção cumulativa de dois ou mais adicionais de insalubridade ou de um adicional de insalubridade de forma concomitante a outro de periculosidade, em casos de exposição do trabalhador a mais de um fato gerador nocivo à saúde ou de apenas um, porém aliado a outro que represente risco à vida.

Para tanto, serão examinados o conceito de saúde, a tutela normativa a esta dispensada, culminando com o estudo dos adicionais de remuneração no Direito do Trabalho Pátrio, sua natureza jurídica e hipóteses legais, lançando mão de textos normativos e doutrinários, além de precedentes jurisprudenciais.

2. Saúde do Trabalhador. Tutelas constitucional e infraconstitucional.

O vocábulo saúde deriva do latim salus ou salutis, significando o estado habitual de equilíbrio do organismo5 ou simplesmente o “estado de são”.6 Enquanto bem jurídico maior titulado pela pessoa humana, ao lado da vida e da liberdade, a saúde logrou especial atenção do Legislador, em sedes constitucional e infraconstitucional.

Pela Carta de 1988 foi alçada a Direito Social de todos e dever do Estado, conforme dicção de seus arts. 6º, caput, 196 e, ainda, por via indireta, obteve status de fundamento do Estado Democrático de Direito, como consectário dos preceitos da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, previstos em seu art. 1º, incisos III e IV.

Especificamente na seara juslaboralista, restou positivada a garantia dos trabalhadores urbanos e rurais à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio da publicação de normas de saúde, higiene e segurança, juntamente com o direito à percepção de adicionais de remuneração para atividades reputadas penosas, insalubres ou perigosas, nos termos do art. 7º, caput e incisos XXII e XXIII, também da Lei Maior.

Em nível infraconstitucional, com origem supranacional, merecem destaque as Convenções nº 148, 155 e 161 da OIT, ratificadas pelo país e internalizadas pelos Decretos nº 93.413/86, 1.254/94 e 127/91, respectivamente, que dispõem sobre a proteção dos trabalhadores contra os riscos profissionais, normas gerais de segurança, saúde e meio ambiente do trabalho, além de serviços ligados à saúde no trabalho.

De procedência nacional, refiram-se, dentre outras, as regras da própria Consolidação das Leis do Trabalho, Título II, em seu Capítulo V, intitulado “Da Segurança e da Medicina do Trabalho”, arts. 154/223 e a Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego nº 3.214/78, composta por 31 Normas Regulamentares, conhecidas por “NR´s”.

3. Adicionais de Remuneração. Conceito, natureza jurídica e hipóteses legais.

A proteção à saúde do trabalhador, como restou evidenciado, compõe-se por políticas legislativas que almejam as preservação das condições consideradas normais de trabalho, dentro de um patamar mínimo que assegure o completo “bem-estar físico, mental e social” do sujeito subordinado,7 pela adoção de medidas profiláticas e, ainda, pela estipulação, também por lei, do direito à percepção de parcelas pecuniárias, nominadas adicionais, assim entendida “a contraprestação específica do trabalho penoso, perigoso ou insalubre”.8

A natureza jurídicade salário sob condição dos adicionais de penosidade, periculosidade e insalubridade, atribuída pelo art. 7º, inciso XXIII, da Constituição, lhes confere um caráter precário, sendo devidos tão-somente durante o lapso pelo qual perdurar a situação de anormalidade, ou seja, de maior desgaste físico do trabalhador no desenvolvimento da atividade produtiva, correspondente a um fato gerador lesivo específico.

Os adicionais em questão se apresentam sob as formas de horas extras, adicional noturno e adicional de transferência,em atividades penosas (arts. 7º, incisos IX, XVI e XXIII, da Constituição e 61, 73 e 469 da CLT), adicional de insalubridade, em situações de exposição a agentes nocivos à saúde (arts. 7º, inciso XXIII, da Constituição, 189 e seguintes da CLT e Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego nº 3.214/78, NR 15) e adicional de periculosidade, para hipóteses de risco à vida (arts. 7º, inciso XXIII, da Constituição, 193 e seguintes da CLT, Lei nº 7.369/85, Decreto nº 93.412/86 e Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego nº 3.214/78, NR´s 16, 19 e 20).

4. Cumulação de Adicionais. Ocorrência concomitante de mais de um fato gerador.

Em que pese estar o pagamento de dado adicional de remuneração vinculado diretamente à ocorrência de um fato gerador particular, nem sempre que verificada a hipótese de incidência prevista na norma legal constatar-se-á a produção de suas conseqüências jurídicas.

Tal conclusão, aparentemente contraditória, tem amparo em pacificados entendimentos doutrinário9 e jurisprudencial10 de que indevida a paga concomitante dos adicionais de insalubridade e de periculosidade aos trabalhadores que se exponham no desenvolvimento de suas atividades de forma simultânea à ação de dois ou mais agentes insalubres ou de apenas um, desde que simultaneamente a outro que possa representar risco à vida, com fundamento na exegese do art. 193, §2º, da CLT combinado com a NR 15, item 15.3, da Portaria Ministerial 3.214/78, que, respectivamente, prescrevem:

Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado.

(…)

§2º. O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido”.

15.3 – No caso de incidência de mais de um fator de insalubridade, será apenas considerado o de grau mais elevado, para efeito de acréscimo salarial, sendo vedada a percepção cumulativa”.

Com efeito, não há como comungar de tal posicionamento, ainda que de consenso e sustentado por representativa maioria, por contrário à idéia de Direito enquanto sistema de cunho garantista, composto por dispositivos harmônicos e orientados a uma dada finalidade.

Neste particular, cumpre recordar que a Constituição, na condição norte do arcabouço normativo, em seu art. 7º, inciso XXIII, assegurou expressamente aos trabalhadores o direito à percepção de adicionais de remuneração, arrolados de modo exemplificativo, quando desempenhadas atividades penosas, insalubres ou perigosas, disposição que deve ser examinada em conjunto com os Princípios que regem o ordenamento, em especial o da Máxima Efetividade ou da Eficiência, pelo qual “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê”,11e não o contrário, como há muito vem ocorrendo.

Defendendo uma visão renovadora, em resgate ao escopo do Constituinte Originário, que erigiu a saúde a Direito Social de todos e dever do Estado, merecem destaque as abalizadas opiniões de Sebastião Geraldo de Oliveira e Jorge Luis Souto Maior, que sustentam, respectivamente:

A regra geral é que o trabalhador receba cumulativamente os adicionais, para compensar separadamente cada condição adversa. Assim, se o empregado trabalhar à noite em sobrejornada receberá o adicional das horas extras juntamente com o adicional noturno; se for transferido e trabalhar em local perigoso receberá cumulativamente os adicionais de transferência e de periculosidade etc.

No entanto, se o trabalhador estiver exposto, simultaneamente, a mais de um agente insalubre, receberá o adicional de insalubridade apenas de um deles, isso porque a NR-15 item 3 da Portaria 3.214/78 vedou a percepção cumulativa, determinando que seja considerado somente o agente de grau mais elevado.

(…)

Ora, se o trabalhador estiver exposto a um, a alguns ou a todos os agentes, receberá somente um adicional ?

Não há razão biológica, nem lógica e muito menos jurídica para tal vedação. Em termos biológicos, está comprovado que a exposição simultânea a mais de um agente agressivo reduz a resistência do trabalhador, agravando-se ainda mais a situação pelo efeito sinérgico das agressões, isto é, a presença de mais de um agente insalubre além de somar, em muitas circunstâncias, multiplica os danos à saúde.

(…)

Também não é lógico nem razoável conferir apenas um adicional na exposição simultânea, fugindo da regra básica de atribuir reparação distinta para cada dano. Um trabalhador, por exemplo, exposto a excesso de ruído (com prejuízo para a audição) e à poeira de sílica (que afeta o sistema respiratório) só recebe o adicional por uma das agressões. Esta regra, aliás, desestimula o empresário a melhorar o ambiente de trabalho, porque tendo um agente insalubre, poderá ter dois, três ou vários outros que o desembolso será sempre o mesmo.

Pelo enfoque jurídico, observa-se que o item 15.3 da NR-15 mencionada não tem validade porque extrapola os limites da lei instituidora da vantagem. Não pode uma simples portaria, ato administrativo que é, limitar o alcance da fonte normativa primária da vantagem, no caso os arts. 189 e 192 da CLT. Se a lei não vedou a percepção cumulativa em decorrência da exposição simultânea que prejudica órgãos distintos do trabalhador, não pode a portaria restringir a abrangência da norma”.12

Ainda, a respeito da saúde do trabalhador, de grande perspicácia a observação de Sebastião Geraldo de Oliveira no sentido de que o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante, no que se refere à impossibilidade de recebimento de mais de um adicional, por acumulação de agentes agressivos no ambiente de trabalho, não pode prevalecer. Com efeito, a Convenção 148 da OIT, ratificada pelo Brasil, com vigência desde outubro de 1986, dispõe que os critérios e limites de exposição deverão ser fixados em consideração a ‘qualquer aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho’ (art. 8.3). Além disso, conforme lembra este autor, a Constituição da República estabeleceu a regra de que se devem reduzir os riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII) e a postura jurisprudencial e doutrinária não incentiva a atitude empresarial neste sentido.

(…)

Frise-se, ainda, neste assunto, a disposição do art. 11, alínea b, da Convenção 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, e com vigência interna desde setembro de 1994: ‘…deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes’. Com isso, não tem aplicabilidade, também, a regra do §2º do art. 193 da CLT, que impede a acumulação dos adicionais de insalubridade e de periculosidade”.13

No plano jurisprudencial, refiram-se os esparsos, mas não menos relevantes precedentes, em contraste com o pacífico exame que vem sendo feito sobre a matéria, como se pode vislumbrar pelo apreço dos seguintes arestos:

EMENTA: Apurado pelo laudo pericial a existência de dois agentes insalubres é devido o pagamento dos adicionais correspondentes, cumulativamente, vez que também são multiplicados os riscos à saúde do obreiro. A Portaria que aprovou as normas regulamentadoras do adicional de insalubridade, proibindo a acumulação de mais de um agente insalubre, excedeu de sua competência, porque estabelece uma restrição a direito não prevista na lei. Por outro lado, o pagamento de apenas um adicional, quanto são dois ou mais os agentes insalubres, incentiva a manutenção de um ambiente de trabalho agressivo à saúde do trabalhador. Recurso provido, para deferir ao reclamante o pagamento cumulativo, referente aos dois agentes insalubres existentes no local do trabalho”. (Processo nº 6530/93 – RO, TRT da 3ª Região, Relator Juiz Abel Nunes da Cunha, 3ª Turma, Publicado em 07/06/1994)

EMENTA: PERICULOSIDADE – PAGAMENTO PROPORCIONAL – NORMA COLETIVA – O pagamento proporcional do adicional de periculosidade, apesar de contrariar jurisprudência pacificada a respeito, foi autorizado por norma coletiva que também prevê a cumulação dos adicionais de periculosidade e insalubridade. Em razão do princípio do conglobamento, norteador do instituto da negociação coletiva, as partes sempre fazem concessões recíprocas para se chegar a um denominador comum. Assim, cada vantagem, cada conquista obtida, quase sempre implica renúncia a outros direitos. Dentro dessa sistemática, é perfeitamente válida a transação efetivada, não se podendo presumir a ocorrência de fraude. Entendimento diverso importaria numa deturpação da intenção que orientou a negociação e poderia desestimular e até inibir ajustes futuros, em prejuízo do próprio hipossuficiente que ficaria privado de obter quaisquer benefícios não previstos na legislação vigente”. (Processo nº 18595/98 – RO, TRT da 3ª Região, Relatora Juíza Maria Laura Franco Lima de Faria, 3ª Turma, Publicado em 20/07/1999)

Ademais, o próprio Direito Comum, fonte subsidiária da Normatividade Trabalhista, pelos arts. 421 e 944 do Código Civil, determina a observância de alguns postulados em matéria obrigacional, como o da “função social do contrato” e daproporcionalidade da reparação por prejuízos causados, visto que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, o que não vem sendo ponderado pelos juslaboralistas, em face da interpretação do art. 193, §2º, da CLT combinado com a NR 15, item 15.3, da Portaria Ministerial 3.214/78, de forma contrária aos trabalhadores e à sua saúde. Sendo múltiplos os agentes nocivos e de risco, múltiplas também devem ser suas compensações pecuniárias.

A fim de promover a instauração do debate sobre o tema, cumpre questionar: qual o fundamento fático capaz de amparar a aceitação pela jurisprudência do pagamento cumulativo dos adicionais de insalubridade ou de periculosidade com os de risco de vida ou de penosidade,14 e não entre dois adicionais de insalubridade ou de um de insalubridade e outro de periculosidade, considerando que todos possuem mesma natureza jurídica ?

Diante de uma matéria de tamanha relevância, acalentadoras se mostram as palavras do Eminente Ministro Eros Roberto Grau, definindo o caráter dinâmico do Direito:

O direito é um organismo vivo, peculiar porém, porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é dinamismo”.15

Premente que os atores do cenário jurídico, seguindo o exemplo do C. TST, que em maio último procedeu extensa e louvável revisão de suas Súmulas e Orientações Jurisprudenciais,16 comecem a questionar e a criticar entendimentos há muito pacificados, mas que não mais retratam o ideário do sistema jurídico vigente, em seu sentido teleológico e constitucional, em manifesto anacronismo.

5. Conclusão.

Em um ordenamento jurídico como o brasileiro, em que a saúde foi alçada a Direito Social, se apresentam como contraditórios a idéia de sistema e os entendimentos doutrinário e jurisprudencial vigentes, os quais rechaçam a possibilidade da percepção cumulativa de dois ou mais adicionais de insalubridade ou de um adicional de insalubridade de forma concomitante a outro de periculosidade, na hipótese de exposição do trabalhador a mais de um fato gerador nocivo à saúde ou de apenas um, quando aliado a outro que represente risco à vida.

Sendo múltiplos os agentes nocivos e de risco, múltiplas também devem ser suas compensações pecuniárias.

Por força do aspecto dinâmico do Direito, e em decorrência das transformações pelas quais diariamente passam os fatos da vida, premente se apresenta uma revisão crítica do tratamento até então despendido à matéria, a fim de que sejam reavaliadas posições até então tidas por pacíficas, sob risco de serem mantidos como dogmas entendimentos anacrônicos e dissociados de uma realidade social, em prejuízo aos destinatários das regras protetivas.

6. Referências bibliográficas.

* BOBBIO, Norberto. “A Era dos Direitos”. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

* CAMINO, Carmen. “Direito Individual do Trabalho”. Porto Alegre: Síntese, 1999.

* CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Direito Constitucional”, Coimbra: Almedina, 1998.

* GRAU, Eros Roberto.“Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito”. São Paulo: Malheiros, 2002.

* MARANHÃO, Délio. SÜSSEKIND, Arnaldo e VIANNA, Segadas. “Instituições de Direito do Trabalho”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.

* MORAES FILHO, Evaristo de. MORAES, Antônio Carlos Flores de. “Introdução ao Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 1995.

* OLEA, Manuel Alonso. “Derecho Del Trabajo”, Madrid: Universidad de Madrid – Facultad de Derecho – Seccion de Publicaciones, 1980.

* OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. “Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador”. São Paulo: LTr, 1996.

* SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social”. São Paulo: LTr, 2000.

* “Grande Enciclopédia Larousse Cultural”. São Paulo: Nova Cultural, 1995, t. 21.

1 Texto publicado originalmente In: Revista Justiça do Trabalho. Porto Alegre: HS Editora, nº 247, julho/2004, p. 65-72, aqui reproduzido, sem correções ou atualizações, por ocasião do Curso “Saúde e segurança no trabalho: descomplicando as NRs”, promovido pela Escola Superior da Advocacia, OAB subseção São Paulo (ESA/SP) entre os dias 07 e 09.08.2023, ministrado pelas Professoras Viviane Vidigal e Mariana Varejão, juntamente com o Professor Oscar Krost, na modalidade online.

2 In “A Era dos Direitos”. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 45.

3 A este respeito destaque-se o entendimento de vanguarda do insigne constitucionalista lusitano J. J. Gomes Canotilho, no sentido de que o vértice da pirâmide representativa do ordenamento jurídico, idealizada por Kelsen, não mais se encontra ocupado com exclusividade pela Constituição, a qual passa a compartilhar tal espaço com outros preceitos, nominados de “ordenamentos superiores”, a saber: ordenamento do direito constitucional, ordenamento do direito internacional e ordenamento do direito comunitário, “cuja articulação oferece inequívocas dificuldades, sobretudo quando qualquer desses ordenamentos disputa a supremacia normativa ou, pelo menos, a aplicação preferente das suas normas e princípios. (In “Direito Constitucional”, Coimbra: Almedina, 1998, p. 644)

4 Sobre a matéria, pertinente o magistério de Manuel Alonso Olea: “El deber de protección es fundamentalmente una consecuencia obligada del poder de dirección; si el empresario puede dar órdenes en cuanto al tiempo, el lugar y el modo de la prestación del trabajador, y estas órdenes han de ser obedecidas puesto que a su incumplimiento acompaña una sanción, le es a él exigible como deber procurar que tales órdenes no sean nocivas para el trabajador y que éste resulte indemne tras su cumplimiento (…)” (In “Derecho Del Trabajo”, Madrid: Universidad de Madrid – Facultad de Derecho – Seccion de Publicaciones, 1980, p. 255)

5 In “Grande Enciclopédia Larousse Cultural”. São Paulo: Nova Cultural, 1995, t. 21, p. 5276.

6 OLIVEIRA, Sebastião de. “Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador” São Paulo: LTr, 1996, p. 67.

7 Conceito de saúde cunhado pela Organização Mundial da Saúde – OMS, em 1946, em seu documento de constituição (In “Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador” São Paulo: LTr, 1996, p. 68)

8 Conceito de Carmen Camino In “Direito Individual do Trabalho”. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 196 et seq.

9 Neste sentido as opiniões de Arnaldo Süssekind e Antônio Carlos Flores de Moraes, respectivamente: “Se o empregado fizer jus, pela execução de um mesmo trabalho, a mais de um adicional, é óbvio que terá direito a acumular tantos suplementos salariais quantas forem as hipóteses configuradas, subordinadoras do seu pagamento; mas em se tratando de trabalho insalubre e com inflamáveis, o trabalhador deverá optar entre os respectivos adicionais, como estabelece a lei”. (In “Instituições de Direito do Trabalho”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971, p. 361) “Sendo a atividade do empregado considerada perigosa e insalubre, poderá ele optar pelo adicional que melhor lhe convier. Em qualquer caso não poderá haver acumulação (…)” (In “Introdução ao Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 1995, p. 530).

10 O C. TST há muito se posicionou em tal direção, consoante se constata do exame dos seguintes precedentes: E-RR nº 496.019/1998, Publicado em 12/09/2003, Relator Ministro João Batista Brito Pereira, RR nº 473.888/1998, Publicado em 11/10/2002, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi e RR nº 576737/1999, Publicado em 22/03/2002, Relator Ministro Francisco Fausto.

11 CANOTILHO. Ob. cit. p. 1149.

12 Ob. cit. p. 220 et seq.

13 In “O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social”. São Paulo: LTr, 2000, p. 348 et seq.

14 O C. TST sedimentou entendimento neste sentido, nos termos dos seguintes precedentes: RR nº 576737/1999, Publicado em 22/03/2002, Relator Ministro Francisco Fausto e RR nº 396378/1997, Publicado em 02/03/2001, Relator Ministro Antônio José de Barros Levenhagen. Em mesmo sentido se posiciona o TRT da 4ª Região, consoante se depreende do exame dos arestos que seguem: RO nº 01646.521/96-0, Publicado em 10/01/2000, Relator Juiz Joni Alberto Matte, REO/RO nº 01427.020/96-5, Publicado em 10/05/1999, Relatora Juíza Rosa Maria Weber Candiota da Rosa e RO/RA nº 00428.831/96-6, Publicado em 10/08/1998, Relatora Juíza Jane Alice de Azevedo Machado.

15 “Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito”. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 49.

16 Sobre o assunto, ver Resolução nº 129 do TST, publicada no DJU de 20 de abril de 2005.

PARA PEDRO: NUNCA SERÁ SÓ FUTEBOL

Oscar Krost

Final de julho, retorno das férias escolares, Copa do Mundo de Futebol Feminino.

Campeonato brasileiro de futebol da série A chegando ao fim do primeiro turno, Copa Libertadores entrando nas oitavas de final e o fim (do ano) se anunciando.

Manchetes nas redes dão conta:

Preparador do Flamengo agrediu Pedro ao ver jogador mexendo no celular”1

Soco em Pedro, do Flamengo: entenda em cinco pontos como foi a agressão”2

Três tapas e um soco’: veja como ficou boca de Pedro após agressão de preparador do Flamengo”3

Tudo isso e um tanto mais em pouco mais de de 24h. A internet trata do caso como o maior acontecimento do final de semana.

O agressor emitiu uma nota pública na qual reconhece o excesso, se dizendo chateado e incapaz de voltar no tempo para desfazer o mal. Pede desculpas não só ao atleta, mas aos colegas (distinguindo um dos outros), aos trabalhadores e ao Clube de Regatas Flamengo.4

O que mais chama a atenção é a justificativa apresentada ao final do texto:

A alta competição geralmente tem coisas que nos fazem mal. Situações de alto estresse que nos fazem reagir e pensar mal. Não pretendo situar esse contexto como uma desculpa, mas como uma explicação.”

O mundo do trabalho sendo cada vez mais do trabalho e menos do espetáculo.

Há rumores nas redes e em grupos de WhatsApp que desde a chegada do atual técnico do clube, Pedro, eleito melhor jogador da América em 2022 e convocado para a Seleção Brasileira, não faria parte dos planos por não se enquadrar em um perfil de preferência do treinador.

Nenhum problema, bastando que a diretoria da instituição tivesse ciência e os envolvidos tomassem uma decisão de comum acordo. Afinal, a despeito das paixões, a relação é contratual.

O que se viu, entretanto, segundo relatos e versões, premissas que adoto apenas para debater o caso em tese, foi o técnico não escalar o atleta para as partidas, o deixando no banco e o criticando publicamente. Hostilidade, pequenas violências e mal-estar. Iniciou um tratamento chamado no futebol de “fritura”. No meio trabalhista, a situação caracteriza a prática de assédio moral, pela prática de sucessivas ações visando fazer o trabalhador se demitir como medida extrema.

Pedro chegou a denunciar no “tribunal da internet” que estaria passando por “covardia psicológica”.5E não se diga que por contar com vencimentos milionários, profissionais do esporte devem se submeter a tudo. Definitivamente, não. São heróis, ídolos e novos ricos. Porém, acima de tudo, seres humanos e, nesta condição, dotados de dignidade e merecedores de respeito.

Questão polêmica, complexa e, pelos holofotes virtuais e envolvimento de milhões de consumidores-torcedores da nação rubro-negra, de enfrentamento inevitável. Mas não para por aí.

Como não poderia deixar de ser, a “banalização do mal” e a normalização do absurdo trazem novos dados: o preparador físico não pode ser punido pelo clube, embora trabalhe com pessoalidade, não-eventualidade, a título oneroso, subordinado (sob dependência) e em atividade-fim da instituição por um único motivo: não é empregado. Isso mesmo, temos uma instituição desportiva profissional cujo orçamento anual beira R$1.000.000.0006 e um dos profissionais mais importantes, ligado à atividade-fim é…”terceirizado”!!!7

A história iniciada como uma narrativa de ação e violência, ganha contornos de drama, documentário e suspense.

Sob qualquer prisma que se analise a trama envolvendo o atleta Pedro, inclusive minimizando-a como buscou fazer o técnico, que preferiu se dizer “triste quando dois colegas brigam” e que o “objetivo é colocar o Flamengo no topo”,8 fato é que as coisas vão mal, cada dia piores, nos exigindo uma tomada de consciência, um amplo debate e a uma decisão sobre o que queremos diante do que temos em termos de sociedade.

Questão urgente.

Se algo não for feito, pode ser que o ocorrido marque apenas o fim do primeiro tempo de uma disputa nada saudável e sem vencedores. Algo a se pensar e resolver para ontem, antes da próxima rodada do campeonato marcada para poucos dias.

1 <https://www.metropoles.com/brasil/preparador-do-flamengo-agrediu-pedro-ao-ver-jogador-mexendo-no-celular>. Acesso em: 31 jul. 2023

2 <https://www.lance.com.br/flamengo/soco-em-pedro-do-flamengo-entenda-em-cinco-pontos-como-foi-a-agressao.html>. Acesso em: 31 jul. 2023.

3 <https://www.espn.com.br/futebol/flamengo/artigo/_/id/12375919/tres-tapas-um-soco-veja-como-ficou-boca-pedro-agressao-cometida-preparador-flamengo>. Acesso em: 31 jul. 2023.

4 <https://www.otempo.com.br/sports/futebol/preparador-fisico-pede-desculpas-a-pedro-e-flamengo-veja-nota-na-integra-1.3096114>. Acesso em 31 jul. 2023.

5 <https://www.msn.com/pt-br/esportes/other/soco-na-boca-delegacia-e-covardia-psicol%C3%B3gica-entenda-a-agress%C3%A3o-sofrida-por-pedro-pelo-preparador-do-flamengo/ar-AA1ey5p8&gt;. Acesso em: 31 jul. 2023.

6 <https://www.espn.com.br/futebol/flamengo/artigo/_/id/11771131/flamengo-oficializa-orcamento-de-rs-1-bilhao-com-mais-dinheiro-de-tv-e-menos-vendas-e-premios-do-que-em-2022>. Acesso em: 31 jul. 2023.

7<https://leiemcampo.com.br/caso-pedro-entenda-desdobramentos-trabalhistas/&gt;. Acesso em: 31 jul. 2023.

8 <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/07/30/sampaoli-sobre-agressao-de-preparador-a-pedro-doi-quando-colegas-brigam.htm&gt;. Acesso em: 31 jul. 2023.

TETO DE VIDRO, PISO PEGAJOSO E SÍNDROME DA ABELHA RAINHA: METÁFORAS DA “ECONOMIA FEMINISTA” NUMA PERSPECTIVA FEMINISTA AMEFRICANA*

Helena Pontes dos Santos – Mestranda e Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Estudos Afrolatino-americanos e caribenhos pelo Clacso. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP), da Equipe de Estudos em Direito do Trabalho e História (USP) e do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras (UNIFESP). Militante do Movimento Negro Unificado.

São Paulo, 07 de julho de 2023.

Boa tarde a todes, todas e todos.

Gostaria de consignar meus agradecimentos1 pela possibilidade de estar em espaço composto por pessoas comprometidas a pensar e debater sobre as condições de trabalho a que está submetida a advocacia assalariada, em especial as mulheres que são parte desse quinhão da categoria, expostas além da discriminação de gênero.

Agradeço a todas as entidades organizadoras pelo convite nas pessoas da Dra. Ana Lucia Marchiori e do Dr. Erazê Sutti, colegas de especialização na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e da luta por uma sociedade verdadeiramente justa.

Saúdo as demais mulheres da mesa – Isabela de Castro e Castro, Patrícia Tuma Martins Bertolin, Eidy Lian Cabeza – e gostaria de registrar que é uma alegria dividir esse espaço de fala com vocês a quem admiro pelas produções intelectuais e militância.

Gostaria de agradecer não só as pessoas que pensaram e desenvolveram ciência da qual parto em minhas pesquisas, mas também a todas as colegas e aos colegas que expuseram pela manhã suas perspectivas. Desejo com elas encruzilhar e fazer emergir novas ideias e percepções sobre experiências ou vivências.

E, como somos todos herdeiros dos que vieram antes de nós e eu sou uma feminista amefricana militante do Movimento Negro Unificado, sendo hoje dia 07 de julho, não posso deixar de falar de mulheres e homens que em 1978, em plena ditadura militar, ousaram tomaram as escadas no Teatro Municipal de São Paulo para denunciar o racismo no Brasil e a falácia da democracia racial.

O estopim da revolta foram as denúncias de segregação de atletas negros, jogadores de vôlei do Clube de regatas Tietê, impedidos de entrar na piscina do clube e o assassinato, mediante tortura por parte do braço armado do Estado, de Robson Silveira da Luz, em Guaianazes, zona Sul da cidade de São Paulo. Um crime que aconteceu há 45 anos, mas que vitimou uma mulher negra. Sueli Alves da Luz, casada com Robson, a si imposto o silêncio por quarenta anos, em face das ameaças de morte que ao longo desse período sofreu.

Por Sueli e tantas mulheres negras silenciadas ao longo da nossa história eu estou aqui para tentar contribuir com o debate das mulheres na advocacia assalariada trazendo outra perspectiva, que pode não ser confortável a todes, todas e todos, mas que precisa ser posta se queremos superar de fato as discriminações que estão presentes, vivas e geram muitos danos nos dias atuais, ainda.

O exercício de escuta a quem sempre foi garantida a fala muitas vezes é exercício difícil, penoso e doloroso, que aponta que por mais sensíveis que se seja é impossível estar no lugar de quem sofre uma opressão que a gente não enfrenta. Sentir, de fato, é impossível. No entanto, negrito e destaco que é possível e necessário se colocar solidário, o que é uma prática e não um sentimento ou discurso. Estou certa de que isso é precisamente o que nos une nesse debate hoje: vontade de práticas de superação de condições múltiplas de explorações de trabalhos.

Eu confesso que ainda estou surpresa com o convite para participar da mesa cujo tema é “Teto de vidro. Piso Pegajoso. Abelha rainha.”, já que meus estudos versam sobre a categoria de asseio e conservação, uma categoria composta majoritariamente por mulheres negras e terceirizadas e nos quais meus referenciais teóricos são feministas negras como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, dentre outras. A categoria com que dialogo é composto majoritariamente por mulheres negras que, apesar de precarizadas, pasmem, ainda estão em lugar de menos assédio e desrespeito do que as irmãs que estão no trabalho doméstico remunerado.

Essas mulheres negras, periféricas em sua imensa maioria, estão lutando por direitos e garantias fundamentais, por cidadania mínima para si e para os seus, afinal, como é sabido, o braço armado do Estado – ao arrepio da garantia da inviolabilidade do domicílio e da proibição de pena de morte como regra – segue nas periferias invadindo casas e matando jovens negros.

Como se pode imaginar, nosso “piso pegajoso” não nos prende a profissões femininas e desvalorizadas financeiramente só, mas nos prende a funções que são essenciais ao funcionamento social mas são tidas como degradantes por pessoas brancas. Num país de capitalismo periférico como o nosso, com histórico de escravização de mulheres e homens negros e a forte presença de racismo por denegação o “piso pegajoso” nos anexa ao lugar de desproteção social desde o período do escravismo tardio.

Lélia Gonzalez, em 1982, no texto E a trabalhadora negra, cumé que fica?2 traz importante consideração sobre o lugar que a mulher negra ocupa no mercado de trabalho e o quanto a sua situação muda somente na forma como se nomeia seu trabalho, porém não faticamente,

Nossa situação atual não é muito diferente daquela vivida por nossas antepassadas: afinal, a trabalhadora rural de hoje não difere muito da escrava de eito” de ontem; a empregada doméstica não é muito diferente da “mucama” de ontem; o mesmo poderia dizer-se da vendedora ambulante, da “joaninha, da servente ou da trocadora de ônibus de hoje e a “escrava de ganho” de ontem.

Nesse país em que mulheres brancas recebem maiores salários e têm mais postos de chefia do que negras e negros, o “piso pegajoso” nos coloca em trabalhos tidos como terceirizáveis, atividades meios, sem destaque, dito geralmente que qualquer um pode fazer pois não requer muita habilidade ou preparo, ainda que saibamos que trabalhos supérfluos em uma empresa não são terceirizados, mas sim suprimidos e que se fossem trabalhos simples, certamente não seria renegados a nós fazermos.

Dentro da advocacia assalariada, em que lugar estão as mulheres? Estão como celetistas ou como sociedade unipessoal, que devem emitir nota fiscal por dia trabalhado e ficam numa espécie de vira de três em três meses em cada escritório? Quantas dessas mulheres são negras? Temos dados, pesquisas, estudos realizados sobre o tema com incentivo da OAB?

Não temos espaços para competir por postos nas hierarquias, é notório, pois as imagens de controle, como muito bem aciona a intelectual Winnie Bueno3, não permite. A qualquer divergência de opinião em que nos colocamos ou competimos para afirmarmos nosso pensamento somos tidas como rudes e arrogantes (o que um homem branco que se porte igual não seria chamado) e também somos acusadas de termos modos não civilizados, de sermos grosseiras e malucas. A mulher negra é barraqueira até para as manas brancas empoderadas. Ante a realidade apresentada será que o “teto de vidro” não é mais embaixo? As mulheres negras estão chegando a esbarrar nessa barreira? Qual o seu lugar social de origem, sua raça, seu território das mulheres que esbarram? O Censo da Advocacia de 2020 não traz dados com perspectiva interseccional ou encruzilhada.

Essas são questões que me vêm à mente quando penso nessa questão, apesar de não desconsiderar que das poucas mulheres que sobrepujam essa barreira é exigido muito mais conhecimento do que um homem. Certamente, no entanto, elas não cresceram ouvindo de pais “filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor” para não deixar de citar Racionais MCs e, por consequência, reverenciar as tantas donas Anas da periferia de São Paulo.

Quanto a Síndrome de Abelha Rainha – essa teoria cuja formulação penso ser bastante contaminada por uma ideia de performance de feminilidade eurocentrada – o que mulheres negras enfrentam no mercado de trabalho, se chegam a posto melhor remunerado no Brasil, é a Síndrome do Token, na qual se é a única mulher negra nas mesas, nos espaços, nos restaurantes e nos quadros das empresas.

Essas mulheres, tão excepcionais quanto as que ultrapassam o teto de vidro (apesar de nem sempre chegarem a sócias), são acionadas nos meses de julho e novembro para credenciar espaços que são extremamente violento com as nossas ideias, epistemologias, filosofias, cultura, cosmovisão, enfim, com tudo o que se refere a negritude. Espaços, inclusive, que impõem sua política de embranquecimento com seu conjunto de regras de como se vestir, se portar e trazer o cabelo.

Trazer outras mulheres negras para os espaços é uma questão de sobrevivência, porém são poucas com tal poder de mando. Não podemos nos dar ao luxo de ficarmos sós em espaços embranquecidos uma vez que o racismo nos destrói completamente.

Nossos irmãos negros, que como sabemos recebem abaixo e estão em menos cargos de chefia e gestão do que mulheres brancas, ainda que estejam em situação melhor do que as mulheres negras, também passam por essa síndrome do token.

Então essas metáforas tão caras à economia feminista são realmente figuras que albergam realidades de todas as mulheres para serem tão centrais assim? PcDs são atingidas por elas? E mulheres negras? E as mulheres trans? Esses problemas trazidos por essas teorias são algo que atinge a maioria das mulheres advogadas ou uma pequena parte, justamente a parte que tem, por suas condições sociais, melhores condições de participar da construção e estar presente nos espaços de decisão da advocacia organizada?

A falta de diversidade nos órgãos representativos da advocacia, no Poder Judiciário, Legislativo e Executivo explica a condição da pessoa trabalhadora negra exposta à superexploração com o aval de tais instituições? Certamente não. A representatividade (tão reivindicada por movimentos liberais pós-modernos) tem seus limites, mas é hipótese que sua presença dentre os que compõem a classe reinante resultasse na melhora da condição de vida de certas pessoas trabalhadoras, visto que é mais fácil assimilarmos melhoras de nossos semelhantes como concebível. Daí entender-se como projeto (e não desvio) a ausência de mulheres, negras e negros de tais poderes.

A ausência de diversidade de mulheres nesses locus, portanto, faz com que somente se considere nas análises a realidade enfrentada pela mulher, branca, das classes mais favorecidas? Quantas mulheres negras, dentro e fora dos escritórios seguem sustentando o êxito e desbravamentos de mulheres brancas em sua disputa por espaço com homens brancos? É como aponta Lélia Gonzalez como questão essencial “ a libertação da mulher branca tem sido feita às custas da exploração da mulher negra”4.

Não são só as violências que atingem as vossas semelhantes o central nos debates, tampouco são as ferramentas que vão garantir somente às brancas a possibilidade de competir com seus parceiros de opressão racial o que todas nós mulheres devemos nos meter a forjar.

Tem muitos dragões e o que as mulheres negras enfrentam não são de komodo. No mais, a superação das discriminações e opressões ou se dão coletivamente ou não se dão, como se pode observar ao longo da história e no debate sobre as questões de gênero mesmo. É preciso romper com a lógica neoliberal individualista.

É tarefa que se impõe em nossos tempos que a pessoa humana deve ser tida como bem supremo do direito e das lutas sociais e coletivas, independente de nossa identificação narcísica com ela. Quando a mesa de gênero traz tantas figuras que só dialogam com a realidade de mulheres brancas, cis, pessoa sem deficiência e que performam heteronormatividade, estamos fazendo isso?

Em “Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher” Lélia Gonzalez nos alerta sobre o problema presente no feminismo de desconsiderar significativa parte de vivências de mulheres e como, quando tais experiências de vida e reivindicações são colocadas, o discurso é rechaçado sem reflexão por ser agressivo, tomado como cobrança, e demasiado emocional. Pois nas palavras de Lélia, “para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam uma renúncia à razão, mas, ao contrário, são um modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão”5.

Nossa fala não é de outro lugar que não o da realidade da maioria das mulheres e não é emocional, mas extremamente racional pois não parte do abstrato, mas da vida vivida. Hoje assumimos nossa voz e estamos aqui para apontar a necessidade de que se amplie, e muito, a perspectiva do que é central para as mulheres como um todo e os debates sobre gênero desse espaço, pois nós também somos mulheres.

É preciso que a gente se abra para aprender, penso, com a perspectiva com a qual foi construída o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que veio como ferramenta que auxilia a calibrar os olhares a realidades diversas, experienciadas por pessoas cujas vidas são atravessadas por distintas discriminações encruzilhadas, lhes garantindo uma devolutiva jurisdicional que não coaduna com a reprodução das desigualdades e discriminações presentes em nossa sociedade. A advocacia assalariada como um todo, e não só no debate relacionado a gênero, deve adotar o mesmo olhar que rompe a uma só vez com o pacto narcísico da branquitude, com as leituras de mundo LGBTQIAPN+fóbicas, capacitistas e abraçar os debates e questões que desde há muito tempo o feminismo negros apresenta como contribuição a superação da visão colonial do feminismo branco de classe média norteado por teorias dos países de capitalismo central.

É preciso aprender com a práxis negra de quilombismo (na qual, homens, mulheres, negros, brancos e indígenas se unem para contestar o modo de produção em vigor e vivenciar uma outra experiência de organização social e de produção do necessário à vida), das mulheres negras pelo bem viver, com as epistemologias de terreiros, experiências capazes de fazer de espaços mistos potências de crescimento coletivo a partir da diversidade e da unidade pela superação das opressões.

Pela oportunidade de falar, agradecida!

* Exposição realizada no 1o Congresso da Advocacia Assalariada realizado na Ordem dos Advogados de São Paulo no dia 07 de junho de 2023 no Painel 5 “Teto de Vidro. Piso Pegajoso. Abelha Rainha. Gênero e Raça.” O evento foi promovido pela Comissão da Advocacia Assalariada da Secional, pelo Sindicato dos Advogados de São Paulo (SASP) e pela Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT), com o apoio da Cultural OAB, da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv) e do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (MATI).

1 Toda minha produção e militância é ancorada na ideia de que conhecimento é sempre construção coletiva de saberes, com base em valores diametralmente opostos ao referencial acadêmico colonial, competitivo, individualista, eurocentrado e subserviente aos interesses imperialistas. Assim, contou com a contribuição essencial da colega acadêmica e amiga de vida Viviane Vidigal, com quem os caminhos encruzilharam a partir do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital, coordenado pelo Professor Dr. Jorge Luiz Souto Maior.

2 GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. São Paulo: Editora Filhos da África. 2018, p. 127 e ss.

3 Em vários de seus textos pulicados Winnie Bueno trata sobre imagens de controle, dos quais destaco dois, os quais recomendo fortemente a leitura a toda pessoa que se interessa pelo tema, ou que aciono quando vejo as imagens de controle sendo mobilizada contra mulheres negras: A Lacradora: Como imagens de controle interferem na presença de mulheres negras na esfera pública. <https://medium.com/neworder/a-lacradora-como-imagens-de-controle-interferem-na-presen%C3%A7a-de-mulheres-negras-na-esfera-p%C3%BAblica-cb26f5edbb59 > e A quem serve omito da agressividade da mulher negra.’ <https://medium.com/@winniebueno/a-quem-serve-o-mito-da-agressividade-da-mulher-negra-da59ef1fcb89&gt;.

4 GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: Por um feminismo afro latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios e Marcia Lima – 1 edição. Rio de Janeiro: Zahar. 2020, p. 43.’

5 GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: Por um feminismo afro latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios e Marcia Lima – 1 edição. Rio de Janeiro: Zahar. 2020, p. 44.

LEI No 14.597/23 E O “DESVÍNCULO” DE EMPREGO: NOVIDADES VETUSTAS OU A CAIXA DE PANDORA DA “MODERNIZAÇÃO” DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Almiro Eduardo de Almeida – Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Santa Cruz do Sul, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Professor Universitário na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay. Especialista em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Oscar Krost – Juiz do Trabalho Titular da 1ª Vara do Trabalho de Rio do Sul, no Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Professor. Mestre em Desenvolvimento Regional – FURB. Diplomado em nível superior em Relaciones del Trabajo y Sindicalismo – FLACSO/Argentina. Membro-fundador do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA. Investigador do Núcleo de Pesquisa o Trabalho além do Direito do Trabalho – NTADT/USP. Parecerista de periódicos jurídicos

Quem, de três milênios, não é capaz de se dar conta, vive na escuridão, na sombra, à mercê dos dias, do tempo. Johann Goethe

Não são poucos os exemplos na matemática em que a soma de um mais dois não resulta três. Se andarmos um passo para frente e dois para trás, não teremos avançado três passos, mas retrocedido um. É justamente isso o que está acontecendo com o Direito do Trabalho nos últimos anos.

Recentes alterações legislativas e decisões judiciais – em especial da mais alta corte judiciária – vêm fazendo com que o Direito do Trabalho retroceda, não um ou dos passos na história, mas séculos. Retrocesso este, para não deixar dúvida alguma, sob o ponto de vista dos sujeitos que vivem do trabalho, cuja proteção é a razão de ser da legislação social, mas “modernização”, “avanço” e “flexibilização” segundo a perspectiva do capital e dos sujeitos que vivem da exploração do trabalho alheio.

A mais nova mudança foi a aprovação da Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023, que institui a Lei Geral do Esporte.

Seguindo uma tendência legislativa e jurisprudencial de desproteção social, dispõe a lei em questão em seu art. 82:

Art. 82. A atividade assalariada não é a única forma de caracterização da profissionalização do atleta, do treinador e do árbitro esportivo, sendo possível também definir como profissional quem é remunerado por meio de contratos de natureza cível, vedada a sua participação como sócio ou acionista da organização esportiva.

Parágrafo único. A atividade profissional do atleta, do treinador e do árbitro esportivo não constitui por si relação de emprego com a organização com a qual ele mantenha vínculo de natureza meramente esportiva, caracterizado pela liberdade de contratação.

De plano, algumas questões chamam a atenção.

Em primeiro lugar, o eufemismo de chamar o vínculo de emprego de “atividade assalariada”. É como se, seguindo as recomendações dos mais “modernos” coaches de “recursos humanos”, o empregado não pudesse mais ser chamado de empregado, mas sim de “colaborador”, distorção linguística utilizada justamente para disfarçar o que ele realmente é um ser humano empregado pelo capital com o objetivo de lucro.

Como bem alerta Michel Foucault “o signo pode ter duas posições: ou faz parte, a título de elemento, daquilo que ele serve para designar, ou é dele real e atualmente separado”.1 Mais do que descrever e explicar o que existe, parece que o léxico trabalhista contemporâneo, desprotetivo da pessoa, tenta, a todo custo, reduzir custos, com o perdão da redundância, invisibilizando as mazelas da relação entre capital e trabalho.

Além disso, causa espanto a lei ter de dizer que “é possível também definir como profissional quem é remunerado por meio de contratos de natureza cível”. Na verdade, nunca foi proibida ou impossível a contratação de atleta profissional por contrato de natureza civil. Pelo contrário, essa era a regra no Século XVIII, quando o Direito do Trabalho ainda não existia. Observe-se, ainda, que, segundo a “nova” lei, a atividade não será “assalariada”, embora o profissional seja “remunerado”.

Ainda, por que motivo deve ser “vedada a sua participação como sócio ou acionista da organização esportiva”? Então o trabalhador não pode ser sócio, ou acionista da entidade em que trabalha? E a tão almejada autonomia da vontade? E a livre iniciativa? E a liberdade contratual? Essa última inclusive invocada expressamente pela própria lei. Estaria aqui Legislador, como que por um pseudo ato-falho, admitindo que não está fazendo nada mais do que institucionalizar a fraude, para logo em seguida seu superego lhe advertir de que tudo na vida deve ter um limite?!

Se, conforme o antigo brocardo hermenêutico, a lei não tem palavras inúteis, por que motivo o parágrafo único do artigo transcrito estabelece que “a atividade profissional do atleta, do treinador e do árbitro esportivo não constitui por si relação de emprego com a organização com a qual ele mantenha vínculo de natureza meramente esportiva”? Nunca se reconheceu vínculo de emprego sem que estivessem presentes os requisitos necessários para a sua configuração: pessoalidade, não-eventualidade, subordinação e onerosidade.

A questão é mais do que simples, tangenciando as raias do simplório: presentes os requisitos fático-jurídicos previstos no art. 3o da CLT, há vínculo de emprego, gerando direitos e deveres às partes. Fora disso, há uma infinidade de possibilidades, sem qualquer fundamento para estabelecer o “desvínculo” de emprego, lançando mão de um neologismo nem tão novo assim.2

Talvez o real objetivo da lei não seja dizer o óbvio – que não há vínculo de emprego quando não estejam preenchidos os requisitos necessários para que haja um vínculo de emprego –, mas, mais uma vez, institucionalizar a fraude. Tal qual o cinema com suas continuações em série e franquias sem início, meio e fim, o Legislador brasileiro insiste em remakes de trillers de suspense e terror do Direito do Trabalho, requentando antigas fórmulas ou criando figuras horripilantes como as estabelecidas nos arts. 442, parágrafo único, da CLT (cooperativados), 442-B também da CLT (autônomos com pessoalidade) e da Lei no 14.297/22 (entregadores sem vínculo de emprego).

Em face da mais recente atualização normativa e dessa ode à liberdade contratual, não podemos deixar de considerar que, segundo relatório da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mais da metade dos atletas profissionais de futebol recebem valores equivalentes a um salário-mínimo e que quase 90% recebem menos de cinco salários-mínimos. Além disso, dos mais de 360 mil atletas registrados na CBF, 75% são amadores e não encontraram no futebol sua principal fonte de sustento.3 Se essa é a realidade do esporte que é a “paixão nacional”, o que se dirá das demais modalidades esportivas?

A prática de desvirtuar as relações de emprego para que se tornem contratos de natureza civil não é exclusiva dos atletas, nem é tão nova assim.

Há quase trinta anos, o Legislador ordinário já alterara a CLT para impedir o reconhecimento do vínculo de emprego entre sociedade cooperativa e seus associados, ou entre esses e os tomadores de serviço daquela. Ora, é comezinho que não há vínculo de emprego entre cooperados, haja vista tratarem-se de trabalhadores autônomos. Então, por que acrescentar isso na lei? Em que sentido deveria ser considerada uma inovação no Ordenamento Jurídico Trabalhista?

Retrocedendo um pouco mais, há quase meio século, a Lei nº 6.094, de 30 de agosto de 1974, dispunha não haver vínculo de emprego entre o condutor autônomo de veículo rodoviário e seus auxiliares, até o máximo de dois. A questão que insiste: por que o Estado tem de dizer que não há vínculo de emprego se o trabalho dos auxiliares se der efetivamente de forma autônoma, ou seja, sem subordinação? E mais, por que limitar a dois auxiliares? Será novamente a instituição da fraude, mas com algum limite?

Se retrocedermos ainda mais, aproximadamente uns dois séculos na história, chegaremos ao auge da autonomia da vontade, em que as relações de trabalho eram mantidas por contratos de natureza civil e a liberdade de contratar imperava sem as peias da legislação trabalhista. Os famigerados “bons tempos”, em que todos viviam livres, em harmonia, sem a intervenção do Estado para cercear os quereres entre iguais…

Este caminho de “modernização às avessas”4 não está sendo seguido apenas pelo Congresso Nacional. Em recentes decisões, o Supremo Tribunal Federal também vem “avançando para trás”.

Em 2018, ao decidir o mérito do RE no 958252, que deu origem ao Tema no 725, o STF entendeu “lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas (…)”. A partir deste entendimento, passou a se considerar regular toda a forma de intermediação de mão de obra, independente do número de desdobramentos, terceirização, quarteirização, etc… Sistemática que nos faz lembrar trecho da música Flor da Idade, do genial Chico Buarque: “Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo Que amava Juca que amava Dora que amava…”. Só que, em vez de amor, estamos falando de precarização, representação máxima de “desamor” e “desvínculos”.

E assim mais uma vez se abria a “caixa de pandora trabalhista”. Engana-se quem pensa que a terceirização é uma forma de modernização da estrutura produtiva. Karl Marx já denunciava, n’O Capital, as diferentes formas de terceirização e intermediação de mão-de-obra nos primórdios do capitalismo, bem como a sua proibição pelas primeiras leis laborais, justamente por se reconhecer a precariedade que essa forma de organização da atividade empresarial implicava às relações de trabalho.5

A partir desse Leading Case (para utilizar a denominação “moderna”, adotada pelo próprio STF) várias outras decisões foram tomadas, citando o Tema no 725 – sobre terceirização(!) – para legitimar formas alternativas de trabalho, sem o reconhecimento do vínculo de emprego: médicos com hospitais; professores com escolas; advogados com escritórios de advocacia; motoristas com empresas de transporte e, mais recentemente, motoristas com empresas-plataforma.

Curiosamente, em tais decisões, a mais alta corte de justiça do país não vem julgando apenas contra a legislação trabalhista, os princípios e os fundamentos do Direito do Trabalho. A própria sistemática processual e a teoria geral do processo vêm sendo vilipendiadas. Confundindo matéria de mérito com questões preliminares, o Supremo tem entendido que, ainda que o trabalhador alegue a existência de fraude, coação ou qualquer vício de vontade na contratação e postule o reconhecimento do vínculo de emprego, a competência será da Justiça Comum pela simples existência formal de um contrato civil entre as partes, independentemente da validade de tal contrato.

Com isso, não apenas afasta a aplicação do art. 9º da CLT – sem declarar a sua inconstitucionalidade – deixa de observar o princípio da proteção e as suas vertentes da aplicação da norma mais favorável e do in dubio pro operario, bem como o princípio da primazia da realidade; são simplesmente ignorados os próprios fundamentos e a razão de existir do Direito do Trabalho enquanto limitador da autonomia da vontade das partes.

Sob o pretexto de respeitar a liberdade contratual, o STF descumpre a própria Constituição Federal ao desconsiderar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Observe-se, a propósito, que, como já insistimos em outros textos,6 os fundamentos da República não são nem o trabalho nem a livre iniciativa, mas os valores sociais que tanto o trabalho quanto a livre iniciativa devem respeitar. Além disso, essas medidas legislativas e decisões judiciais contrariam o mais básico direito fundamental dos trabalhadores que é o de ter reconhecida a relação de emprego, conforme preceitua o inciso I do art. 7º da Constituição Federal.

Todo esse aparato constitucional, legislativo e principiológico não existe por acaso. Em meados do século XIX, Lacordaire já advertia que “entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. Se não quisermos retornar aos primórdios do capitalismo, podemos voltar “apenas” pouco mais de meio século – para o ano de 1966, quando o FGTS foi instituído como uma opção para o trabalhador e, na prática, se mostrou uma condição para a sua efetiva contratação – para nos darmos conta de que a liberdade de contratação entre uma pessoa que, por definição, deve obedecer a quem a está contratando não passa de uma falácia.

As alegadas “modernizações” das relações de trabalho tratadas no presente texto não passam, na verdade, do retorno de velharias que já foram utilizadas em demasia, durante séculos, para a intensificação da exploração dos trabalhadores. As reformas do legislador ordinário e as decisões do Supremo Tribunal Federal não passam de velhas formas de exploração que tentam se disfarçar em novas (e velhas) roupagens.

A “caixa de pandora trabalhista” foi aberta, permitindo que desgraças como a precarização, a informalidade, a pauperização e, com elas, doenças do corpo e da alma venham à tona. Contudo, assim como a sua símile mitológica, desejamos que sua versão contemporânea também traga escondida, dentre tantas desgraças, o único dom capaz de vencê-las: a esperança.

Santa Cruz do Sul/RS e Rio do Sul/SC, 15 de junho de 2023.

1 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins – 2016, p. 83.

2 KROST, Oscar. Lei no 14.297/22 e o direito ao desvínculo de emprego, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/01/10/lei-no-14-297-22-e-o-direito-ao-desvinculo-de-emprego/>. Acesso em: 15 jun. 2023.

3 Fonte: <https://br.indeed.com/conselho-de-carreira/pagamento-salario/salario-jogador-futebol-brasil#:~:text=Sal%C3%A1rios%20segundo%20a%20CBF&text=33%25%20dos%20jogadores%20ganham%20entre,R%24%2050.001%20e%20R%24%20100.000>. Acesso em: 15 de jun. 2023.

4 Referência expressa a GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2011.

5 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, passim.

6 Neste sentido, ALMEIDA, Almiro Eduardo de; KROST, Oscar. As recentes decisões do STF sobre os direitos dos trabalhadores: reforma ou destruição? Uma releitura. In: MARANHÃO, Ney. TUPINAMBÁ, Pedro Tourinho. (coordenadores). O mundo do trabalho no contexto das reformas: análise crítica – Homenagem aos 40 anos da Amatra8. São Paulo: LTr, 2017, p. 204-12, e, dos mesmos autores, Verde-amarelismo jurídico: movimento por um trabalho sem direitos”, disponível em <https://jus.com.br/artigos/77806/verde-amarelismo-juridico>. Acesso em: 15 jun. 2023.

“BATE-PAPO NA LABUTA” COM ANTÔNIA MARA VIEIRA LOGUÉRCIO

ANTÔNIA MARA VIEIRA LOGUÉRCIO é natural de Bagé (RS), Bacharel em Direito (UFRGS), atuou como Advogada com escritório próprio e junto à Rede Ferroviária Federal S/A, além de Assessora Parlamentar na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e Juíza do Trabalho do TRT da 4ª Região, instituição na qual se aposentou em 2008. Atuou como organizadora do livro “A lei trabalhista da República Popular da China” (editora Anita Garibaldi), como coautora de Altamiro Borges na obra “Questões polêmicas sobre a jornada de trabalho” (Nota Dez/HS Editora) e palestrado em vários estados do Brasil, alem de Argentina e Uruguai. Foi presa política anistiada durante o Regime Militar e, atualmente, é 2ª Secretaria e integrante do Conselho Deliberativo da Associação de Ex-presos e Perseguidos Políticos do Rio Grande do Sul (AEPPP-RS), eleita no dia 15 de abril, último, além de integrar a ADJC (Associação de Advogadas e Advogados pela Democracia, Justiça e Cidadania).

Dra. Mara, como é conhecida e chamada nos grupos de WhatsApp e nas rodas de conversa, honrada pelo convite, de imediato aceitou participar do “bate-papo na labuta”, seção do blog “Direito do Trabalho crítico”.

1. Muito obrigado, mais uma vez, pela gentileza em se dispor a colaborar com este espaço. Sua primeira manifestação, em resposta ao convite, foi pôr em dúvida o atendimento de supostos requisitos para tanto, considerando não haver participado de formação em nível de pós-graduação, mas também lembrando de um valor ensinado em casa de que “o bom julgador por si julga os outros”. Como Antônia Mara foi apresentada ao mundo do trabalho e que caminho trilhou até o Direito do Trabalho?

R: Meus pais sempre foram muito católicos, mas não supersticiosos. Ensinavam-nos a conhecer a vida e a doutrina de Cristo em toda a sua concretude, embora, talvez nem tivessem consciência disto. Sempre nos prepararam teórica e praticamente para termos um senso de Justiça muito agudo.

Não é fácil para um casal onde ele era ferroviário e, por circunstâncias, nunca chegou a frequentar uma escola, tendo sido alfabetizado pelos irmãos em casa, e ela dona de casa que havia cursado até o 3º ano do ensino fundamental da época, tomarem a decisão de colocar os seis filhos na Universidade. E mais difícil ainda foi terem logrado êxito na empreitada: os seis filhos cursaram a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Eu decidi que iria fazer Direito muito cedo. Antes dos dez anos. Mas, além da origem de classe e da impressionante lucidez de meus pais, vivi, também, até os 10 anos numa vila, onde havia uma charqueada (fábrica de charque). Nós morávamos na estação de trem, onde embarcavam o couro extraído da matança do gado bovino que fornecia a carne para o charque produzido na charqueada, pertencente à COOPERATIVA BAGEENSE DE CARNES LTDA., cooperativa dos “fazendeiros”, ou latifundiários de Bagé.

Então eu cresci convivendo com operários, ferroviários (na época servidores públicos do Estado, na Viação Férrea do Rio Grande do Sul) e operários da Charqueada. Vi, por exemplo, chegarem – pelo trem – trabalhadores arregimentados de outras cidades, que vinham substituir os operários que estavam em greve.

Convivia com pessoal de trem sempre discutindo as questões da categoria e todos os privilégios de que desfrutavam em relação aos demais operários, todos eles conquistados a poder de muitas e prolongadas greves. Na época em que toda a economia do Estado era feita por ferrovia e esse era, também, o principal meio de transporte coletivo, as poderosas greves ferroviárias causavam grande impacto. Os ferroviários e os portuários eram a vanguarda da classe operária em todo o Estado e com inegável influência também no país.

No ano em que eu nasci, 1947 viveu-se a maior das greves ferroviárias do RS: 40 dias o Estado inteiro parado para conquistarem o abono-família, uma certa quantia de dinheiro pelo número de filhos do empregado.

Mudamo-nos, depois para a cidade de Bagé onde fiz o “ginásio” (hoje, 6ª a 9ª série do Ensino Fundamental). Em seguida iniciei minha participação na JEC (Juventude Estudantil Católica) onde, apesar de termos um padre adjunto e uma irmã assistente, tínhamos uma autonomia de pensamento bastante grande. Sempre diferencio os movimentos de Ação Católica, do final da década de 50 até o final da década de 60, quando foram extintos em todo o Brasil, pelo Cardeal Vicente Sherer daqui de Porto Alegre, dos movimentos de pastorais que vieram depois por este traço: nós pautávamos e enfrentávamos a hierarquia, agora a hierarquia pauta os movimentos. Pela JEC participei, aos 13 anos, do Comité Bageense pela Legalidade em 1961. E de lá para cá nunca mais saí da Política Estudantil.

Pela Ação Popular, organização em que militei de 66 a 73 também cumpri a tarefa de me integrar na produção, ou seja, trabalhar numa fábrica na condição de operária para sentir como trabalham e vivem os trabalhadores brasileiros. Foi um ano que considero o mais importante e mais educador de toda a minha vida. Só saí da fábrica porque a Polícia Federal foi lá me buscar…

Por tudo isso já há muito havia decidido que seria advogada trabalhista. Porém saí da faculdade no 3º ano, antes de começar a cadeira de Direito do Trabalho. Só a cursei quando voltei para a faculdade depois de cumprir a pena a que fui condenada à revelia, isto é, em 1978, quando, depois de repetir todo o 3º ano, fui aprovada para o 4º ano e tive a ventura de estudar Direito do Trabalho com o Professor Leite.

Nessa mesma época, depois de cumprir um ano de livramento condicional, comecei a trabalhar num escritório de Advogados Trabalhistas e participei da AGETRA e da decisão, tomada aqui em Porto Alegre, de criar a ABRAT. E do congresso que oficializou a criação da ABRAT, no Rio de Janeiro.

Depois de um breve interregno onde atuei em outras áreas, voltei à advocacia trabalhista pelo lado do patrão, isto é, passei num concurso para advogada da RFFSA, onde trabalhei de março de 1985 a 31/05 de 1994. Quando resolveram extinguir a RFFSA e privatizar a ferrovia, comecei a fazer o concurso que aparecesse e, pintou o de Juíza do Trabalho, onde, depois de uma tentativa frustrada, rodei na prova de sentença porque fiz toda uma argumentação de advogada e precisava ser uma fundamentação de juíza. Contudo, no outro concurso prestado, fui aprovada e tomei posse em 01/06/94. E eu, que nunca havia cogitado na hipótese de um dia ingressar na magistratura, descobri, finalmente, que era esse o trabalho que eu sempre havia sonhado para mim.

2. Antes da Graduação a senhora participou de politica estudantil, justamente em um período da história recente em que a reflexão, o debate e a crítica poderiam custar a liberdade. Em que medida estas experiências forjaram a Magistrada de carreira?

R.: Creio que já respondi na extensíssima resposta do item 1.Participei da política estudantil desde o 1º ano do Clássico no Julinho até o 3º ano da Faculdade de Direito do RS, quando saí para me deslocar para a fábrica. E no retorno para a faculdade, exceto no ano em que cumpri meu livramento condicional, até o 5º ano. E essa vivência toda foi fundamental na minha formação como pessoa e, portanto, no desempenho na magistratura.

3. Em 2002, à frente da 26ª Vara do Trabalho de Porto Alegre foi de sua autoria uma decisão histórica envolvendo um atleta do futebol que anos mais tarde viria a conquistar uma Copa do Mundo e ser eleito o melhor jogador do planeta, demanda que só acabou no ano seguinte. Esta foi a decisão de maior repercussão em sua carreira de quase 15 anos no TRT da 4ª Região? Em caso positivo, por quê? E, se não foi, qual foi?

R.: Repercussão externa claro que sim. Inclusive foi depois dela que deixei de ser Juíza Substituta, após sete anos e passei a Juíza titular na primeira vaga que surgiu e por merecimento…

Para mim, nem de longe, foi a mais importante sentença. Até porque nessa eu julguei a favor do patrão que, casualmente vem a ser o time que eu, desde pequena, aprendi a “combater”. Mas estou convicta de que decidi corretamente, com base na Constituição, na legislação e nos Princípios do Direito do Trabalho. E esse sempre foi o roteiro de fontes do Direito do Trabalho que eu tomava em todas as decisões que proferi. Usava, também, muita jurisprudência – desde que eu aprovasse o conteúdo -, para proteger minhas sentenças da sanha modificadora da instância “ad quem”.

A mais importante sentença dada por mim não teve nenhuma projeção e foi numa ação acidentária em que o autor caiu de um poste da CEEE, onde trabalhava como terceirizado, através, portanto, de interposta pessoa e tomou um choque de 20.000 wats. Ficou sem uma perna, sem um braço e, na mão que sobrou havia apenas três dedos. O rosto e o corpo inteiro tinham aparência de chamuscado. O feito correu no cível onde o Juiz de Direito – com a competência que ele pensou que tinha -declarou não haver relação de emprego entre o autor e a CEEE e, em despacho saneador, afastou a CEEE da lide. E julgou a empresa terceirizada como não culpada pelo acidente porque não foi ela quem energizou a linha!

Depois de 16 anos, a ação indenizatória foi julgada improcedente. O autor ficou vivendo com a pensão de acidentado pelo INSS. Na Justiça do Trabalho, ele postulava apenas a declaração do vínculo de emprego entre o autor e a CEEE porque esta especializada tem competência material para tanto. E em decorrência a declaração de que ele, na condição de empregado da CEEE, fazia jus à complementação de aposentadoria da ELETROCEEE, pedindo o pagamento das parcelas não atingidas pela prescrição e a inclusão em folha da empresa ré. Prolatei a sentença, totalmente procedente e descobri, no exame do Estatuto da ELETROCEEE, que, pela data do contrato ele seria sócio fundador e, portanto estava isento de pagar as luvas e outras despesas e determinei seu enquadramento imediato na Folha de Pagamento da ELETROCEEE. Tive a felicidade de saber que esta sentença foi confirmada – por unanimidade-, pela Turma do Tribunal. Lembro apenas (não tenho cópia porque a maioria das minhas sentenças foram gravadas em disquete…) de uma frase que dirigi mais ao Tribunal do que para o cliente onde disse: “na verdade, a figura que compareceu ao Juízo guardava de humano apenas a consciência, a coragem e a dignidade”. E passei a descrever o estado físico do acidentado para que o Tribunal tomasse o contato direto com a realidade que a gente só tem condições de fazê-lo no 1º grau.

4. Em sua vasta experiência política e jurídica, o que falta e o que sobra a Operadoras e Operadores do Direito do Trabalho no Brasil de 2023?

R.: Vivência, ou melhor, experiência de vida real. De conhecimento de causa dos feitos em que atua. E falta de ter, no horizonte, sempre, que o sujeito de direitos nesta Justiça especializada é o trabalhador. O empregador, aqui, é o devedor dos direitos. E um juiz e, principalmente, um Juiz do Trabalho tem que sempre ter em mente, em qualquer decisão que profira ou medida processual que tome, que a razão de ser da Justiça do Trabalho – como de qualquer ramo em que o juiz tem que “dizer o direito”, isto é, jurisdicionar é, justamente, o jurisdicionado. E um pouco mais de amplitude na visão de mundo. De sair dos próprios interesses em que nos jogou a sociedade de consumo desenfreado e a ideologia neoliberal, para enxergar e atender os interesses daqueles a quem se destina nosso trabalho – o jurisdicionado, o sujeito de direitos trabalhistas. Aí é que me socorro da máxima ensinada por meus pais, mas proferida por Jesus Cristo de que “o bom julgador, por si julga os outros”. É uma questão de empatia, de se perguntar: e se eu tivesse no lugar dele???

5. Quais os papéis destinados aos sindicatos em um mercado de trabalho tão desigual e voraz quanto o brasileiro?

R.: O trabalho dos Sindicatos foi, praticamente, impedido com a ditadura militar de 1964: as sedes dos sindicatos mais representativos e/ou combativos foram invadidas e destroçadas, os líderes sindicais foram presos ou perseguidos e retirada toda a competência original dos sindicatos. Depois foram retomados com dirigentes confiáveis ao regime, mas reduzido à prestação de serviços médicos, odontológicos e assistência jurídica aos trabalhadores associados.

Voltou-se a atribuir importância aos sindicatos com as memoráveis greves operárias do final dos anos 70 e início da década de 80. Mas a ditadura, ainda existente, tentou abafar o movimento, matando seus líderes – como fizeram com Santo Operário, líder da poderosa Oposição Metalúrgica que se preparava para vencer as eleições no Sindicato dos Metalúrgicos da cidade de São Paulo ou, no mínimo, a prendê-los como fizeram com a maior liderança metalúrgica do ABC, Luiz Inácio Lula da Silva.

Com a Constituição de 1988 o Direito do Trabalho não só ganhou “status” constitucional – como, aliás, ocorria com as constituições anteriores, desde a “Polaca” de 1934, como ficou no primeiro Título das normas constitucionais, secundando apenas o preâmbulo da Lei das Leis, recém aprovada. E o mais importante: as normas trabalhistas e os demais direitos sociais foram erigidas à categoria de direitos fundamentais, embora nossos escribas e, sobretudo, nossos Tribunais ainda não tenham se adaptado à nova ordem constitucional porque há uma incrível resistência em considerar este novo patamar constitucional das normas sociais (art. 6º) e trabalhistas (art. 7º a 11), como se elas não integrassem o Título II da CRFB de 1988 que tem como ementa: DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS e inicia com os direitos individuais e coletivos (art. 5º), mas só termina no art. 11 que trata das Comissões de Fábrica que deveriam ser formadas com um representante a cada 200 empregados e funcionarem em conjunto com o Sindicato, que nunca foram implementadas.

E, após a Constituição, o poder dos sindicatos começou a ser esvaziado por uma decisão judicial, em que foi erigida uma verdadeira muralha para descumprir o mandamento constitucional de que o sindicato tinha a prerrogativa de representar, individual e coletivamente a categoria. Com a edição da Súmula 330 do TST, foi retirada dos sindicatos, o maior exemplo de representatividade registrado na história sindical brasileira: a possibilidade de atuar como Substituto Processual, nos estritos termos da norma constitucional.

Diga-se, a bem da verdade, sem qualquer base em disposições constitucionais ou legais e de duvidosa interpretação do preceito constitucional. A tal ponto que, hoje, depois de tantos anos da revogação da Súmula 330 e sua expressa rejeição pelos próprios Ministros que a aprovaram, como o Ministro gaúcho Ronaldo Lopes Leal, nem os sindicatos ousam agir como Substitutos Processuais ou da categoria e quando o fazem, até hoje encontram magistrados que, com fundamento inexistente, exigem a juntada da lista de trabalhadores com todos aqueles empecilhos que tiveram por escopo inviabilizar a substituição processual criada com a Constituição.

Depois disso, o golpe de morte nos sindicatos brasileiros veio com a Deforma Trabalhista (Temer-Bolsonaro) que, além de tirar a representatividade para atuar no Direito Coletivo do Trabalho, ainda assaltaram os cofres dos sindicatos inviabilizando a simples existência das entidades sindicais, com a revogação da única e certa fonte de recursos que era a contribuição sindical com força de lei e, portanto, livre da pressão dos patrões e da individualização de cada trabalhador.

Agora ter-se-ia que começar tudo de novo devolvendo os Sindicatos e a organização sindical, singelamente, aos preceitos constitucionais estritos dos arts. 8º a 11 da Carta Maior que são o que de mais oportuno e avançado na matéria já ocorreu na legislação brasileira.

6. Uma mensagem de até logo a quem a leu ate aqui.

R.: Antes de mais nada, meu pedido de escusas pela extensão das respostas, aduzindo que não posso evitar o entusiasmo e a emoção que me invadem ao tratar destes temas. Agradeço, mais uma vez, a oportunidade que me oferece o Direito do Trabalho Crítico e me coloco à disposição para qualquer esclarecimento sobre o conteúdo ou para debate dessa matéria em outras oportunidades no próprio blog Direito do Trabalho Crítico como, se for o caso, em qualquer chamado dos nossos leitores.

NOTA PESSOAL: autorizo – enfaticamente – ao colega Oscar Krost, titular do blog a cortar tudo o que for necessário para reduzir o texto ao espaço que lhe é reservado.

“A ILHA DO MEDO” TRABALHISTA: INQUIETAÇÕES DE 1º DE MAIO

Oscar Krost

Um desaparecimento sem vestígios flerta com o impossível e desafia a lógica. E como toda trama é feita de fios e alguma parte deles, cedo ou tarde, acaba desgarrada da rede, parece inevitável a formação de uma trilha a ser seguida.


“Mestre dos magos”, personagem principal do clássico desenho animado “Caverna do dragão”,1 devem ter lembrado uns, o enigma da esfinge, pensaram outros. “Nada a ver”, definiram os mais jovens.


“A ilha do medo”, filme dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Leonardo Di Caprio e Marc Buffalo (2010), em adaptação para o cinema do romance de Denis Lehane (2003),2 narra a história do desaparecimento de uma paciente psiquiátrica e a investigação realizada por dois policiais federais. A história se passa na década de 1950 em uma ilha em que situado um complexo de internação compulsória para delinquentes inimputáveis.

São mais de 2h de voltas e reviravoltas, recheadas de pistas nem sempre simples ou compreensíveis. Seguindo a velha escola hollywoodiana, ao melhor “estilo Scooby-doo”, tudo acaba explicado ao final e sintetizado na frase dita por Di Caprio na cena de encerramento: “Viver como um monstro ou morrer como um homem bom?”


Lembrar de “A ilha do medo” nesse 1º de maio é propor a busca pela reflexão sobre a atmosfera em que os sujeitos subordinados no mundo do trabalho, atendam pelo nome que atenderem – colaboradores, autônomos, parceiros, cooperados ou outros mais criativos – se encontram há algum tempo no Brasil. Os atores juslaborais, com destaque a membros da Advocacia, Magistratura e Ministério Público do Trabalho também não ficam de fora.


Fragmentados, isolados, sem chance de fuga ou previsão de qualquer mudança para melhor. Tal qual no filme, impressões dão lugar a fatos e a experiência refuta narrativas artificiais, falaciosas e inverídicas.


Números e dados confirmam que reduzir Direitos Sociais não aumenta o índice de empregos, degreda os postos de trabalho existentes e reduz poder de compra. Com isto, ocorre a desaceleração da roda de consumo, desaquecendo a economia e afetando a produção, atividade na qual empregos tem sua principal causa.3

Retirar das organizações coletivas o poder negocial, esvaziando o comando do art. 8º, inciso III, da Constituição, pelo qual “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”, e ampliar as matérias de ajuste, tanto na esfera individual, como na coletiva, como fez a Lei nº 13.467/17 (“Reforma Trabalhista”), a exemplo dos arts. 444 e 611-A e B da CLT, leva, verdadeira, à troca de uma legislação protetiva e isonômica pela “lei da selva” ou “do mais forte”, ao melhor estilo “quem pode mais, chora menos”.


Assim, sem um Estado atuante e protetivo, por meio de ações e políticas públicas de cada um de seus 3 Poderes, harmônicos e independentes, não há sociedade possível e minimamente equitativa, tornando o objetivo-promessa constitucional do art. 1º, inciso III – “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” – uma quimera. Sem sindicatos atuantes e fortalecidos, inexiste negociação entre capital e trabalho. E sem emprego decente – ou trabalho decente, como prefere a OIT -, impossível falar em dignidade da pessoa humana.


Que esse 1º de maio nos permita romper com retóricas falaciosas em prol da segmentação da sociedade em ilhas rodeadas por medo, a fim de que possamos aproveitar as pedras atiradas sem trégua contra o Direito do Trabalho, do qual trabalhadoras e trabalhadores são parte, para erguer pontes capazes de unir os arquipélagos de uma vez por todas. Sem isto, seguiremos repetindo a indagação existencial que pouco agrega a uma mudança de cenário: “Viver como um monstro ou morrer como um homem bom?”

1 “Dungeons & Dragons” – nome original – foi uma série produzida entre 1983 e 1985 com duração de 03 temporadas e 27 episódios, produzida pela rede de televisão norte-americana CBS, conforme informações disponíveis em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Dungeons_%26_Dragons_(s%C3%A9rie_animada)>. Acesso em: 1º ma. 2023.

2 Ficha técnica e demais detalhes da obra, disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Shutter_Island>. Acesso em: 1º mai. 2023.

3 A produção acadêmica é vasta sobre esta linha de percepção, merecendo destaque KREIN, José Dari; OLIVEIRA, Roberto Veras de; FILGUEIRAS, Vitor Araújo (Organizadores). Reforma Trabalhista no Brasil: promessas e realidades. Campinas/SP: Curt Nimuendajú, 2019, FILGUEIRAS, Vitor Araújo. “É tudo novo”, de novo: as narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital. – 1ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2021 e LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça ela via de direitos dos motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019.

“VINDE A MIM AS CRIANCINHAS”

Oscar Krost

O dia amanheceu mais cinza no Vale.

Para além do outono e das nuvens que anunciam chuva e frio, o entorno do Rio Itajaí-Açú, em Santa Catarina, sul do Brasil, não despertou nas primeiras horas deste 06 de abril de 2023.

O pesadelo foi real e seus desdobramentos, para além das mídias e das manchetes, povoaram sem piedade o plano virtual com falsas mensagens, pseudo descobertas e um sem número de mentiras.

Massacres vitimam os corpos diretamente violados, mas também toda a vida em seu entorno. Familiares, amigos, vizinhos. Ninguém que integre a espécie humana sai ileso. Não há saída, tampouco proteção.

Há pouco, quase sem crer, nos proclamávamos sobreviventes de uma pandemia viral. Crianças, adolescentes e idosos foram os maiores prejudicados por ocuparem os extremos da linha da vida, possuindo suscetibilidades maiores, padecendo de forma mais grave e até silenciosa do que adultos jovens ou nem tanto.

O Prefeito de Blumenau decretou, pouco após a invasão ao Centro de Educação Infantil Bom Pastor, luto de 30 dias no Município e colocou o Poder Público à disposição dos familiares das crianças. O Presidente da República publicou nota, assim como o Ministro da Educação, condenando o crime e se solidarizando com a comunidade.

Não há quem fique imune, perto ou longe, geograficamente.

Levei 24h para acreditar no que ouvi e li.

Não postei, repostei ou me manifestei no Facebook ou Instagram, buscando via WhatsApp um mínimo de informação e, ainda assim, apenas para tentar aliviar o torpor e a incredulidade de quem precisou parar, processar a ligação recebida e atravessar a cidade para buscar as filhas que estavam em uma ESCOLA NAS IMEDIAÇÕES DO CRIME HEDIONDO.

Uso este espaço, destinado à promoção do estudo e do debate do Direito do Trabalho, para trazer alguns pensamentos que não me deixam “virar a chave”. Imagino que ela possa ter quebrado de tanto forçá-la. O tempo dirá.

As reações gerais à ação específica me causaram tamanho espanto, consciente de que o “mundo do trabalho” também integra o “mundo dos sentires e viveres”.

Apenas “lançando ao ar”:

O autor da tragédia, após cometê-la, se apresentou à polícia e a confessou. Notoriedade e consagração nas redes são seus maiores objetivos, tratando a chacina como um desafio ou aposta da internet (game).

O autor da tragédia não é natural da cidade, vindo de um centro menor do estado vizinho, com pouco mais de 20 anos, para trabalhar como motoboy. A luta pela sobrevivência em um trabalho precário, sob condições que demandam a migração interna.

As vítimas diretas do crime eram crianças em idade pré-escolar, sendo atacadas dentro da própria escola. A violência nua e crua não permite defesa, aniquilando o presente e o futuro, praticada no local por excelência de acolhimento, aprendizagem e desenvolvimento psicossocial.

Professores, familiares e amigos vêem o terror nos olhos e pouco podem diante dele. Desprendimento de qualquer laço de significação ou de pertencimento. Como viver depois disso? Para que? Como voltar ao local de trabalho ou deixar @ filh@ em uma escola, por mais protegida que se declare, conseguindo trabalhar?

Usando o bordão dos hermanos argentinos, marca do fim de um período sombrio de sua história, só resta anunciar em alto e bom tom NUNCA MAIS!

Poderia escrever, descrever e reescrever muitas outras linhas. Preferi parar por aqui, pois a vida é um sopro, como sabiamente afirmou Oscar Niemeyer ao completar 100 anos.

E se uma coisa aprendi nestes 16 anos em Blumenau e no Vale do Itajaí é que diante de uma tragédia, causada pelas águas, pelas terras ou pela mão “humana”, primeiro choramos, depois arregaçamos as mangas e acolhemos quem ainda chora, sem esperar algo ou alguém dizer para reiniciar, mais uma vez, o eterno reconstruir.

Neste chão, todos sabem, há tempos, que NINGUÉM TIRA NOSSA FORÇA.

Mas, talvez, seja o momento de entender que só força não tem adiantado.

Para além dela, é mais do que chegada a hora de reafirmar nossa HUMANIDADE.

Solidariedade hoje e sempre, em Blumenau e por tudo mais.