DIREITO – mas em que mundo tu vive? – DO TRABALHO: UM TOQUE DE FALERO A OPERADORAS E DORES DO DT

Oscar Krost

O Direito é um meio de regulação social composto por normas, gênero do qual fazem parte, como espécies, as regras e os princípios. Miguel Reale, pela teoria tridimensional, contraditoriamente representada por uma figura plana e triangular, entende ser a combinação de fato, valor e norma, cada termo ocupando um dos vértices. Há um sem número de definições sobre o que possa ser Direito, inexistindo uma definitiva e que agrade a todos, sendo impossível não lembrar das palavras do Ministro Potter Stewart, da Suprema Corte Norte-Americana: “Eu não sei definir pornografia, mas reconheço-a quando a vejo“.1

Embora a ninguém seja dado descumprir a lei sob a alegação de desconhecê-la, fato é que as pessoas não só a ignoram, como, mesmo conhecendo, não a entendem. A literatura é pródiga em exemplos, tais como “Diante da lei” e “O processo”, ambos de Franz Kafka.2

Eis o grande nó de um Direito que não admite ser ignorado: de forma dissimulada, aspira a universalidade em sua aplicação, seguindo inerte em relação a se fazer compreender pelos destinatários. Nó absoluta e ideologicamente proposital.3

Aí tem início a missão de Doutas e Doutos, Bacharelas e Bacharéis, diplomad@s em Ciências Jurídicas e Sociais, não de tornar o Direito palatável, enquanto tecnologia estatal de controle social por meio da linguagem, mas seguro, previsível e estável. Nada de rupturas ou desconstruções, causa provável do emprego eufemístico do termo “reforma” para designar a revogação de leis de proteção social, a exemplo da trabalhista.

E como nada é tão ruim que não possa piorar, o Brasil, além de pentacampeão de futebol masculino e 9º colocado no ranking mundial de desigualdade social,4 tem o maior número de instituições de ensino oferecendo o curso de “Direito”. Exatamente: HUM MIL, QUINHENTAS E DUAS (1.502) faculdades. Mesmo com avaliações de alunos e instituições pelo Ministério da Educação, não é possível assegurar patamares mínimos de qualidade. Vide os índices de aprovação – ou seriam reprovação? – nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual recomenda apenas TREZE POR CENTO (13%) do total.5

Passamos, então, à próxima fase: não são apenas dout@s que precisam explicar o Direito à população, pois para isso precisariam, primeiro, entendê-lo minimamente para além da letra da lei. Uma dica: se alguém usa “lei” e “Direito” como sinônimos, das duas, uma: não concluiu o curso de Direito ou não aprofundou os estudos.

Não entendam isso como uma crítica ao Positivismo Jurídico, na medida em que não há Direito Estatal sem ele e, por consequência, Estado Democrático de Direito. A ponderação se orienta exatamente em sentido contrário.

Mais do que importante, faz-se essencial que Operadoras e Operadores jurídicos tenham presente a ideia de Direito enquanto sistema normativo estruturado a partir da Constituição, com regras e Princípios. Esqueçam, por ora, a pirâmide de Kelsen, substituindo-a por algo mais parecido com feixes de neurônios e suas sinapses em interação ou com os sistemas dinâmicos e abertos, tal como a Internet.

Desse eixo elementar, tudo mais não passa de mera consequência, atraindo a máxima atenção do Estado, de particulares e até mesmo de entes despersonalizados, não admitindo exceções. Para além do jurídico em sentido estrito, é preciso que se atente à vida e à política não partidária, conectando às fontes materiais e ao tecido social pulsante.

Qualificar os saberes jurídicos exige dosar a forma da linguagem, elemento que em excesso, envenena, mas que na medida adequada, resolve.

A simplificação da linguagem jurídica já foi pauta de diversas associações de Magistrad@s, com praticamente a mesma insistência com que alguns redutos pregam seu uso técnico/preciso. “Menos blá-blá-blá e mais Foucault” poderia ser o título deste texto, diante do “cabo de guerra” sobre o uso do vernáculo, o que não ocorreu por receio de afugentar leitoras/es.6

Foucault não foi e jamais será um expoente do Direito. Sorte a dele, sorte do mundo.

Graças a isso, sua obra contribuiu e segue contribuindo com múltiplas áreas do conhecimento. Mas Foucault, gente jurídica, vai muito além do clássico “Vigiar e punir”.

Sua obra abrange a “microfisica do poder” e “as palavras e das coisas”,7 revelando como forças transitam para além de prédios, togas e brasões. Demonstra como as trocas acontecem, no dia a dia, de modo quase invisível, como o vento, por intermédio das relações.

Não são estruturas físicas que aprisionam, ou não apenas elas, mas fundamentalmente as relações de poder em torno de tudo e de tod@s. O poder não sai de um e chega até outro pelo chicote, mas atravessa um, atravessa outro, perpassando a própria História sem barreiras.

Foucault é uma leitura densa, complexa e, por vezes, um tanto longa. Chega a doer em alguns trechos, pois para curar, muitas vezes é preciso que seja assim.

Mas como alternativa, confirmando a riqueza do Direito, ao não possuir respostas únicas para cada situação, pode-se desfazer falácias e entendê-lo a partir do olhar não jurídico, dando oportunidade à prosa e à poesia.

Eduardo Galeano pode ajudar, poetas em geral, na mesma medida e, por que não, Franz Kafka? Recomendo, sem dúvida alguma, um pensador específico: José Falero, autor da nova geração e cuja apresentação já foi feita no instagram no perfil @direitodotrabalhocritico, na postagem de 06 de janeiro de 2022.

Ao invés de conceituar os Princípios da Primazia da Realidade e da Razoabilidade, como aqueles pelos quais os fatos prevalecem sobre as formas, e tudo o que fugir a um padrão médio de qualidade e quantidade em determinado tempo e espaço deve ser modulado segundo um juízo de proporcionalidade, Princípio maior, que tal ir além e agregar a leitura de “Mas em que mundo tu vive?” Um confronto entre a ideia e a realidade.

Embora este seja o título do mais recente livro de Falero,8 a referência feita se dirige ao texto de abertura da obra, uma coletânea de crônicas, especificamente a um subcapítulo de “assalariados”, com suas sete potentes páginas. Sem dar spoilers, o “Mas em que mundo tu vive?” trata da experiência de dois trabalhadores da construção civil e suas reflexões diante das agruras de sua condição. O ponto alto da narrativa é a pergunta que lhe dá nome e também ao livro, repetida várias vezes, mas em um bruto tom único.

Assinar documentos sem ler ou lendo, mas precisando do emprego para sobreviver é razoável?

Mas em que mundo tu vive?

Encontram-se sob o manto da primazia da realidade anotações em cartões-ponto variáveis, com minutagem não superior a 5 por registro?

Curto e grosso: mas em que mundo tu vive?

Trabalhar sem folga, intervalo ou respiro por 12h ao longo de um ano inteiro é viável a motoristas, camareiras, vendedores e auxiliares de serviços-gerais?

Poxa vida: mas em que mundo tu vive?

Lido de outro modo e direto da fonte, com pitadas de spoiler:

Se a máquina vai derrubar o bagulho, passei o dia martelando essa porra pra quê? Sou palhaço, por acaso?’”9

-Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Tu pensa que água é de graça?”10

A cereja do bolo foram os sacos de cimento. Trezentos sacos de cimento, pra ser preciso”11

Basta! Não cabe mais nos contentarmos em resolver processos. É preciso educar e sermos educad@s, pacificar conflitos, humanizando relações. Quem busca justiça, clama, antes de qualquer coisa, por atenção e cuidado.

Mas atenção: de nada adianta sair do mundo paralelo do Direito, como chamava Pontes de Miranda, e mergulhar em um metaverso qualquer. O upgrade deve ser do olhar, como uma ignição a outros sentidos, forjando novos sentidos, em ressignificações, voltadas para a alteridade.

E como ensina a letra de “Herdeiro da Pampa pobre”, canção de Gaúcho da Fronteira e Vaine Darde, regravada por Engenheiros do Havaii no início da década de 90, “porque eu não quero deixar pro meu filho a pampa pobre que herdei do meu pai!

Mas, antes de encerrar, me diz, numa boa, em que mundo tu vive?

1 PEDRA, Marcelo Nogueira. A insensatez da marcha midiática, disponível em <https://www.anamatra.org.br/artigos/1014-a-insensatez-da-marcha-midi-tica-045699089249315755>. Acesso em: 20 jan. 2022.

2 KROST, Oscar. Diante da lei” de Kafka e as audiências por videoconferência na Justiça do Trabalho, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/07/31/diante-da-lei-de-kafka-e-as-audiencias-por-videoconferencia-na-justica-do-trabalho/>. Postado em: 31.07.2020. Acesso em: 20 jan. 2022.

3 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. Capítulo 2, “ideologias jurídicas”, p. 13.São Paulo: Brasiliense, 1999 (Coleção primeiros passos; 62).

4 MACEDO, Nat. Brasil é o nono país com mais desigualdade social no mundo, Edição do Brasil, disponível em <http://edicaodobrasil.com.br/2021/07/09/brasil-e-o-nono-pais-com-mais-desigualdade-social-no-mundo/#:~:text=O%20Brasil%20%C3%A9%20o%20nono,do%20Banco%20Mundial%20(Bird)>. Publicado em: 09 jul. 2021. Acesso em: 20 jan. 2022

5 FREITAS, Hyndara. Basil tem mais de 1.500 cursos de Direito, mas só 232 têm desempenho satisfatório. JOTA Carreira, disponível em <https://www.jota.info/carreira/brasil-tem-mais-de-1-500-cursos-de-direito-mas-so-232-tem-desempenho-satisfatorio-14042020&gt;. Públicado em: 14 abr. 2020. Acesso em: 20 jan. 2022.

6 Ver KROST, Oscar. Direito do Trabalho descomplicado para adultos, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/09/16/direito-do-trabalho-descomplicado-para-adultos/&gt>. Postado em: 16 set. 2021. Acesso em: 20 jan. 2022.

7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica Roberto Machado. 9ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019 e FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. 10ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2016 (coleção tópicos).

8 São Paulo: Editora Todavia, 2021.

9 FALERO, José. Mas em que mundo tu vive? São Paulo: Todavia, 2021, p. 18.

10FALERO, p. 19.

11FALERO, p. 20.

DE BRANCAS A COLORIDAS, AS PAREDES DO LABIRINTO: GÊNERO, PANDEMIA E HOME OFFICE

Viviane Vidigal 1 2

Maíra Morato3

AS CORES E AS PAREDES

No começo da pandemia, as paredes do local onde uma das autoras deste texto trabalhava, excepcionalmente de casa, enquanto seu filho estava na escola, eram brancas. Certo dia, ainda nos primeiro meses de isolamento social, enquanto trabalhava e prestava atenção a uma reunião realizada por videoconferência, seu filho pintou com canetinha hidrocor essa parede. Alguns minutos sem lhe dar atenção bastaram para a realização da “obra de arte” do pequeno pintor contemporâneo. O menino não foi repelido e, então, no dia seguinte, fez novamente. E, assim, nos dias e meses que se seguiram. Enquanto o filho colorisse as paredes, a mãe poderia trabalhar (MORATO; VIDIGAL, 2021).

Este artigo, no entanto, não é sobre cores e pintura. Tem como escopo apresentar alguns debates centrais acerca do trabalho contemporâneo. Trata-se da temática do home office. Abordar-se-ão questões de repercussão mais ampla em torno de um modelo de expediente que vinha sendo adotado de maneira lenta e difusa, mas que tem a possibilidade de espraiamento quando vier “o novo normal”, isto é, com o fim, ou pelo menos o arrefecimento, da ação do SARS-CoV-2 (MORATO; VIDIGAL, 2021).

O isolamento social decorrente da necessidade de evitar a propagação do coronavírus levou para o trabalho à distância um contingente ainda não claramente contabilizado de trabalhadores(as). Antes da pandemia, o IBGE anunciara, em 2018, um total de 3,8 milhões de pessoas trabalhando “no domicílio de residência”. Na semana de 21 a 27 de junho de 2020, já no contexto da PNAD-Covid-19, o IBGE estimou em 8,6 milhões o número de brasileiros que “trabalhavam remotamente”4. Não há dúvida, portanto, que a pandemia evidenciou, pelo menos em parte, as potencialidades das atividades laborais exercidas remotamente, mas quais são as tensões que as envolvem?

O contexto é o pandêmico, a análise recai sobre o home office, o recorte é o de gênero e a perspectiva é o trabalho das mulheres, em especial as que são mães. A partir do conceito do labirinto de cristal, sustentamos que a casa se tornou um labirinto onde se encontram obstáculos, dada a divisão sexual do trabalho na sociedade e suas consequências que ficaram ainda mais visíveis e agudizadas com a pandemia.

O LABIRINTO DE CRISTAL

O conceito de Labirinto de Cristal utilizado neste artigo foi o de Betina Stefanello Lima (2013), cunhado em sua pesquisa de mestrado sobre a carreira científica de mulheres na Física. O labirinto de cristal indica que “os obstáculos encontrados pelas mulheres, simplesmente por pertencerem à categoria ‘mulher’, estão dispostos ao longo de sua trajetória” (LIMA, 2013). A presença dos obstáculos apresenta suas consequências, tais como: desistência de uma determinada carreira, sua lenta ascensão e estagnação em um dado patamar profissional, por causa dos diversos desafios e armadilhas dispostos no labirinto. Assim, as contribuições da autora presentes na metáfora do labirinto são o entendimento de que os obstáculos estão presentes ao longo de toda a trajetória profissional feminina e não somente em um determinado patamar, bem como a concepção de que as barreiras e armadilhas do labirinto não estão somente associadas à ascensão na carreira, mas também ao ritmo do ganho de reconhecimento de atuação (LIMA, 2013).

A leitora deste texto pode mentalmente recorrer a sua memória e relembrar algum episódio que presenciou ou ouviu falar sobre algum prêmio, alguma promoção, algum cargo, alguma vaga, algum concurso, alguma publicação, em que foi selecionado o candidato homem, enquanto a voz da narradora de sua cabeça sussurrava “ela era muito melhor…”. Nas articulações patriarcais, machistas e misóginas que nos organizam, a mulher para se destacar no mercado de trabalho precisa ser extraordinária em relação ao homem médio. As mulheres trabalhadoras (que não soltam fogos pelos olhos e não voam) são postas às margens, na invisibilidade, nas sombras e no ostracismo, para que seu trabalho seja apropriado e divulgado por aqueles com capital simbólico, para que, enfim, o pacto narcísico masculino possa aplaudir seus semelhantes.

Apesar de sua concretude, os obstáculos do labirinto também são transparentes como um cristal e podem passar despercebidos, já que suas armadilhas são construídas na massa cultural (LIMA, 2013) e social. As mulheres são obrigadas a suportar estes obstáculos do labirinto de cristal, invisíveis a olho nu, pois “escapam à formalidade da lei e encontram poucas formas de resistência, uma vez que sua naturalização não facilita a sua percepção” (LIMA, 2013, p. 889). Dentre os vários obstáculos enfrentados pelas mulheres em suas carreiras pode-se citar a maior responsabilidade pelo trabalho reprodutivo, o que as leva a abandonar estudos ou carreiras, ou mesmo se inserir de forma insatisfatória no mercado e com menor tempo disponível às atividades. Junto a isso, estão submetidas ao discurso da meritocracia como elemento para o desenvolvimento profissional, o qual “desgeneriza” as experiências, de forma a não reconhecer ou minimizar os problemas relacionados ao gênero (MORATO; VIDIGAL, 2021).

Para as mulheres negras, o labirinto de cristal é ainda mais estreito e tortuoso (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021). O “dispositivo de racialidade” (CARNEIRO, 2005) age no labirinto para invisibilizar mulheres negras e até mesmo os obstáculos que elas enfrentam diariamente, deixando cair sobre elas o peso pela não ascensão na hierarquia social (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021). As mulheres negras no mercado de trabalho ainda tem que lidar com as “Imagens de Controle” (HILL COLLINS, 2019) que servem para aprisioná-las em lugares reais ou simbólicos. Estas objetificam corpos negros e influenciam todas as formas de relações, mas, sobretudo, são utilizadas para justificar a posição de cada sujeito na estrutura de poder, no caso das mulheres negras, naquele lugar da margem e da servidão (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021). Encontrando-se inseridas em atividades mais precárias, ocupando a maior parte dos trabalhos manuais e domésticos, mal pagos e desprotegidos socialmente, se inserindo no chamado “matriarcado da miséria”5 por ter sua história marcada pela exclusão social e discriminação (CARNEIRO, 2011, p. 121).

Damos destaque ao conceito de labirinto de cristal porque o texto propõe uma análise para além do teto de vidro6 sob suas cabeças, o patriarcado (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021), mas os desafios que as mulheres enfrentam diariamente, as barreiras e obstáculos que encontram no âmbito laboral ao longo de toda trajetória profissional, e que no atual contexto, são reproduzidos dentro de suas casas. A seguir demonstraremos como os obstáculos deste labirinto se constroem, justamente, com base em papéis sociais que são construídos e definidos para o sexo masculino e feminino.

A DIVISÃO SEXO-RACIAL DO TRABALHO

A divisão sexual do trabalho é a forma, modulada histórica e socialmente, de divisão do trabalho decorrente das relações sociais entre os sexos. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado e observa dois princípios organizadores: “o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher)” (HIRATA; KERGOAT, 2007).

A emergência do conceito da divisão sexual do trabalho teve um papel muito importante para questionar o que era a definição clássica de trabalho, problematizando que o debate de classe não explicava e não dava conta do conjunto da realidade do trabalho. As feministas que discutiram a divisão sexual do trabalho estavam no campo do marxismo e eram prevalentemente brancas, transcurando, assim, o aspecto constitutivo da divisão social do trabalho: a raça (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021). Isso porque a divisão sexual do trabalho produz e se reproduz através do gênero em conjunto com classe e raça, sendo que os constrangimentos sociais, culturais e materiais se apresentam de forma diferente para as mulheres a depender da cor de sua pele e de sua classe social, sendo que a generalização da condição somente baseada no gênero pode vir a ocultar as diferentes formas de opressão.

A par das diferenças e dos privilégios distribuídos de forma diversa entre as mulheres, em um primeiro momento, a divisão sexual do trabalho traz a aparência de haver uma destinação dos homens ao trabalho chamado produtivo e uma destinação prioritária das mulheres ao trabalho reprodutivo. Mas o que se viu foi que as mulheres estão simultaneamente nas duas esferas: no trabalho produtivo e no trabalho reprodutivo. Portanto, a divisão sexual do trabalho não se restringe ao plano dicotômico de separação entre trabalho produtivo e reprodutivo; ela se repõe, também, na própria esfera produtiva com mulheres ocupando tradicionalmente nichos específicos do mercado de trabalho, os chamados por BRUSCHINI e LOMBARDI (2000) de “guetos” ocupacionais femininos.

A forma de desenvolvimento capitalista produziu historicamente uma vida cotidiana em que o tempo social que conta, ou seja, o tempo de trabalho que tem valor, é aquele empregado na produção de mercadoria, gerador de mais-valia. O trabalho produtivo das mulheres ainda se manifesta como um prolongamento de atividades do trabalho reprodutivo, sendo subjugado sob a perspectiva da proteção jurídica laboral e do binômio tempo-valor (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021). A velha máxima capitalista de que “tempo é dinheiro” não se aplica ao universo feminino, pois “para as mulheres, tempo não tem sido dinheiro” (PEREIRA; NICOLI, 2020, p. 528). O trabalho reprodutivo exercido por elas é dissociado das ideias de valor e de tempo de trabalho, transformado em outras coisas, seja em “afeto, em mágica, em amor, em obrigação, naturalização, em candura, em instinto, em destino, em mil expectativas e papéis sociais, morais e religiosos que tentam ocultar a força desses tempos e valores para a produção e sustentação da vida e da economia” (PEREIRA; NICOLI, 2020, p. 529). Trata-se de um trabalho travestido de amor, diário, gratuito e invisibilizado.

Além disso, o fato de o trabalho reprodutivo não ser remunerado acaba refletindo em um empobrecimento contínuo das mulheres e em sua inserção insatisfatória no mercado de trabalho produtivo (FEDERICI, 2017), mantendo desigualdades salariais, de evolução na carreira e de outras ordens em relação aos homens (PEREIRA; NICOLI, 2020), pois o trabalho não remunerado lhes retira tempo e energia para se dedicarem de forma igual, tempo este que sequer existe para o cronômetro capitalista. Em um paradoxo cruel, exige-se das mulheres a perfeição, não basta que sejam boas no que fazem, medianas, é preciso que se esforcem muito mais do que homens para terem um mínimo de visibilidade. Mas a busca pela perfeição demanda tempo e como manter essa busca se não se tem tempo? É a partir desse cenário que problematizaremos o trabalho produtivo e reprodutivo na pandemia, quando realizado no espaço da casa.

HOME OFFICE NA PANDEMIA

A pandemia COVID-19 veio a acentuar e escancarar a desigualdade entre os gêneros no trabalho. Inúmeras pessoas foram levadas a realizar trabalho remoto, em suas residências, a fim de evitar o risco de contágio. Além disso, o fechamento de creches e escolas contribuiu com a alteração da rotina doméstica e acrescentou mais algumas atribuições às mulheres, que assumiram múltiplas jornadas. De acordo com Zanoni, Bezerra e Bridi:

[…] faz-se necessário compreender como o trabalho remoto se configura em razão da assimetria entre os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres e que ainda prevalecem bem demarcados na sociedade, apesar dos mudanças culturais, politicas forcejadas pelas lutas sociais em torno da igualdade entre os sexos. […] as relações de trabalho e atividades domésticas (não remuneradas) se sobrepõem, fazendo com que elas trabalhem mais, pois as tarefas domésticas permanecem distribuídas desigualmente entre homens e mulheres. (ZANONI; BEZERRA; BRIDI, 2020, p. 02).

Ao analisarmos os dados estatísticos quanto às horas trabalhadas, no trabalho produtivo (remunerado), as mulheres não ultrapassam os homens, mas se somarmos o trabalho reprodutivo (não remunerado), elas trabalham em média 7,5 horas a mais que os homens por semana, segundo estudo do IPEA com dados do IBGE7. Em decorrência da distribuição desigual do trabalho de cuidado, a produtividade do trabalho feminino não se equivale à produtividade performada por um homem, pois o tempo de qualidade que a mulher consegue se dedicar integralmente ao trabalho remunerado diminui.

Zanoni, Bezerra e Bridi analisam que “as mulheres, devido ao acúmulo de tarefas domésticas e de cuidado dos filhos, são mais interrompidas durante suas jornadas de trabalho e necessitam de mais dias para realizarem as mesmas atividades que seus colegas homens” (ZANONI; BEZERRA; BRIDI, 2020, p. 03). Ainda de acordo com Lawson “as mulheres e meninas que assumem essa responsabilidade têm pouco tempo para si mesmas e, portanto, não conseguem satisfazer suas necessidades básicas ou participar de atividades sociais e políticas (2020, p. 12).

Em relação às dificuldades enfrentadas no trabalho remoto, as diferentes percepções evidenciam recortes de gênero:

Para as mulheres, apareceu com frequência expressiva, termos relacionados à dificuldade de concentração e às interrupções que sofrem durante a atividade laboral em casa. Já para os homens, o termo “dificuldade” aparece conectado à questão de falta de contato com os colegas (ZANONI; BEZERRA; BRIDI, 2020, p. 4).

Uma matéria da Folha de São Paulo8 intitulada “Crianças ganham mais tempo com as mães na quarentena”, de maio de 2020, é interessante para observarmos como a maternidade em home-office está sendo documentada e retratada no contexto da pandemia. O referido texto poderia ter sido escrito pelos filhos das autoras e ter outro título: “Das maravilhas de ficar em casa”. Pela perspectiva das crianças, com algodões doces e a pipoca, a matéria não faz perguntas fundamentais sobre a situação das mulheres que trabalham. Trata-se da romantização da quarentena como se fosse um sonho realizado para mães e crianças, demonstrando a realização do patriarcado: as mulheres confinadas de volta ao lar, ao seu lugar de origem, a domesticidade e a maternidade como a mais nobre, importante e mais que isso, única função que a mulher deve cumprir na sociedade. Dizemos que o texto é sobre a maternidade, não a paternidade, porque a matéria em nenhum momento cita a figura paterna. A palavra pai não aparece, revelando-se se tratar de um texto sobre as mulheres e a privatização do cuidado (MORATO; VIDIGAL, 2021).

De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)9, 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, sendo que, entre 2005 e 2015, o número de famílias compostas por “mães solo” subiu de 10,5 milhões para 11,6 milhões, segundo dados do IBGE (2017). Embora o trabalho de cuidado diga respeito a toda sociedade, tem sido realizado principalmente por mulheres, “sendo definido historicamente, como trabalho de mulher […] lugar de mulher.” (BIROLI, 2018, on line) e estas são “responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado […] Mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado […]” (LAWSON et al, 2020, p. 10). O care remete-nos à questão de gênero à medida que essa atividade está profundamente naturalizada. As mulheres são responsabilizadas – e se responsabilizam – pela execução cotidiana e permanente do trabalho doméstico e de cuidados.

O papel da mulher na sociedade é ancorado na ideia de que esta é responsável pelos cuidados a serem dispensados à sua família, fundado no conceito do amor maternal (FEDERICI, 2017). Não se trata de um dom natural, um talento especial ou um fenômeno biológico para essas atribuições, sendo necessários muitos anos de “socialização e treinamento diários, realizados por uma mãe não remunerada, para preparar a mulher para esse papel” (FEDERICI, 2019, p. 43). Há, sim, uma construção social que produz e reproduz, a partir de valores e convenções tradicionais de gênero, a associação entre mulheres e cuidado, ao mesmo tempo que desassocia dos homens estas mesmas habilidades (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021).

A despeito de outros modelos de organização do trabalho terem surgido, tal como o paradigma da parceria, onde homens e mulheres seriam parceiros no desempenho das tarefas domésticas, este não teve o êxito desejado, pois a responsabilidade e administração das tarefas do lar ainda continuou, em grande parte, a ser atribuição das mulheres (HIRATA; KERGOAT, 2007). Com o isolamento social, o homem foi para a casa, mas as tarefas domésticas não foram assumidas por eles (MORATO; VIDIGAL, 2021).

Os papeis sociais atribuídos à mãe e ao pai nos cuidados dos filhos ainda são bastante diferentes, pois “apenas” se espera da mãe uma entrega sem limites, uma completa doação de seu tempo e uma responsabilidade mental extra. Quando Milly Lamcombe (2021)10 diz que “nasceu para ser pai” denuncia a disparidade de papeis sociais, pois enquanto o contrato da paternidade se fundamenta em articulações patriarcais que permitem um cuidado com pausas e até o descuido, o contrato da maternidade pressupõe uma dedicação plena e integral. Quantos homens não caracterizariam suas atividades domésticas como uma “ajuda” às suas companheiras? (DAVIS, 2016, p. 225).

No contexto pandêmico, mulheres com filhos, além do próprio trabalho e da casa, se desdobram para cuidá-los e ajudá-los com aulas à distância. Afinal, para as mulheres, cuidar dos filhos não se resume a garantir a alimentação e a higiene: cuidar inclui brincar, conversar, dar atenção, etc. Para além da “carga mental”11 que o trabalho doméstico e de cuidado naturalmente envolve, as pesquisas revelam que por não conseguir dar conta de tudo isso, a maioria das mães trabalhadoras começam a se sentir frustradas. As mães provavelmente não querem deixar o filho em frente às telas de TV, smartphone e computador o dia inteiro ou deixá-los pintar as paredes da casa. No entanto, o contexto dificulta seguir as diretrizes médicas, que recomendam no máximo duas horas de tela por dia para crianças, por exemplo. E disso, surge o sentimento de culpa. Se por um lado elas recebem palavras de apoio, para serem cientes que estão fazendo o melhor possível em uma situação atípica, por outro recebem a cobrança por produtividade que não se interrompe (MORATO; VIDIGAL, 2021).

ARMADILHAS NO LABIRINTO

As várias jornadas cumpridas pelas mulheres e sua situação de exaustão é romantizada ao se felicitar aquelas que aguentam tudo sem reclamar, relacionando esta imagem a aspectos positivos, à força, às “mulheres-maravilhas“, ao mesmo tempo que àquelas que recusam algumas destas obrigações naturalizadas ou retiraram um tempo para si, são atribuídos aspectos negativos, como o egoísmo e a falta de amor à família. A sociedade também as julgam e as punem quando não querem ter filhos. Intenta-se embutir o sentimento de culpa em quem escolhe não ter filhos, além de serem estigmatizadas por não cumprir o seu “destino”. A liberdade de escolha feminina precisa ser tolhida e a maternidade é apresentada socialmente como compulsória. É negligenciado nas pautas o debate sobre a invisibilidade da pressão que sofrem para se tornarem mães e as consequências dela. A quem e ao que serve o imaginário social de que mulher só será completa se for mãe?

A sociedade que julga a mulher que não quer ter filhos é a mesma que não dá empregos, oportunidades, promoções e proteção trabalhista e social a que os têm e ainda tece “elogios” àquela que “todas as manhãs deixa os sonhos na cama, acorda e põe sua roupa de viver” (LISPECTOR, 1998). O termo “mulher guerreira” é frequentemente usado para elogiar mulheres que se desdobram entre múltiplas jornadas. A guerreira que carrega sozinha as atividades que deveriam ser compartilhadas e protegidas pelo Estado. A normalização da sobrecarga da ‘mulher guerreira’ faz com que muitas mulheres desenvolvam o burnout e a ansiedade. Quanto desse cansaço é interessante para um sistema que se estrutura e usufrui dele? A manutenção das mulheres sobrecarregadas diz respeito à manutenção da estrutura social. Na sociedade capitalista, patriarcal e neoliberal a romantização da mulher guerreira não se dá à toa: é estratégia para que continue produzindo e acumulando jornadas. Portanto, a romantização oblitera uma análise social mais profunda, tratando-se de uma armadilha para a manutenção do status quo. São vistas como ameaça ao sistema aquelas que rompem com as convenções sociais que aprisionam e não interpretam os papeis de gênero que as fazem reféns.

O BORRAMENTO DAS PAREDES

A tecnologia tem contribuído ainda mais para modificar nossa percepção de tempo e espaço, de outrora delimitação bem marcada daquilo que era o local de trabalho e daquele que era o espaço doméstico, percebido como o local de descanso e lazer. Em “The Time Bind: when work becomes home and home becomes work”, a socióloga norte-americana Arlie Hochschild (2010), já deixava claro como as fronteiras entre a vida privada e o trabalho estão se tornando cada vez mais borradas, como o intitulado do livro “Quando o trabalho se torna casa e a casa se torna trabalho”.

No contexto da pandemia e do home office, as fronteiras do tempo de trabalho, de cuidado e de lazer se diluem, os aparelhos eletrônicos e as mídias sociais acompanham os sujeitos em todas as suas experiências, modificando a forma como o tempo de trabalho se apresenta (VIANA, TEODORO, ANDRADE, 2019). E esta situação é exposta nas câmeras constantemente ligadas, nos microfones não mutados, nas interrupções dos filhos, nas birras e gritos diante das câmeras, na exposição da dinâmica familiar. Acumulando funções pelo fechamento das creches e das escolas, as tornando professoras de todas as matérias, técnicas de informática, psicólogas. Estendendo as jornadas até altas horas da noite e finais de semana para que todos os trabalhos, visíveis e invisíveis, sejam realizados.

Portanto, da perspectiva das mães em home office compulsório, considerando a cartografia do trabalho brasileiro, correndo riscos para o sustento de sua família, elas continuam sendo cobradas normalmente por produtividade e tendo que manter jornadas duplas/triplas, realizadas em metros quadrados sem privacidade, sem uma separação entre sua vida pública e sua vida privada e entre tempo/espaço de trabalho e de lazer. Quando o trabalho invadiu o lar e o lar invadiu o trabalho, a casa tornou-se o labirinto, cheia de obstáculos, na qual a mulher não tem um tempo ou um quarto para chamar de seu12.

Por fim, as mães que contavam com as escolas e as avós para tomarem conta dos filhos, agora encontram escolas fechadas e os idosos pertencentes aos grupos de risco. A rede de apoio desfez seus laços e as mães se encontram em outro tipo de confinamento. No labirinto da casa há um confinamento pelo isolamento de uma rede de apoio.

A DESCONEXÃO DO LABIRINTO QUE APRISIONA

Diante deste quadro, essa configuração trabalhista nos faz refletir sobre a desconexão. Silva (2020) comenta que o direito à desconexão representa uma possibilidade de não sujeitar o(a) trabalhador(a), fora do horário contratual de trabalho, a meios telemáticos de controle, incluindo ferramentas de acesso remoto como e-mail ou outros meios de comunicação.

O período de descanso é, conforme proposições de Testi (2019), tipicamente a materialização do direito à desconexão. Assim sendo, há que se levar em conta que descanso é pausa no trabalho, que só poderá ser cumprida se ocorrer a desvinculação plena do trabalho. Desse modo, “ainda que o aparelho eletrônico não seja acionado concretamente, mas, sob a ameaça de sê-lo a qualquer instante, representa a negação plena do descanso” (TESTI, 2019, p. 34), assevera a autora reconhecendo tratar-se isso de uma tarefa árdua para o (a) trabalhador (a), por conta do receio de se perder o trabalho, uma condição que o(a) faz subjugar sua saúde ao aumentar sua carga de trabalho, comprometendo seus momentos de lazer, descanso e convívio familiar e social. Assim, “garantir um direito de se desconectar do trabalho para preservação da privacidade e da saúde se torna um desafio, impondo a inutilização de ferramentas digitais para o labor fora do expediente de trabalho” (TESTI, 2019, p. 34). Dessa forma, ainda estão por serem definidos os limites e regulações para que a classe trabalhadora possa se desconectar.

É preciso pensar no direito à desconexão a partir de perspectiva de gênero, considerando a divisão sócio-racial do trabalho brasileira. Não adianta o Direito do Trabalho ter a igualdade de gênero apenas como retórica, se as leis estão baseadas em um sistema que, a priori, exclui as mulheres e invisibiliza mulheres negras13. Não basta se desconectar do ambiente de trabalho produtivo, sendo preciso dar opção às mulheres de se desconectarem também do trabalho doméstico e de cuidados. A doutrina juslaboral brasileira necessita desenvolver projetos protetivos à luz dos feminismos plurais e incluir os femininos no sujeito epistêmico da norma trabalhista e social para que possa garantir a desconexão do labirinto que aprisiona.

A CASA COMO LABORATÓRIO DO CAPITAL

Um dos questionamentos trazidos pela pandemia é: e se o home office virar uma solução definitiva? Segundo a empresa Siemens, a pandemia mostrou que o trabalho remoto é possível numa escala muito maior do que se pensava anteriormente e, inclusive, oferece muitas vantagens. O conselho diretivo da Siemens adotou o chamado “Modelo de trabalho no novo normal”, que deve tornar possível o trabalho independentemente da localização, numa escala muito maior.

De acordo com este documento, “O objetivo é que funcionários do mundo todo possam trabalhar de forma remota, em média, de dois a três dias por semana – sempre que isso fizer sentido e for viável”, anunciou o grupo de tecnologia de Munique em meados de julho. “Associado a isso está um estilo diferente de gestão que se baseia em resultados, e não no trabalho presencial”, completou o CEO da companhia, Roland Busch.

Antunes (2020) afirma que os bancos, que exercitam uma pragmática de enorme enxugamento há décadas, uma vez que têm se utilizado intensamente do arsenal digital, já devem estar fazendo os cálculos de quanto vão lucrar com a introdução do home office e do teletrabalho. O CEO da Petrobras somou-se ao coro ao dizer que a estatal pode “trabalhar com 50% das pessoas em casa” e assim “liberar vários prédios que custam muito”. Desse modo, o capital está fazendo seus experimentos na pandemia- que tem sido um laboratório (ANTUNES, 2020).

Há de se questionar se este cenário irá se estender para o chamado “novo normal” e quais serão os novos caminhos a serem traçados pelas mulheres na busca pelo seu direito à desconexão e a busca pela divisão equitativa do trabalho de cuidados. Enquanto houver cores as autoras poderão trabalhar. Voltará a parede a ser branca quando a pandemia acabar?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZANONI, Alexandre Pilan; BEZERRA, Giovana Uehara; BRIDI, Maria Aparecida. Banco de dados gênero: O trabalho remoto e as condições das mulheres no contexto da pandemia Covid-19. Curitiba: GETS/UFPR; REMIR, 2020.

1 Uma primeira versão deste artigo foi publicada nos Anais do XVII Encontro Nacional da ABET. Ver: Morato e Vidigal (2021).

2 Doutoranda e Mestra em Sociologia pela UNICAMP (SP, Brasil), orientada pelo professor Dr. Ricardo Antunes. Pós-graduada em Direito do Trabalho pela UNISAL. Integrante do grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT). Professora e mãe de uma criança.

3 Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade FUMEC. Membra do Grupo de Pesquisa RED – Retrabalhando o Direito, vinculado à RENAPEDTS. Advogada e mãe de duas crianças.

4Não se descura que existem diferenças conceituais entre trabalho remoto, teletrabalho e home office. A esse despeito, tal debate não é central ao recorte que se propõe o texto. Para se aprofundar no assunto indicamos ao leitor o artigo: KROST, Oscar. Teletrabalho, Covid-19 e a Medida Provisória nº 927/20: Reduzindo distância entre meios e fins. In MOLINA, André Araújo; COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; MARANHÃO, Ney. (Coordenadores). Anais do 1o Ciclo de Palestras do grupo eletrônico Ágora Trabalhista: Direito e Processo do Trabalho no ano de 2020. São Paulo: OAB/SP ESA, 2020, posição 1.862-2.205/16.086 (e-book).

5 Expressão citada por Sueli Carneiro (2011, p. 121) e cunhada pelo poeta negro Arnaldo Xavier.

6 O teto de vidro é um conceito bem conhecido na área dos estudos de gênero e feministas e tem sido utilizado como metáfora para representar o obstáculo invisível, porém concreto, que impede as mulheres de chegarem a determinadas posições de prestígio nas profissões (VIDIGAL; ALBUQUERQUE, 2021).

7 Informação disponível em: 170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf (ipea.gov.br). Acesso em 05 de abril de 2021.

8 Informação disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/criancas-ganham-mais-tempo-com-as-maes-na quarentena.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR2zXUCBpfzRct5nwF_3OTsn5KqDbgUdNID2Z9PYwpRcg2m3rCMvwXFnvVg. Acesso em 15 de abril de 2021.

9 Informação disponível em: http://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html. Acesso em 15 de abril de 2021.

10 Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/milly-lacombe-eu-nasci-para-ser-pai, acesso em 04 de janeiro de 2022.

11 Monique Haicault (1984) traz à tona a dimensão emocional que os trabalhos doméstico e de cuidado envolvem, os quais podem ocasionar transtornos mentais, dados os níveis de exigência e dedicação. Esse custo emocional, que se reflete também na dimensão material, é chamado de “carga mental” (VIDIGAL, 2021).

12 A Room of One’s Own é um ensaio de Virginia Woolf publicado em 24 de outubro de 1929. O ensaio foi baseado em uma série de palestras ministradas em outubro de 1928 em Newnham College e Girton College, duas escolas para mulheres na Cambridge University.

13 Já de quando o Direito do Trabalho se estruturou, partiu de pressupostos sexistas e racistas, ao lembrarmos que na elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi decidido que as trabalhadoras domésticas não seriam incluídas, porque seriam uma categoria diferente que exercia uma tarefa “mais fácil” e nesse sentido, as negras sequer foram pensadas.

LEI Nº 14.297/22 E O DIREITO AO “DESVÍNCULO” DE EMPREGO

Oscar Krost


Muitos criticam as conciliações homologadas pela Justiça do Trabalho ao entendimento de serem prejudiciais a ex-empregadas/empregados, pela renúncia de direitos, facilitação à rolagem de dívidas alimentares e estímulo ao inadimplemento voluntário e calculado. Isso tudo sem adentrar no mérito sobre o alcance da quitação produzida pelos acordos.1


Sem sombra de dúvida, tais apontamentos procedem nos mais variados níveis, doa a quem doer, mais do que merecendo, quase impondo, o aprofundamento do debate. Mas desde que a CLT é CLT, no distante 1943, as coisas são assim, entrando e saindo Constituições, Presidentes da República, Parlamentares e Magistradas/os do Trabalho.


E como a história se repete, como tragédia ou farsa,2 nada há de novidade – apenas de novo e de novo e de novo – debaixo do sol e acima do Direito do Trabalho brasileiro neste começo de ano. A Lei nº 14.297, de 05 de janeiro de 2022,3 publicada nos últimos dias do recesso forense trabalhista, estabelece medidas de proteção a entregadores que prestam serviços “por intermédio de” ou “em benefício de” empresas de aplicativos de entrega, durante a vigência da emergência em saúde pública fruto da pandemia de coronavírus.

A primeira questão que salta aos olhos, mesmo aos acostumados com a fartura de Medidas Provisórias nos últimos 03 anos, é a temporariedade das obrigações estabelecidas pela regra. Há algum tempo os Operadores do Direito problematizam e discutem à exaustão a natureza jurídica do vínculo entre o “povo dos apps” e as plataformas: se empregados, autônomos ou nenhum dos dois. Ou seja, antes tarde do que nunca a publicação de tão esperada lei, pacificando parcos pontos…até o fim da pandemia.4 Ora, ora, ora. O anseio pela concretização do Princípio da Legalidade positivado no art. 5º, inciso II, da Constituição encontra justificativa na crença de mais segurança jurídica e não, como ocorrido, de maior insegurança aos contratantes. Mas, ao contrário do que possa parecer, infelizmente não estamos diante de uma versão jurídica de “O quereres”, de Caetano Veloso, algo como “onde queres MP eu sou a lei e onde queres a lei sou MP”. Antes fosse.

A segunda questão diz respeito à fragmentação da categoria profissional. Por que garantir direitos a motoristas de entregas vinculados a aplicativos e não a motoristas que transportam passageiros? Embora haja diferenças entre transportar cargas e passageiros dentro do perímetro urbano e fora dele, estas não se mostram suficientes a justificar a proteção de um trabalhador em detrimento de outro. Recorde-se ser a profissão regida por uma lei de espectro geral,5 embora costumem coexistir distintos sindicatos representativos, variando de acordo com o ramo da atividade econômica. Afinal, condutores de motocicletas não são motoboys ou motogirls, na forma prevista na Lei nº 12.009/09,6 não é mesmo?


Transpostas a impressão de precariedade da lei e seu alcance restrito a uma única espécie de condutor, sua leitura dá conta de garantir alguns direitos elementares aos “guerreiros sob rodas”, dentre os quais: assistência financeira pelo período de afastamento em caso de contágio por Covid-19, de 2 a 15 dias (art. 4º), recebimento de informações sobre os riscos de contaminação, além de máscaras, álcool e outros meios de higienização durante as entregas (art. 5º), acesso a banheiros e a água potável no curso da jornada (art. 6º), percepção de contraprestação prioritariamente pela internet (art. 7º) e recebimento de informações sobre critérios para bloqueio (art. 8º). Acaso descumprida alguma disposição, as plataformas se sujeitam a advertências e multas (art. 9º).


A fragilidade dos “direitos” estabelecidos em caráter provisório pela lei é frustrante e evidencia o drama cotidiano de entregadores a serviço de plataformas. Falar em marco mínimo civilizatório ou em Princípio do Não-Retrocesso Social soa ofensivo e, como precisamente pontuou Guilherme Guimarães Feliciano, ficamos com a impressão de que “a montanha pariu um rato”.7

Mas, afinal, a provisoriedade que caracterizou as previsões da Lei nº 14.297/22 atinge todos os direitos nela previstos ou somente os atrelados diretamente às medidas sanitárias emergenciais? Qual a interpretação razoável?

Em Direito inexiste resposta única, apenas melhor ou pior fundamentadas. Em tese, a linha tendente a prevalecer é a segunda, na medida em que a própria regra estabelece que “os benefícios e as conceituações previstos nesta Lei não servirão de base para caracterização da natureza jurídica da relação entre os entregadores e as empresas de aplicativo de entrega” (art. 10). Tudo esclarecido, ainda que apenas no décimo artigo.


Ressurge no Direito do Trabalho brasileiro, mesmo que discretamente, a presunção de ausência de vínculo de emprego entre quem presta e quem toma os serviços, eufemística e inonicamente aqui chamado de “desvínculo” de emprego. Estaríamos diante de um reedição das iniciativas consagradas pela Lei nº 8.949/94, que acrescentou o parágrafo único ao art. 442 da CLT,8 e, mais recentemente, pela Lei nº 13.467/17, que inseriu o art. 442-B, também à CLT?9

Sobre o direito ao “desvínculo” de emprego, muito poder-se-ia argumentar e ponderar, mas intencionalmente, em uma atitude de respeito a quem leu o presente texto até aqui, faço, apenas, menção a alguns valores, Princípios e dispositivos legais que não podem ou devem ser esquecidos. Destaquem-se o valor social do trabalho e da livre iniciativa, bem como a dignidade da pessoa humana, fundamentos da República, além do Princípio da Primazia da Realidade, de origem trabalhista, mas de transversalidade cada vez maior a outros ramos jurídicos, haja vista a ampliação do que se entende por boa-fé objetiva. Não importam as palavras, mas os acontecimentos, já ensinou Américo Plá Rodriguez há dezenas de anos.

Por fim, e nem por isso menos importante, destaco a plena vigência dos arts. 2º e 3º da CLT, que estabelecem os requisitos fático-jurídicos, na expressão de Mauricio Godinho Delgado, para consideração de dado sujeito/capital como empregador e de determinado trabalhador como empregado. Reitero o afirmado recentemente, no sentido de ostentar o vínculo de emprego entre motoristas de passageiros ou de cargas/entregas por aplicativos natureza de contrato intermitente:

Mas como a lei não contém palavras vãs e toda regra deve ter seu sentido alinhado com os valores e disposições da Constituição e com as normativas internacionais de Direitos Humanos, com um razoável esforço hermenêutico é possível adotar o contrato intermitente sem prejuízo à concretização das promessas que justificaram sua criação pelo Parlamento: reduzir o desemprego e a informalidade laboral. Para tanto, deve ser resgatado o diálogo das fontes, nos termos do art. 8º da CLT, inspirando uma aplicação permeada pela experiência da jurisprudência, analogia, eqüidade e Princípios, além de usos e costumes e do direito comparado.

Partindo de tais premissas, podem ser inseridos no campo tuitivo trabalhista os
trabalhadores por aplicativo que transportam passageiros ou cargas. Segundo o Ministro Augusto César Leite de Carvalho, estes sujeitos seriam uma mescla de trabalhadores intermitentes, externos e teletrabalhadores.

Fausto Siqueira Gaia, examinando detidamente a presença dos requisitos fático-jurídicos dos arts. 2º e 3º da CLT na relação entre motoristas e empresas agenciadoras, conclui estar presente uma nova face da subordinação, de viés disruptivo. Para ele, ‘o conceito proposto congrega os aspectos da relação entre os sujeitos da relação de trabalho, ao mesmo tempo que confere importância à integração do trabalhador à estrutura produtiva da empresa.’

Em diversos países do mundo, a linha de interpretação apresentada já faz parte de precedentes judiciais, em moldes que lembram os contornos do contrato de trabalho intermitente brasileiro. Destaquem-se os julgamentos proferidos por Cortes da França, Reino Unido, Espanha, Estados Unidos e Chile.

Se a vida nos oferece limões, podemos aproveitar a situação de diversas maneiras, interpretando-a. Embora haja questionamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da disposição da CLT instituidora do contrato de trabalho intermitente, inclusive com julgamento em curso, inegável estarmos diante de uma grande oportunidade para refletir e debater a proteção de motoristas que atuam sob ordem de aplicativos, relação de trabalho que envolve pessoas físicas, subordinadas e dotadas de dignidade. Como bem lembrava o Barão, ‘não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.’10

Enfim, enquanto teses e antíteses jurídicas não se transformam em síntese ou o Legislador não legisla, efetivamente, que tal um lanche ou café? Podemos pedir algo para entrega ou chamar um carro para ir até um estabelecimento, o que for melhor para nós.

1 Sobre o tema em questão, ver SEVERO, Valdete Souto; ALMEIDA, Almiro Eduardo de. Entre o ordenamento jurídico e o costume: o problema da quitação no acordo trabalhista. In: Direito do Trabalho avesso da precarização. São Paulo: LTr, 2014, p. 179-94, vol. I.

2 MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luis Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.

3 Inteiro teor da lei está disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.297-de-5-de-janeiro-de-2022-372163123>. Acesso em: 09 jan. 2022.

4 A doutrina vem se debruçando cada vez mais sobre o trabalho humano vinculado a plataformas. Mesmo correndo o risco de deixar textos e autores importantes de fora, merecem especial destaque: GAIA, Fausto Siqueira. Uberização do trabalho: aspectos da subordinação jurídica disruptiva.Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019, MISKULIN, Ana Paula Silva Campos. Aplicativos e Direito do Trabalho: A era dos dados controlados por algoritmos. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021 e ZIPPERER, André Gonçalves. A intermediação de trabalho via plataformas digitais: repensando o Direito do Trabalho a partir das novas relaidades do século XXI. São Paulo: LTr, 2019.

5 Lei nº 13.1032/15 disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13103.htm>. Acesso em: 09 jan. 2022.

Destaque para o art. 1º da norma, ao estabelecer:

Art. 1º É livre o exercício da profissão de motorista profissional, atendidas as condições e qualificações profissionais estabelecidas nesta Lei.

Parágrafo único. Integram a categoria profissional de que trata esta Lei os motoristas de veículos automotores cuja condução exija formação profissional e que exerçam a profissão nas seguintes atividades ou categorias econômicas:

I – de transporte rodoviário de passageiros;

II – de transporte rodoviário de cargas.

6 Inteiro teor da Lei nº 12.009/09 disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12009.htm&gt;. Acesso em: 10 jan. 2022.

7Instagram, perfil @guilherme.feliciano.378, postagem de 06 de janeiro de 2022. Acesso em: 09 jan. 2022.

8 CLT, art. 442: 442 – Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego.

Parágrafo único – Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela.

9 CLT, art. 442-B: Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação.

Sobre o dispositivo em questão, ver KROST, Oscar. Escola Judicial do TRT12. Reforma Trabalhista em minutos. Comentário ao art. 442-B da CLT, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ngEw4zJsD0g&feature=youtu.be&list=PLgSW-fjGGF_5y6O5db5KJYZHPqzXoXAhU>. Acesso em: 09 jan. 2022.

10 KROST, Oscar. “De onde menos se espera” e o contrato de trabalho intermitente: desafiando a Reforma Trabalhista, o trabalho de motoristas por aplicativos e o Barão de Itararé, disponível em<https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2021/02/24/de-onde-menos-se-espera-e-o-contrato-de-trabalho-intermitente-desafiando-a-reforma-trabalhista-o-trabalho-de-motoristas-por-aplicativos-e-o-barao-de-itarare>. Acesso em: 09 jan. 2022.

“BATE-PAPO NA LABUTA” COM RICARDO ANTUNES *

RICARDO ANTUNES é paulistano, Professor Titular de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e há décadas um dos grandes nomes em se tratando das modificações no mundo do trabalho.

Leciona, como convidado, diversas disciplinas em instituições de ensino da América Latina, Europa e Ásia, colabora com inúmeros sites e periódicos, sendo, ainda, autor de livros, com destaque a “Adeus ao trabalho?” (1995), “Os sentidos do trabalho” (1999), “Infoproletários: degradação real do trabalho virtual” (2009, org.), “O privilégio da servidão” (2018), “Uberização, trabalho digital e indústria 4.0” (2020, org.) e “Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado” (2020).


Recebeu o Prêmio Zeferino Vaz (Unicamp, 2003), a Cátedra Florestan Fernandes (CLACSO, 2002) e a Medalha (Comenda) do Tribunal Superior do Trabalho (TST, 2013).1


Ainda assim, em plena pandemia, premido por adversidades que “não tem sido poucas, mas nós vamos levando”, com a gentileza que lhe é peculiar, respondeu a alguns questionamentos do “bate-papo na labuta”, seção do blog “Direito do Trabalho crítico” em uma verdadeira aula sobre rumos e perspectivas do mundo do trabalho.

1. Professor Ricardo, muitíssimo obrigado por aceitar o convite do “Direito do Trabalho critico” para este “bate-papo”. Indo direto ao ponto: como o senhor, filho de um Advogado, acabou se enveredando pela carreira acadêmica, pelas Ciências Sociais e pelo mundo do trabalho?

Meu caro Oscar, é um prazer poder colaborar com o teu site. Eu me tornei sociólogo aos poucos. Quando terminei o ensino médio, que na época se chamava colegial, fui cursar Administração na Fundação Getúlio Vargas, um curso caríssimo e meu pai não tinha condições de pagar.

Então, por isso, me inscrevi e fui aprovado em Administração Pública, provavelmente uma das causas da minha mudança de profissão. Na Administração Pública tive muitos cursos de sociologia, de política, de economia, de história, que “abriram a minha cabeça” e percebi que odiava as matérias de exatas. Por exemplo, contabilidade foi a única matéria que fui reprovado (…) uma matéria horrorosa, para mim. E percebi muito rapidamente que tinha todo o sentido e tendência para as humanas.

Um segundo elemento importante nesta decisão foi que quando comecei a fazer a Faculdade, eu estava com 18 para 19 anos e tive que trabalhar para poder me manter. Aí comecei a dar aula de história, porque gostava de história e aos poucos percebi “minha queda” para as humanas. Eu já gostava de história e por isso fui dar aula em um cursinho. No primeiro ano de faculdade, ainda careca, pois naquela época se raspava a careca dos calouros, fui dar aula de história.

Mas por certo outra causa central foi ter, na FGV-SP, vários professores de sociologia, política e economia; houve, em particular, um Professor de Direito do Trabalho, Ranulfo de Melo Freire, de Minas Gerais – penso que ele faleceu recentemente – era uma pessoa muito afável e um dia disse a ele que eu queria estudar classe trabalhadora e sindicatos. Ele me sugeriu que lesse os livros do Leôncio Martins Rodrigues e o Juarez Lopes Brandão e esse foi um traço interessante da minha trajetória.

Não que o Ranulfo tivesse me influenciado, mas era muito aberto ao diálogo, um Professor de Direito do Trabalho progressista. Assim, quando me dei conta, lá por 73 e 74 eu já estava me vendo como um Sociólogo, um Cientista Social. Essa é a minha trajetória para as humanas.

2. O Direito do Trabalho, como idealizado na primeira metade do século XX, chegou ao fim? E os sindicatos?

Sim e não. Se, nós imaginarmos que o capitalismo do nosso tempo, sob impulsão neoliberal, o capitalismo que tem uma tríade destrutiva que o comanda – neoliberalismo predador, hegemonia do capital financeiro e desenvolvimento técnico-informacional digital – sob condução das corporações, processo que mais recentemente desembocou no chamado Capitalismo de Plataforma, os capitais querem eliminar completamente os direitos do trabalho. O resultado mais brutal é a degradação completa das condições de trabalho e a destruição da legislação social protetora do trabalho. Ou seja, se depender das corporações, o direito do trabalho estaria findando.

Mas enquanto há capitalismo, há luta entre classes e, consequentemente, luta por direitos. Marx demonstrou isto fortemente em “O capital”, sua obra mais espetacular e também na “Crítica ao programa de Gota”. O Direito – diz Marx -, em última instância, nasce para proteger a propriedade privada que deve ser sempre intocável. O Direito nasce, portanto, atrelado e atado à forma-mercadoria. Mas o mesmo Marx nos ensinou que, enquanto há luta de classes – uma vez que na sociedade existem classes sociais contraditórias entre si e que se antagonizam – sempre haverá luta por direitos, pois para que uma vitória possa se consubstanciar e ser duradoura ela precisa se tornar um direito do trabalho. Por isso disse: sim e não.

No presente momento, por exemplo, há uma luta decisiva, em escala global, ocorrendo na Europa, vejam-se os casos espanhol, inglês, italiano, francês e português; nos Estados Unidos e em outros países, na América Latina, na Ásia, uma luta pela regulação do trabalho uberizado, onde se expande este novo contingente do proletariado de serviços que tem sido explorado, espoliado e expropriado.

E como o trabalhador e a trabalhadora de plataformas ou o trabalhador e a trabalhadora uberizados são explorados, espoliados e expropriados os capitais resolveram operar uma falsificação, uma adulteração de sua condição de assalariamento que é apagada, tentando transfigurá-lo e metamorfoseá-lo em um não assalariado, uma manipulação ideológica profunda visando torná-lo, do dia para a noite um “autônomo” e “empreendedor”, o que joga esse setor do proletariado de serviços à margem da legislação trabalhista. Por isso ele está obrigado a lutar por direitos até mesmo para sobreviver, o que a converte em uma luta vital, pela vida.

Espero demonstrar, com isto, que há uma dialética presente na luta por direitos. Ao mesmo tempo em que os capitais querem eliminá-los, a classe trabalhadora há de lutar pela sua ampliação e mesmo reconquista de tantos direitos que foram ou que estão sendo surrupiados pelo capitalismo e pelas corporações, especialmente no Capitalismo de Plataformas.

3. Qual o papel do trabalho humano em um regime de acumulação capitalista hegemônico, global e permeado pela tecnologia? Ainda pode ser considerado central?

Não há nenhuma chance de uma sociedade capitalista existir sem trabalho humano por um motivo ontologicamente vital. É o trabalho humano que cria a riqueza. A tecnologia não cria a riqueza, mas potencializa exponencialmente a riqueza.

Este é o “golpe de mestre” das corporações capitalistas: elas ampliam a tecnologia de modo a reduzir ao máximo o trabalho vivo, mas nunca poderão eliminá-lo. Tentam demonstrar a irrelevância do trabalho vivo, mas sabem que sem ele não se cria riqueza e, consequentemente, não se tem nem lucro, nem burguesia. Mas, por certo, procuram sempre reduzir ao máximo o número de trabalhadores e trabalhadoras ativos, por isso usam destrutivamente tanto as tecnologias, que são desnecessárias para a humanidade, além de intensificar e explorar ao máximo a força de trabalho humano. É por isso que a exploração vem se intensificando em todos os pólos da classe trabalhadora e em escala global. Se o trabalho fosse irrelevante, por que haveria tanta exploração? E esta, como sabemos, vem se intensificando em todos os pólos da classe trabalhadora e em escala global.

Assim, o capitalismo ou, ainda mais abrangentemente, o sistema de metabolismo social do capital, para usar uma categoria que é de István Mészáros, vai extrair do trabalho humano tudo o que ele puder extrair, retirar e surrupiar. Não importa se o trabalho humano é altamente qualificado, se está no topo do trabalho e das tecnologias de informação ou se está na base e é mais manual. Sem falar que não se pode fazer uma separação absoluta entre eles, dadas as inter-relações e interconexões presentes nas cadeias produtivas de valor hoje.

Dou um exemplo: um celular. Ao mesmo tempo em que ele traz embutido na mercadoria um trabalho que se realiza no âmbito das tecnologias de informação, de comunicação e de Inteligência Artificial, deste mundo maquínico-informacional digital, todos sabemos que não existe celular, assim como não existe internet, nuvem e nada disso sem a extração mineral, que é o trabalho mais basal, das cavernas, de entrar no fundo do subsolo e extrair minério e sem o qual, entretanto, não há celular e o mundo digital sequer poderia ser cogitado. Não existiria a internet sem um leque imenso de trabalhos manuais, a começar pela extração mineral, o que mostra que o trabalho é vital, ainda que o capital tenha aprendido a lidar com e contra o trabalho.

Então, o capital diz que o trabalho é inútil, mas não fica um dia sem. E o exemplo decisivo disto nós vimos na pandemia: o horror para a burguesia brasileira e mundial ver o isolamento, o lockdown, parando a produção. Porque quando para a produção, para de haver a realização da atividade humana laborativa e a mais valia não cresce, não nasce e, consequentemente, não se expande.

A mais valia só pode resultar da interação complexa entre trabalho humano, falando nos termos do Marx, entre trabalho vivo e trabalho morto. O que é o trabalho morto? A maquinaria que potencializa a riqueza. Portanto, a tese do fim do trabalho é profundamente eurocêntrica e desconhece a realidade de que a classe trabalhadora e 2/3 do mundo do trabalho, senão ¾, se encontram no sul do mundo, neste imenso quintal que vai da China, países asiáticos, passa pela África do Sul, continente africano e chega na nossa América Latina, e que entra nos bolsões dos Estados Unidos e também da Europa através da exploração e sucção das suas respectivas classes trabalhadoras e, em particular, a europeia e norte-americana, e da brutal exploração da força de trabalho imigrante que ao mesmo tempo o capitalismo trata como algo supérfluo, mas que sabe que o trabalho imigrante é vital para rebaixar, constantemente, o custo de remuneração da força de trabalho da classe trabalhadora.

Portanto, falar em fim do trabalho é um equívoco ontológico profundo, inaceitável para quem olha o mundo em sua globalidade. Eu tentei aprofundar estas teses no meu livro “Adeus ao trabalho?”, que é uma pergunta, e “Os sentidos do trabalho”, livros que tentaram enfrentar teórica e empiricamente estas questões.

4. O que esperar da Justiça do Trabalho em um país desigual e de economia periférica, como o Brasil?

Primeiro, a Justiça do Trabalho, em qualquer país do mundo, só defende a classe trabalhadora quando há pressão e luta social. Veja bem, quando houve o “breque dos apps” , no dia 1º de julho de 2020, uma greve que já entrou para a história da classe trabalhadora brasileira, ficou evidenciado o vilipêndio, aquele tripé que falei anteriormente – exploração, espoliação e expropriação. A Justiça do Trabalho, então, responde quando há luta social.

Segundo, a Justiça do Trabalho responde também quando há um clamor da sociedade, percebendo que não é possível aceitar que jovens, moços – homens ou mulheres -, no caso dos trabalhadores uberizados a predominância no Brasil é masculina, mas há um forte contingente também bastante jovem e feminino, contingente que trabalha 10, 12, 14, 16 horas por dia, jornadas semanais ininterruptas, por vezes sem nenhum dia para descanso. Eu já entrevistei um trabalhador que dizia que só não trabalhavam um dia no mês por imposição de sua família que queria que um dia por mês ele passasse o domingo com a família.

Não é possível que esse vilipêndio, esta empulhação, este Frankenstein social que foi criado, de que são “autônomos” e “empreendedores”, obviamente uma mistificação, seja perpetuado. A Justiça do Trabalho tem que estar atenta e atuar no sentido humano e social em reconhecer um mínimo de dignidade do trabalho.

E, por último, como todo o aparato público e estatal (como também ocorre nas Universidades públicas), há claramente setores que são completamente conectados e atuam segundo os interesses do capital, mas há também aqueles e aquelas que são profundamente vinculados, na sua ação e reflexão científica, aos interesses da classe trabalhadora.

A Justiça do Trabalho, portanto, também é assim. Eu tenho a felicidade, há décadas, muitas décadas, porque o tempo está passando, de dialogar com uma parcela importante da Justiça do Trabalho no Brasil que é a Justiça do Trabalho – e não a Justiça do capital, no qual as corporações querem que sempre a Justiça aja segundo os interesses delas. Porém, a Justiça do Trabalho só avança e avançará, em qualquer país do mundo, quando há luta social e pressão social por parte da classe trabalhadora.

5. Para o Professor Ricardo Antunes, “Direito do Trabalho crítico” é:

Direito do Trabalho crítico é, primeiro, saber que em uma sociedade de classes eu não posso defender os interesses do capital, mas sim os interesses da classe trabalhadora. O capital tem um volume infindável de aparatos públicos para defendê-lo.

Alguém poderá acrescentar: o papel do Direito é conciliar! Mas como conciliar se estamos tratando de entificações sociais que são inconciliáveis? É por isso que não há nenhum país do mundo onde haja uma conciliação eterna entre capital e trabalho. Isto é ontologicamente impossível, porque enquanto uma classe se apropria de tudo o que é produzido e enriquece, a outra se vê desprovida do básico e se pauperiza, como demostra tragicamente a enorme miséria no Brasil e em tantas partes do mundo.

Por óbvio, em alguns países escandinavos, você pode falar na Finlândia, poderia falar, mais no passado, na Suécia, Noruega e etc, há avanços sociais. Países que conseguiram manter alguns traços do Welfare State, ainda que muito menos do que tinham no passado recente, e assim conseguem (à custa especialmente da exploração da classe trabalhadora do Sul), manter condições de trabalho razoáveis em seus países. Mas tudo ainda longe de uma efetiva igualdade substantiva.

Assim, como a tendência da precarização do trabalho é global, o Direito do Trabalho crítico, no meu entendimento, no contexto de uma sociedade de classes, é ter claro que o lado em que me encontro ou defendo os interesses do capital, como faz uma parte do Judiciário, na maior parte dos países do mundo, no qual os interesses da sociedade são em ultima instância os interesses das classes proprietárias.

Basta dizer, por exemplo, que o direito à propriedade privada, que funda o Direito, é intocável na sociedade capitalista. Agora, um Direito do Trabalho crítico é aquele, que na contradição e na contraposição entre o capital social total, de um lado, e a totalidade do trabalho social, de outro, garante conquistas da classe trabalhadora na trilha e nas tantas batalhas que a classe trabalhadora tem pela frente e que nunca foi tão candente e premente. Sem deixar de dizer que hoje, mais ainda, estamos obrigados a reinventar um novo modo de vida.

Hoje, qualquer pessoa com o mínimo de lucidez vê que a sociedade capitalista destrói o trabalho em proporção inimaginável, destrói a natureza, que nós sequer estamos conseguindo respirar sem adoecer, além de ser um sistema metabólico destrutivo, como indiquei no e-book “Coronavírus o trabalho sob fogo cruzado”: De modo sintético: o capitalismo do nosso tempo se tornou pandêmico e letal, um capitalismo virótico como o denominei. Daqui para frente nós teremos cada vez mais vírus que resultam do aquecimento global, das queimadas, da energia fóssil, da extração mineral, da criação desmedida da agroindústria, da criação bovina, das queimadas, todos esses horrores, de tudo o que trava a natureza.

Sem a natureza, a humanidade não funciona. A natureza pode descartar a humanidade. A humanidade não pode prescindir da natureza. E, apesar disso, cada vez mais o capitalismo destrói a natureza. Como eu resumiria este encontro que houve recentemente para tratar da questão ambiental, na Escócia: blá-blá-blá-blá-blá. A síntese não podia ser mais feliz daquela jovem, que resumiu assim o resumiu.

O mundo do capital e seus governos, de concreto, não tomaram nenhuma medida efetiva para barrar a destruição ambiental. Salvar a natureza, hoje, e resgatar a dignidade humana do trabalho nos obriga a assumir uma postura clara e em direção a um outro modo de vida, para além do capital.

São estas as questões com que eu gostaria de ajudar, neste teu blog e deixo meu abraço afetuoso a você. Peço desculpas pela demora em ter respondido estas questões, pois as adversidades não tem sido poucas, mas nós vamos levando, na esperança de que no próximo ano possamos ter, em 2022, o fim de alguns horrores, pelo menos de alguns horrores, que maculam letalmente a nossa vida. Um grande abraço!

* Agradecimento à Professora Viviane Vidigal por generosamente viabilizar este bate-papo.

1 Fontes: <http://www.iea.usp.br/pessoas/pasta-pessoar/ricardo-antunes&gt; e  <https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ricardo_Antunes&gt;. Acesso em: 02 jan. 2022.

GAVETAS.COM

Oscar Krost

Presencial ou remoto?
Off-line ou online?
Síncrono ou assíncrono?

Em cada pergunta, o que intriga não são as opções expressas, mas as ocultas.
Por que “ou” e não “quando”?

Grilhões são grilhões, de ferro ou wi-fi, e entre os elos das correntes estão os que mandam e os que obedecem.

Celetista, estatutário, PJ, cooperado. Nenhuma, absolutamente nenhuma relação de trabalho é simétrica ou equilibrada.

Se até um Juiz do Trabalho – ok, um Juiz do Trabalho Substituto, o último na escala evolutiva da carreira – portava crachá, o que esperar de proletarios, cyber ou analógicos?

O ano de 2022 bate às portas com tanta força a ponto de derrubá-la. Não há mais tempo para cortinas de fumaça, recursos linguísticos e exercícios de retórica.

“É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol (…)”, há 50 anos, desde 1972, ensina Tom Jobim.

Que possamos formular perguntas, cujas respostas estejam na vida afora e não no próprio questionamento.

Afinal, ninguém  mais acredita estarmos em um game ou em uma prova objetiva de múltipla escolha, né?

DEBATES LEGISLATIVOS SOBRE A GIG ECONOMY EM 2020 E SUAS IMPLICAÇÕES

Ana Paula Silva Campos Miskulin – Juíza do Trabalho (TRT15), Mestre em Direito do Trabalho (USP), Especialista em Direito e Processo do Trabalho (UFG), Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão: O trabalho além do Direito do Trabalho (USP), Professora e Mãe de três crianças, Autora do livro “Aplicativos e Direito do Trabalho: a era dos dados controlados por algoritmos” (Juspodivm), Coordenadora de obras sobre Direito Processual do Trabalho e Tecnologia

Este ensaio tem por objetivo demonstrar que os debates legislativos em torno da gig economy não podem restringir-se à discussão em torno da existência ou não de vínculo empregatício entre o trabalhador e a plataforma digital.

A gig economy situa-se num contexto muito mais amplo, cujas implicações são interligadas com questões concorrenciais, fiscais e sociais, todas indispensáveis ao atingimento da segurança jurídica na economia digital. A origem da gig economy está ligada a trabalhos artísticos, como dos músicos de clubes de jazz da década de 1920 (GREENHOUSE, 2019) e hoje se popularizou como uma referência ao trabalho por meio de aplicativos que, segundo De Stefano (2016), pode ser realizado de forma totalmente on-line (crowdwork) ou em uma localização geográfica determinada (trabalho sob demanda).

A gig economy integra uma das facetas da quarta revolução industrial, a qual se distingue das anteriores não somente pelo advento de novidades tecnológicas, como a inteligência artificial, a internet das coisas, entre outras, mas também principalmente em razão da fusão de tecnologias, com a interação nos domínios físicos, digitais e biológicos (SCHWAB, 2016). A convergência entre a internet e as tecnologias de comunicação e informação aprofundou o processo de transformação pela qual as organizações empresariais já vinham passando nas últimas décadas e nesse contexto, surgiram as plataformas digitais, cujo modelo de negócios se espraiou em âmbito global e se expandiu por diversos segmentos econômicos, tais como mercadorias, serviços, dinheiro, comunicação, entretenimento e informação (SCHMIDT, 2017).

A tendência, especialmente após o advento da pandemia, é que as empresas que ainda não o fizeram migrem para a economia digital, de modo que não faz sentido a pretensão de algumas empresas proprietárias de plataformas receberem tratamento jurídico diferenciado das empresas que operam na economia tradicional, pois todas integram um mercado único. Discussões relacionadas à saúde e segurança dos trabalhadores, remuneração mínima, limite de jornada e negociação coletiva são indispensáveis e deveriam preceder a questão de existir, ou não vínculo empregatício, mas, para além disso, é imprescindível que os debates legislativos foquem a definição de papéis, obrigações e responsabilidades de todos os stakeholders dessa relação para atingir a segurança jurídica como uma exigência para a estabilidade nas relações jurídicas (DUARTE, 2020).

É certo que nenhuma atividade pode ser infensa à regulação (FREITAS, 2020) e essa necessidade inclusive já foi reconhecida desde a mais alta corte da Justiça do Trabalho brasileira (BRASIL, 2020) até o editorial do Financial Times (2020). O desafio agora é como dar um primeiro passo nessa direção. Hoje, um dos maiores problemas por trás dessa relação jurídica trilateral situa-se na ausência de transparência em relação às condições contratuais ditadas e alteráveis unilateralmente pelas empresas proprietárias das plataformas, já que apenas elas são detentoras dos dados com os quais são traçadas as suas políticas de funcionamento e as técnicas de gestão conhecidas como gerenciamento por métricas (CHOUDARY, 2018).

Critérios obscuros para fixar preços – com base no nível de satisfação do cliente ou o fato desse contar com um celular pouca bateria (ROSEMBLAT E CALO, 2017) – ou para condicionar a permanência do trabalhador na plataforma, como taxas mínimas de aceitação e cancelamento, interações bem sucedidas por unidade de tempo ou reputação (CHOUDARY,2018) são práticas aceitáveis desde que sejam devidamente esclarecidas e não utilizadas de forma velada, sem que as pessoas saibam que há algoritmos ditando as suas escolhas.

Muitos têm sido os debates em torno da classificação correta dos trabalhadores como empregados, autônomos, autônomos economicamente dependentes ou mesmo intermitentes e há também diversos projetos de lei aprovados ou em discussão nos Estados Unidos, na América do Sul ou no Brasil, nos quais se especificam direitos trabalhistas que devem ser aplicáveis aos trabalhadores. Exemplo disso foi a recente discussão na Califórnia, a respeito da Proposta 22, aprovada em dia 3 de novembro para que as plataformas sejam excluídas do âmbito de aplicação da AB 5, reconhecendo alguns benefícios aos trabalhadores, porém sem o reconhecimento da condição de empregados (CALIFORNIA STATE, 2020).

No Brasil, do mesmo modo, apenas em 2020, foram apresentadas mais de 36 propostas legislativas, as quais se somaram a outras de 2018 e 2019, totalizando mais de 60 projetos de lei sobre o assunto (DIAP, 2020). Esses debates legislativos são importantes, mas, para além da discussão do vínculo empregatício, é importante esclarecer como a legislação deve incidir em outros domínios, tais como o regime de responsabilidade, a proteção dos participantes, os impactos no mercado laboral e as obrigações fiscais, que inclusive foram citados no documento “Uma agenda europeia para a economia colaborativa” (UNIÃO EUROPEIA, 2017) e que terão implicações no direito concorrencial, tributário e social.

Referências Bibliográficas

* BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho, 4ª Turma, Recurso de Revista n° TST-AIRR-10575- 88.2019.5.03.0003, rel. Alexandre Ramos, DJE 10.09.2020. CALIFORNIA STATE. Proposition 22, App-based drivers as contractors and labor policies initiative. 2020. Disponível em: https://ballotpedia.org/California_Proposition_22,_AppBased_Drivers_as_Contractors_and_Labor_Policies_Initiative_(2020). Acesso em 08 dez. 2020. CHOUDARY, S. P. The Architecture of digital labour platforms: policy recommendations on platform design for worker well-being. International Labour Office, 2018.

* DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ASSESSORIA PARLAMENTAR. Trabalhadores em aplicativos e a a regulamentação de direitos. Jul. 2020. Disponível em: https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/89927-trabalhadores-em-aplicativose-a-regulamentacao-de-direitos-no-congresso-nacional. Acesso em 08. Dez. 2020.

* DE STEFANO, V. The rise of the “just-in-time work-force”: on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”. Conditions of work and employment series, n. 71, 2016.

* DUARTE, R. R. F. A segurança jurídica no Direito e Processo do Trabalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

* FINANCIAL TIMES. Uber and Lyft should treat drivers as employees. Ago. 2020. Disponível em: https://www.ft.com/content/8adf4de7-90e9-4304-aa6e-71d652946e80. Acesso em 08 dez. 2020.

* FREITAS JUNIOR, Antonio Rodrigues; On demand: trabalho sob demanda em plataformas digitais. Belo Horizonte: Arraes, 2020.

* GREENHOUSE, S. Beaten down, worked up. The past, present and future of american labor. New York: Alfred A. Knopf, 2019.

* ROSEMBLAT, A.; CALO, R. The taking economy: Uber, information and power. Columbia Law Rewiew, 9 março 2017, p. 1623-1690.

* SCHIMIDT, F. A. Mapping the Political Challenges of Crowd Work and Gig Work. Good Society – Social Democracy, 2017.

* SCHWAB, K. A Quarta Revolução Industrial. Tradução de Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.

* UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu, de 15 de junho de 2017, sobre uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa (2017/2003(ΙΝΙ)). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2017-0271_PT.html. Acesso em 08 dez. 2020.

TRABALHADOR INEXISTENTE, MAS O SHOW TEM QUE CONTINUAR

Oscar Krost

” – Falo com o senhor, aí, paladino! – insistiu Carlos Magno. – Como é que não mostra o rosto para seu rei?

A voz saiu límpida da barbela.

– Por que não existo, sire.

Faltava esta! – exclamou o imperador. – Agora temos na tropa até um cavaleiro que não existe! Deixe-nos ver melhor.

Agilulfo pareceu hesitar um momento, depois com a mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazio o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém.

– Ora, ora! Cada uma que se vê! – Disse Carlos Magno. – E como é que está servindo, se não existe?

Com força força vontade – respondeu Agilulfo – e fé em nossa santa causa!

Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!1

“O cavaleiro inexistente” (1959), de Italo Calvino, é o último livro da trilogia publicada, em volume único sob o título “Nossos antepassados”. Os outros dois tomos são o “O visconde partido ao meio” (1951) e “O barão nas árvores” (1957).

O trecho transcrito conta com 60 anos, narrando uma cena ocorrida na Antiguidade europeia há quase 1.300. Poderia acontecer hoje em qualquer parte do planeta. E mais: não apenas envolvendo um Imperador e um cavaleiro, na frente de batalha, mas quaisquer sujeitos em posições hierárquicas díspares, na vida nossa de cada dia.

A ordem dada é prontamente cumprida. O sujeito subordinado simplesmente está ali, mas não existe. O espanto de quem manda é sutil e beira o imperceptível. Logo dá lugar a um breve comentário em reconhecimento. Sem mais, a trama segue.

Graça, ironia, sensibilidade. Pensamento, reflexão, identidade. Para isso, e muito mais, existe a arte, de modo geral, e a literatura, em específico. Atemporais, desterritorializadas, humanas.

Agilulfo poderia se chamar Maria, José, Fátima, João. Carlos Magno, o chefe, senhor, tomador de serviços. Tanto faz, desde que a atividade não sofra interrupção, pois o show tem que continuar e tempo é dinheiro. Colaborador, terceirizado, “MEI”, intermitente.

Operadores do Direito usam e abusam de termos e de neologismos para se referir, classificar e identificar vínculos, não mais se surpreendendo com os uniformes vazios – quando fornecidos. Acostumaram-se apenas a ouvir a voz de quem parece não mais sujeito e cada vez mais se sujeita.

A perda de sentido da vida humana em suas responsabilidades produtivas e profissionais são sintoma, não doença de um tempo em que os seres se coisificam e as coisas se humanizam. Paradoxalmente, o trabalho cada vez mais dispensável no discurso, mostra-se cada vez mais central na prática. O problema está em desprezar a fonte de toda a energia criativa de riqueza e sentido no planeta: a persona.

O art. 7º da Constituição brasileira, dentro do sistema de Direitos Fundamentais, é regra de suma importância, pecando por um detalhe: consagra uma gama de direitos de trabalhadoras e de trabalhadores, de modo não exaustivo, mas os negligencia ao não apenas tolerar, mas estimular sua redução a créditos. Não se está dizendo que lucros cessantes ou perdas e danos não sejam importantes. Diante do mal, o bem a repará-lo.

O problema consiste em não prevenir, cingindo a remediar. Os prejuízos e dores frutos de adoecimento, acidentes, assédios e terror nunca são plenamente reparados, mas carregados pela vida afora para além de quinquênios e biênios prescricionais. Seguem acontecendo, a cada dia, em trato sucessivo, demonstrando, não raras vezes, traduzirem uma estratégica e lucrativa proposta.

Isto sem falar no processo judicial, que de tratamento em busca da cura, tende a tornar-se mais uma concausa do agravamento do mal. Quantas vezes o acordo não põe fim à lide, apenas parecendo menos ruim do que a forma com que a estrutura de Justiça trata as vítimas? Advogad@s, Servidoras/es, Juízas/Juízes…audiências, perícias, liturgias…práticas incompreensíveis e danosas à pessoa e cuja maioria faria Kafka ruborizar.

Como não lembrar de Rita Lee?2 No caso trabalhista, tudo vira crédito, honrado ou não, executado ou prescrito.

As horas extras, de excepcionais se tornam habituais; suprimidas, geram indenização. Causados danos, cabalmente demonstrados, reconhece-se a reparação existencial. Melhor do que nada, nem um centímetro a mais.

A saúde não volta, o filho não dá o primeiro passo duas vezes e a vida não reprisa. Mudemos a ordem de prioridades e sejamos coerentes com a infungibilidade da existência, seu tempo e, principalmente, do ser humano.

Como ponderado por Sartre,3 não importa o que fizeram de nós, mas o que faremos com o que fizeram de nós, tanto em nossa consciência, em nível mental, quanto no escritório, na fábrica, no supermercado, no fórum. Deixemos de naturalizar as armaduras, cheias ou vazias, passando a nos preocupar com o porquê de existirem e de não nos preocuparmos com o conteúdo que nos constitui enquanto espécie: a dignidade. Virem-se as chaves, retomem-se as rédeas, rompam-se os grilhões. Não é fácil. Obviamente. Ninguém disse que seria. Mas estes são os verdadeiros desafios. Do contrário, podem não restar armaduras ou frentes de batalhas.

Uma última nota: em qualquer caso, quando o Direito titubear, a arte sempre estará ali, sob forma de letras ou canções, pronta a nos amparar.

1 CALVINO, Ítalo. Os nossos antepassados: O visconde partido ao meio; O barão nas árvores; O cavaleiro inexistente. Tradução Nilson Moulin. 1ª ed.São Paulo: Companhia de Bolso, 2014, p. 318-9.

2 Tudo vira bosta. Composição de Moacyr De Oliveira Franco.

3 SARTRE, Jean Paul. Saint Genet. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 61.

DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA: A NECESSIDADE DA CONSCIÊNCIA HUMANA FRENTE À MARCHA PROGRESSIVA DA ERRADICAÇÃO DO PRECONCEITO

Lea Cristina Freire Soares – Advogada

Instituído pela Lei 12.519/11, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra é comemorado todo dia 20 de novembro, data do falecimento de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares que é o símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os movimentos sociais, dentre eles o movimento negro, tiveram maior espaço no âmbito das discussões e decisões políticas, as quais resultaram em aprovações de medidas que tinham como proposta promover certa reparação histórica.

Podemos destacar algumas medidas já conhecidas, como a Lei 7.716/89 que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor; a Lei 12.711/12 que prevê as cotas raciais voltadas à educação superior; e a Lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira.

Sem qualquer necessidade de publicizar qualquer ideologia, a importância da existência e resistência dos movimentos sociais que buscam a eliminação do preconceito racial está evidenciada nos resultados trazidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), qual seja, o principal provedor de informações necessárias ao reconhecimento da realidade do nosso país, cujos percentis trazidos ainda são capazes de gerar indignação e tristeza. Cito alguns dados:

1. Negros e pardos representam a maior parte da população brasileira,e igualmente representam a maior força de trabalho, qual seja. Todavia, apenas 29,9% ocupam cargos gerenciais. Por uma dedução lógica, podemos ver que negros e pardos ocupam em sua maioria cargos hierarquicamente inferiores.

2. Quando ao rendimento mensal médio, negros e pardos ganham, aproximadamente, R$ 1.663,00, contra os R$ 2.884,00 recebidos por pessoas brancas.

3. O desemprego é maior entre pessoas negras e pardas. A taxa de desocupação por negros e pardos é de 13,6%, enquanto brancos ocupam a taxa de 9,3%.

4. A informalidade igualmente é maior entre as pessoas negras e pardas, os quais ocupam o percentual de 47,4%, enquanto trabalhadores informais brancos ocupam 34,5%. Ainda, dentro desta informalidade, temos algumas atividades cuja participação de negros e pardos é maior:

 Atividades agropecuárias: 62,7%;
 Construção: 65,2%
 Serviços domésticos: 66,6%

São números alarmantes que, por si só, evidenciam a existência de resquícios históricos em pleno século XXI.

Por outro lado, podemos citar que o empreendedorismo negro vem se destacando cada vez mais. Os números também demonstram que houve, além do aumento de pessoas que se autodeclaram negras ou pardas, o aumento exponencial de empreendedores negros, os quais correspondem à 51% do empreendedorismo brasileiro, cujo percentual é preenchido em sua maioria por mulheres.

O dia 20 de novembro é, sobretudo, um dia destacado de muita reflexão – a consciência deve ser diária – cujos índices ora demonstrados trazem a necessidade de existências de leis e políticas públicas que eliminem estas diferenças e amparem os atingidos. Quanto à empregabilidade, são números que evidenciam que ainda caminhamos a passos lentos, em pleno século XXI, mas não podemos negar que os passos dados geraram frutos. Empreendemos!

Em que pese o nome “consciência negra”, precisamos, acima de tudo, de consciência humana frente aos movimentos sociais que buscam a igualdade e inclusão. De forma bastante sucinta: é inadmissível, intolerável, impraticável, cafona e brega todo e qualquer tipo de desigualdade social em um mundo que se julga tão “evoluído”. Que a luta de hoje se reverbere em apenas mais uma página da história relativa a um costume banido que comporá livros de educação a serem ensinados aos nossos filhos e netos.

SÍNDROME DE PATRÃO: A DOENÇA DA CLASSE TRABALHADORA

Maria Cecília Máximo Teodoro – Pós doutoranda pela UNB, Pós-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Castilla-La Mancha com bolsa de pesquisa da CAPES; Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP- Universidade de São Paulo; Mestre em Direito do Trabalho e Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Líder do grupo de pesquisa RED – Retrabalhando o Direito; Pesquisadora; Autora de livros e artigos; Advogada

Pensar em uma homogeneidade transcendental de valores e sentimentos que predomine em quaisquer circunstâncias, temporalidades e lugares, é algo irreal, pois as construções subjetivas, como visto, estão inexoravelmente sujeitas aos contingenciamentos históricos, filosóficos, políticos e individuais dos protagonistas de seus tempos.

De forma que tudo muda, inclusive os mecanismos de dominação, de controle, de sujeição e de extração e, como não poderia ser diferente, os atos de produção de subjetividades.

Já dizia Heráclito que mesmo aquele que entra no rio novamente não encontra as mesmas águas, pois o próprio ser já terá se modificado. “Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários”1.

Talvez esta seja uma grande questão a se abordar nas relações de trabalho dos tempos atuais, o perecimento do “combate entre os contrários”. Os trabalhadores parecem padecer de uma doença contemporânea, que elimina os opostos, colocando-os a favor do mecanismo que lhes oprime, numa Síndrome de Patrão.

A Síndrome de Patrão é uma analogia à Síndrome de Estocolmo, assim batizada pelo criminólogo e psicólogo Nils Bejerot para explicar os vínculos identificatórios e transferenciais que se desenvolvem nas relações torturador-vítima, algoz-padecente. Tais vínculos são de grande intensidade e potencializados por uma situação limite – normalmente de necessidade ou abuso – sendo que os torturadores/algozes aproveitam para “seduzirem” as vítimas2.

As conclusões foram tiradas de estudos realizados após um assalto, no dia 23 de agosto de 1973, ao banco Kredibanken, em Norrmalmstorg, Estocolmo, na Suécia. Quatro pessoas foram mantidas reféns durante seis dias e, curiosamente, ao tentar libertá-los, os policiais depararam-se com as vítimas usando seus próprios corpos como escudos para proteger os criminosos.

A esse estado psíquico atribuído à vítima, que após certo período de intimidação acaba se apaixonando e se identificando pelo seu algoz, recebeu o nome de Síndrome de Estolcomo. E Síndrome de Patrão é o nome dado ao fenômeno nas relações de emprego, a fim de demonstrar-se a identificação do trabalhador com seu patrão, em detrimento do sentimento de identificação com seus próprios pares.

A identificação com aquele que explora sua força de trabalho, muito mais do que com os seus próprios colegas de trabalho – embora com estes últimos exista a identidade real de situações de vida-, pode ser explicada pela relação estabelecida entre o trabalho e o consumo na sociedade contemporânea.

Em nosso sistema, consumir foi se tornando – dentre vários aspectos – condição de cidadania, na medida em que permite à pessoa se sentir pertencente à sociedade3. O consumo exerce influência direta sobre as referências de pertencimento do ser, na medida em que afeta sua identificação com determinados hábitos culturais, mas também no modo como atuam os atores políticos nos locais dos quais se sente parte ou dos quais gostaria de participar.

Na verdade, o simbolismo presente no ato de consumir faz surgir um novo sistema de castas na sociedade, na qual o consumo é gerador de signos de poder e de status. As pessoas querem parecer pertencer a classes sociais superiores e por isso são levadas a consumir cada vez mais para adquirir os bens que as farão atingir esse desiderato.

Ou seja, o consumo se apresenta como um processo de classificação e diferenciação social, em que os objetos – dotados de signos – “se ordenam como valores estatutários no seio de uma hierarquia”. Funciona assim como um instrumento eficiente de distinção da pessoa, em razão do valor simbólico que cada produto e seus significados sociais oferecem, “quer filiando-a no próprio grupo tomado como referência ideal, quer demarcando-a do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior”4.

Assim, inverte-se a lógica emancipatória que o trabalho poderia gerar, de pertencimento à classe trabalhadora, transformando-o em mero instrumento de geração de renda que se reverterá em consumo. E é através do consumo que o sentimento de pertença surge para o indivíduo, já não mais ou não tanto como trabalhador, mas sim como consumidor.

No trabalho, a falta de identificação do empregado com seus próprios pares alimenta a síndrome, pois a solidariedade de outrora deu lugar à competitividade de hoje, que tende a eliminar qualquer forma de compaixão e tem a guerra como norma, pela qual “a todo custo, deve-se vencer o outro, esmagando-o, para tomar o seu lugar”5.

Milton Santos diz que a competitividade, o consumo e a confusão dos espíritos constituem baluarte do presente estado das coisas. Enquanto a competitividade passa a comandar as formas de ação, o consumo passa a comandar as formas de inação. Já a confusão dos espíritos obstaculiza a compreensão de mundo, de lugar, de país, de sociedade, da pessoa e de si mesma6.

A concorrência no trabalho é, ao mesmo tempo, o pai e o filho dileto da Síndrome de Patrão. É pai na medida em que faz emergir trabalhadores que não se identificam com seus pares, enxergando neles um perigo iminente de tomar o seu trabalho e se ver relegado à sua própria necessidade, órfãos. É filho dileto porque decorre do que Vincent de Gaulejac chama de demanda por sucesso, fazendo com que o trabalhador se objetifique. Fundamentando-se “num desejo inconsciente de onipotência, que alimenta o seu próprio narcisismo”, o trabalhador e seu trabalho, mais do que nunca comparados à mercadoria, devem se apresentar em condições impecáveis, mostrando-se atraentes e vendáveis, a fim de encorajar o patrão a gastar seu dinheiro comprando a sua mão-de-obra7.

Não conseguindo mais identificar-se com seus pares e tomado por uma ilusão de que o desejo é apenas seu, o trabalhador é conduzido pelo intento de consumir e se tornar patrão, tomado pelo temor do fracasso, que nada mais é que o receio de perder o amor do objeto com o qual se identifica – o seu patrão -, e pelo medo de não sair-se bem aos olhos dele.

O consumo se apresenta como fio condutor desse processo do trabalhador de desindentificação e despertencimento à sua classe, e do apagamento da oposição entre capital e trabalho. O objeto do consumo funciona como templo de felicidade hábil a posicionar as pessoas socialmente, diante dos signos que emana. Essa lógica se imiscua no trabalho porque faz com que o trabalhador aja como se “estivesse” empregado, mas não como se “fosse” empregado, ou desejando que assim não permaneça por muito tempo.

Segundo Honneth, a percepção social de grupo é um forte instrumento de luta e o grande diferencial para a efetivação do reconhecimento através da solidariedade. E é por meio da solidariedade – do sentimento de pertencimento ao um meio social – que as propriedades diferenciais dos seres humanos veem à tona de forma genérica, vinculativa e intersubjetiva”8.

A Síndrome de Patrão termina por extirpar do íntimo do trabalhador o sentimento de pertença à sua categoria, minando a busca por melhoria de direitos, aumentando o estranhamento no trabalho e, finalmente, exaurindo a luta pelo reconhecimento de sua classe. Ela pode também levar o empregado a rescindir o contrato de trabalho por considerar mais “vantajoso” constituir sua própria empresa, passando assim a ser o “patrão” – se pejotizando-, quando na realidade continua no terreno da necessidade e trabalhando por conta alheia, sob dependência.

Neste contexto, a doença sindrômica apresenta-se fortalecida, pois é um desejo latente do próprio trabalhador querer exibir a condição de empresário ou pessoa jurídica, tendo em vista o aspecto da capitis diminutio que, culturalmente, atribuiu-se ao termo “empregado”9.

O sintoma imediato da Síndrome de Patrão é fazer com que os trabalhadores se identifiquem muito mais com o seu empregador do que com seus pares, negando a contradição capital/trabalho. Por um lado, identifica-se fortemente com o interesse da empresa, interiorizando a lógica do patrão – seu algoz -, cujas normas e valores são afinados com o capital. Por outro lado, parece introjetar dócil e pacificamente sua condição salarial de imprevisibilidade, submetendo-se ao risco de uma baixa qualificação, de ser dispensado e à pressão para se trabalhar cada vez mais, acabando por naturalizar uma competição que mais se assemelha à guerra.

Como toda síndrome, esta gera efeitos nocivos. O primeiro consiste no esvaziamento do Direito do Trabalho, pois quando os trabalhadores não se reconhecem como membros da classe trabalhadora, perdem o sentimento de pertencimento, em nome de um sonho falacioso de ser “patrão” e ganhar mais dinheiro, status e poder, o que retira a eficácia das normas e enfraquece este ramo especializado. O segundo efeito consiste em o próprio trabalhador se voltar contra o Direito do Trabalho, já que, afinal, através de uma visão individualista, egoísta, narcisista e objetificada, ele observa tão somente o que é bom para si a curto prazo e de maneira imediata, sem se perceber como membro de uma classe, cuja luta pressupõe reconhecimento entre pares e consciência de que estão em lado oposto ao do capital.

Importante notar como a Síndrome de Patrão, sutilmente, reverbera-se pela tomada da subjetividade do trabalhador pelo capital. O trabalhador, ao “vestir a camisa da empresa” e absorver o lema da school of life, é levado a “fazer o que se ama e amar o que se faz, permitindo que o empregador passe a controlar até mesmo os seus sentimentos10.

Daqui surge o ponto de convergência. Seja através da “pejotização” ou do “amar o que se faz”, o que se obtém é o total engajamento e identificação do trabalhador com a empresa, passando a trabalhar na defesa não dos interesses do seu grupo, mas dos interesses do patrão, obscurecendo a contradição outrora muito mais visível entre o capital e trabalho.

Por isso é preciso buscar no reconhecimento recíproco, no empoderamento do sentimento de solidariedade e de pertencimento ao grupo – papéis da organização coletiva e da pressão popular- a cura de referida Síndrome de Patrão, a fim de se convalescer o Direito do Trabalho.

1 Teoria do Devir de Heráclito de Éfeso. Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio…pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”. Disponível em <https://super.abril.com.br/ideias/tudo-flui-e-nada-permanece-heraclito/> Acesso em: 03 de ago., 2020.

2 MARTÍN, Alfredo Guilhermo. As seqüelas psicológicas da tortura. PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 434-449.

3 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

4 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 LTDA, 1995, p. 60.

5 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 46.

6 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 46.

7 GAULEJAC. Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida: Ideias & letras, 2017, p. 124.

8 HONNETH, Axel. A Luta Por Reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 199.

9 MAIOR, Jorge Luiz Souto. Curso de direito do trabalho: a relação de emprego. São Paulo: LTr, 2008. v. 2, p.195 -196.

10 FINELLI, Lília Carvalho. Do what you love, love what you do: impactos do lema de Steve Jobs na proteção trabalhista globalizada. In: TEODORO, Maria Cecília Máximo. (Org.). Direito Material e Processual do Trabalho – I Congresso Latino-americano de Direito Material e Processual do Trabalho. 1ed. São Paulo: LTr, 2015, v. 1, p. 49.

NÃO É O QUE NÃO PODE SER – UMA ANÁLISE ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO § 4ª, DO ARTIGO 791-A, DA CLT

Felipe Guimarães Ritzmann – Advogado, Especialista em Direito do Trabalho (Escola Superior da Magistratura do Trabalho da 12ª Região – AMATRA 12)

“Cabeça Dinossauro”, conhecido como o terceiro disco da banda paulistana de rock Titãs, certamente é apontado em 9 de cada 10 listas elaboradas em terras tupiniquins relacionando os maiores discos da história nacional. Uma verdadeira seleção sonora que remete aos tempos áureos do gênero musical das pedras rolantes que por aqui também aportou.

Um disco lançado em 1987, em meio aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte instaurada em 1986, que deu origem à Constituição Federal responsável por colocar o cidadão em seu centro de proteção e que trouxe lugar de destaque para os direitos sociais (gênero do qual o direito do trabalho é espécie), alçando-os ao patamar dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Referida obra inclusive se forja em meio a um gênero musical que cresceu presenciando o fim da ditadura militar e a queda da censura. Que observou de perto o atentado do riocentro e o movimento da democratização espelhado na campanha das Diretas Já. Um gênero musical, que segundo o dedicado estudo de Germano Schwartz1, produziu uma espécie de comunicação musical que traz grandes impactos no ambiente que circunda os subsistemas sociais.

Tamanha é a riqueza e profundida do disco, que para cada faixa do disco uma nova dissertação se mostra plenamente viável.

De um cenário distópico retratando um mundo pós apocalipse nuclear, em que apenas “bichos escrotos” sobreviveram à sanha do homem e sua bomba atômica certamente obteríamos belas linhas sobre os desdobramentos da imperativa observância à dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a faixa “Igreja” renderia uma oportuna reflexão sobre a necessidade de preservação do Estado laico e multicultural, sendo salutar recordar que há não muito tempo, durante a vigência da Constituição Federal de 1967 havia uma única religião oficial no Brasil: A Católica Apostólica Romana.

Já a relação capital/trabalho retratada em Homem Primata permitiria brilhante ensaio, especialmente se analisada à luz da “Ciência da Legislação Laboral”, do renomado jurista argentino Mário Deveali.

Dentre tantas outras, uma que carrega também grande apelo visual fecha com chave de ouro o apreciado disco: “O que”. Um digno exemplar que retrata tão bem o movimento da vanguarda concretista paulista, traz ainda mais forma e beleza ao conteúdo. Uma composição que dança em círculos, trazendo sentidos distintos a cada novo ponto de partida. Mas um em especial me reporta ao presente instante, em que se opõe a pena ao papel: “Não é o que não pode ser”!

O Direito do Trabalho insculpido sob a pedra da proteção aparenta vivenciar um período de franca crise de identidade.

Tal observação decorre das paulatinas alterações celebradas na malha legal trabalhista que evidenciaram nítido propósito desregulamentador e declarado objetivo de redução do número de demandas perante o judiciário trabalhista, ainda que para isto avançassem sobre garantias processuais, incorrendo em violação de direitos fundamentais, a exemplo da concessão efetiva dos benefícios da gratuidade de justiça ao trabalhador em condições de hipossuficiência, como pressuposto de acesso à jurisdição trabalhista.

O artigo 791-A, § 4º, incorporado à CLT, por força da aprovação da Lei n. 13.467/2017 trouxe o seguinte entendimento:

Vencido o beneficiário da Justiça Gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.

A norma acima transcrita ignora a condição de insuficiência de recursos do litigante para impor tal ônus ao beneficiário da gratuidade de justiça, afastando os benefícios da gratuidade de justiça independentemente da alteração financeira do trabalhador e de sua família, bastando, para tanto, que seja vencedor em ao menos um dos pedidos.

A expressão “créditos capazes de suportar a despesa” faria sentido somente quando a condição financeira do beneficiário da justiça gratuita fosse, de fato transformada por vultosa quantia obtida por meio de decisão judicial. Todavia, referido comando legal vinha sendo reiteradamente aplicado nas decisões judiciais, em desfavor de trabalhadores beneficiários da gratuidade de justiça, que logram parcial êxito em suas demandas, culminando em abatimento automático de créditos oriundos de direitos reconhecidos em sentença para quitação de honorários sucumbenciais, ainda que o acréscimo financeiro obtido em juízo passe longe de representar alteração na qualidade de sua vida.

A concessão de Justiça Gratuita implica necessariamente no reconhecimento de que o beneficiário não possui condições de litigar sem prejuízo de seu sustento e de sua família, na linha do art. 14, § 1º da Lei 5.584/70, encontrando alicerce nas garantias constitucionais de acesso à jurisdição e do mínimo material necessário à proteção da dignidade humana (CF/88, art. 1º, inciso III e art. 5º, inciso LXXIV). Por conseguinte, os créditos trabalhistas auferidos por quem ostente tal condição não se sujeitam ao pagamento de custas e despesas processuais, salvo se comprovada a perda da condição.

Semelhante compreensão acerca do comando legal em análise é compartilhada tanto pelo Enunciado n. 100, da 2º Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, como pelo Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, ao reconhecerem a inconstitucionalidade da previsão de utilização dos créditos trabalhistas reconhecidos em juízo para o pagamento de despesas do beneficiário da justiça gratuita, como honorários sucumbenciais.

Se observa com frequência que o não reconhecimento da inconstitucionalidade do §4º, do artigo 791-A, caminha associado ao argumento de que tal comando legal traduz verdadeira conquista da classe advocatícia para o processo do trabalho, oportunizando o recebimento de honorários sucumbenciais, em aproximação ao que já se praticava no processo civil.

Todavia é imperativo ponderar que o Código de Processo Civil, de aplicação dispensada aos litigantes na Justiça Comum, que em regra se encontram em equidistância, não estabelece tal possibilidade de utilização dos créditos reconhecidos em juízo para o pagamento de despesas do beneficiário da justiça gratuita, constatando-se assim que o legislador ordinário trouxe tratamento mais gravoso, restritivo e prejudicial ao demandante na Justiça do Trabalho, que ao destinado ao litigante na Justiça Comum, o que nos remete à constatada crise de identidade.

Tal qual dispõe Plá Rodriguez2, em sua obra Princípios de Direito do Trabalho, o Princípio de Proteção se refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, inspirado em um propósito de igualdade, ao efetivamente reconhecer a necessidade de minimizar os efeitos nocivos que a troca desigual – Dinheiro x Vida – que o Estado permite e incentiva, provoca no homem trabalhador e na sociedade em que ele está inserido.

Como bem pondera Valdete Souto Severo3, “os juízes não podem ser ‘pró’ essa ou aquela parte, mas havendo optado por atuarem como Juízes do Trabalho, têm dever de reconhecer e aplicar as regras a partir do princípio da proteção, com o qual assumem compromisso, ao jurarem aplicar a Constituição, que tanto no primeiro dos seus artigos, quanto em todo seu texto, teima em insistir na necessidade de proteção à relação de Trabalho”.

Acrescenta ainda que “a proteção não está à disposição do intérprete, para ser afastada no caso concreto, a partir da ponderação com outra norma jurídica. A proteção é o que legitima a regra trabalhista, está nela necessariamente ‘grudada’, sob pena de invalidade, em razão da quebra da função do ordenamento jurídico trabalhista”.

Os avanços e conquistas de outrora hão de perdurar, sob argumento inclusive da observância ao princípio da vedação ao retrocesso social.

Mas eis que o Supremo Tribunal Federal, provocado a analisar a alteração legal em comento, por intermédio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5766, surpreende a todos e em uma decisão histórica, com um placar apertado de 6 x 4, com votos favoráveis dos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber culmina reconhecendo não só a inconstitucionalidade do artigo 791-A, § 4º, da CLT, como também do artigo 790-B, que estabelecia também ao beneficiário da gratuidade de justiça o ônus de arcar com os honorários periciais, quando sucumbente no pedido em que originou a perícia.

Parafraseando Arnaldo Antunes, “não é o que não pode ser que não é”, pois não reconhecer a inconstitucionalidade do § 4º, do artigo 791-A, da CLT seria no mínimo negar a própria essência protetiva em que se funda o Direito do Trabalho.

Por ora o pulso ainda pulsa… Mas este já é assunto para um outro disco.

1 SCHWARTZ, Germano. Direito & Rock. O BRock e as expectativas normativas da Constituição de 1988 e do Junho de 2013. Livraria do Advogado Editora Ltda. Porto Alegre. 2014.

2 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Editora LTr. São Paulo. 2ª edição. 1978, pág. 27.

3 SEVERO, Valdete Souto. Resistência. Aportes Teóricos Contra o Retrocesso Trabalhista. Artigo: A Hermenêutica Trabalhista e o Princípio do Direito do Trabalho. Editora Expressão Popular. 1ª edição. São Paulo. 2017, pág. 37.