PRECISAMOS FALAR DE FEMINISMO JURÍDICO. REFLEXÕES À LUZ DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER.

Joana Rodrigues – Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador, na linha Trabalho e Questão Social, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo JusPodivm/Faculdade Baiana de Direito, Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Compliance pelo IEPREV, Professora de Direito Material e Processual do Trabalho na Universidade Católica de Salvador, Professora convidada da ESA, Escola Superior da Advocacia, Conselheira e Presidente da Comissão Especial de Apoio aos Professores da Seccional da OAB/BA, Conselheira da ABAT (Associação Baiana de Advogados Trabalhistas) e Advogada trabalhista

O dia 08 de março chegou! Data celebrada mundialmente e cuja a origem está repleta de controvérsias. Alguns associam o surgimento do Dia Internacional da Mulher com a greve das mulheres que trabalhavam em Nova York na Triangle Shirtwaist Company e, consequentemente, ao incêndio que ocorreu em 1911 que vitimou 130 mulheres que morreram cabonizadas.

Já outros, indicam que ela surgiu na Revolução Russa de 1917, a qual esteve marcada por diversas manifestações e reivindicações por parte das mulheres operárias. No dia 08 de março de 1917 cerca de 90 mil operárias russas percorreram as ruas reivindicando melhores condições de trabalho e de vida, ao mesmo tempo em que se manifestavam contra as ações do Czar Nicolau II.

Esse evento, que deu origem à data, ficou conhecido como “Pão e Paz”. Isso porque as manifestantes também lutavam contra a fome e contra a primeira guerra mundial (1914-1918).

A ideia de um dia internacional especialmente dedicado à luta das mulheres surgiu na Conferência Internacional de Mulheres Socialistas de Copenhague de 1910 pela professora, jornalista e política marxista alemã Clara Zetkin.

Porém, ainda que existam diferentes versões sobre a origem da data, ambos os movimentos tinham o objetivo de alertar sobre o estado insalubre de trabalho que as mulheres estavam sujeitas e se caracterizavam como movimentos políticos de defesa de seus direitos. Desse modo, até hoje essa data é referenciada como um ato político, pensado e vivido no curso da trajetória do movimento feminista no mundo.
Porém, nos tempos atuais, tem se observado que a espera por esse dia no Brasil e em diversos outros países da América Latina vem assumindo contornos ainda mais veementes, e é possível apontar algumas razões para isso.

Nos últimos anos, a luta do feminismo tem se tornado mais presente no cotidiano de muitas mulheres e esse movimento tem se internacionalizado, com diversas manifestações em prol de pautas feministas, como, especialmente, as da descriminalização do aborto – como a ocorrida na Argentina, que levou centenas de milhares de mulheres às ruas e que no dia 14 de janeiro, culminou com a descriminalização do aborto no país, e a do fim da impunidade em crimes de assédio.

Além disso, com a pandemia, as lentes sobre a realidade da desigualdade vivenciada pelas mulheres também foram aumentadas e o resultado disso pôde ser capturado pelas estatísticas, sobretudo no campo do direito das famílias (aumento de divórcios e discussões sobre a lei de alienação parental), do direito penal (com o acentuado aumento de casos de violência doméstica e números de feminicídio) e do direito do trabalho (a exemplo do aumento do desemprego entre mulheres, o aumento de mulheres acometidas pela síndrome de Burnout e todos os dilemas e desafios vivenciados por teletrabalhadoras em decorrência da desigual divisão com as tarefas de cuidado em âmbito doméstico/familiar).

Além de tudo isso, credita-se esse crescimento da movimentação em tono de pautas feministas no Brasil também como um movimento que se coloca em oposição à onda conservadora, que também está em ascensão no país, sobretudo após a eleição do então presidente Jair Bolsonaro.

Mas em que isso tudo se relaciona com o feminismo jurídico e a necessidade de se pensar o ensino jurídico crítico no país?
Aqui, é importante observar que a despeito do mencionado crescente protagonismo histórico e social de movimentos feministas no país, nem sempre as discussões formuladas pela epistemologia feminista alcançam o ensino jurídico nas universidades e bem assim no mundo jurídico acadêmico, que está ligado à docência jurídica marcada pela presença de homens brancos.

De acordo com Severi e Castilho (2019), no meio jurídico brasileiro, o feminismo é mais frequentemente associado à sua dimensão de ação política, já em países do Norte global, a interação entre o feminismo e a academia vem se intensificando desde a década de 1960, resultando na consolidação de um campo de estudos críticos do Direito, conhecido por meio de formulações como: Teoria Jurídica Feminista, Crítica Feminista ao Direito e Jurisprudência Feminista.

As autoras apontam que no Brasil, as questões sobre as quais as juristas e acadêmicas feministas mais debateram nas décadas de 1960 e 1970 se referiam à afirmação de direitos sociais − educação, creche, saneamento básico, direitos trabalhistas, moradia − e à luta pela redemocratização do país e a crítica feminista ao Direito ocorria com apoio em categorias mais presentes em vertentes do feminismo socialista.
Ademais, apesar da existência de um posterior aumento na produção brasileira ampla e variada de reflexões feministas sobre o Direito e as instituições políticas de justiça, houve pouca circulação na academia jurídica até a primeira década de 2000. A maioria das publicações era de editoras, não por acaso com pouca visibilidade no mercado editorial jurídico.

Este cenário engendra o que a autora Miranda Fricker (2017) chama de ‘Injustiça epistêmica’, que seria o termo usado para descrever um tipo de injustiça que ocorre quando excluímos a contribuição de uma ou mais pessoas à produção, disseminação e manutenção do conhecimento. Isto ocorre em geral com pessoas de grupos socialmente minorizados em perspectiva de poder ou em posições de subalternidade.

Mas o fato é que há muito está posto o desafio de construir uma articulação consistente e juridicamente relevante entre à teoria feminista e o Direito e sobretudo de levar esse debate para dentro das universidades. Infelizmente, a prática jurídica ainda nos demonstra que o Direito é bastante utilizado como um mecanismo de dominação no sistema patriarcal vigente.

Especialmente quando constatamos que temos um ensino jurídico que prescinde de uma reflexão crítica e atenta à necessidade de que os particularismos da situação das mulheres sejam devidamente colocados na generalidade do discurso jurídico.
Em nosso ordenamento jurídico, o Direito tem como razão de ser a regulação das relações na busca de Justiça – de equilibrar as relações, de produzir justiça e igualdade. Nestes moldes, não é possível admitir abordagem legal sem perspectiva de gênero, sem epistemologia da diferença e aí é que reside a importância do feminismo jurídico: o aperfeiçoamento da justiça.

Na contramão dessa realidade, se observa uma clara resistência em admitir qualquer tipo de saber jurídico que não o apresentado como uma norma pura, porém, é a partir da teoria crítica que esta é definida como uma prática discursiva social e produtora de sentidos diferentes dos sentidos construídos a partir de outros discursos.

Nesse sentido, Zaikoski (2008) afirma que as regras de produção do discurso jurídico são regras de atribuição da palavra, que individualizam aqueles que estão em posição de dizer o direito. A autora segue afirmando que se o direito estava do lado dos homens, e a parte correspondente (hierárquica) dos dualismos foi atribuída ou auto-atribuída a ele, é lógico que por muito tempo ele não via em outros assuntos, sujeitos do direito. O discurso jurídico moderno foi estabelecido sob o paradigma da liberdade, igualdade e fraternidade entre homens e para homens e como instrumento de violência simbólica.

Por tudo isso, o Direito tem funcionado como mais um perpetuador de distorções de gênero, quando invisibiliza uma epistemologia calcada na pluralidade e no respeito às diferenças, ou mesmo quando deixa de ser utilizado para promover a igualdade material e a equiparação social entre os sujeitos.

O direito brasileiro da atualidade, em sua dogmática e na prática judiciária, deve procurar dar resposta às reivindicações de justiça baseadas efetivamente na igualdade, na equidade e no pluralismo. Baseada em uma Justiça despatriarcalizada e assim, desvinculada de representações sociais hegemônicas.

Para que isso seja possível é necessário uma visão feminista do Direito, esta que também tem as suas pluralidades, ou um direito permeável às questões de gênero e sua incidência nas instituições jurídicas estatais, interestatais e não-estatais.

Sabe-se que esses são caminhos longos e que as disputas ainda estão em curso, mas todo começo demanda esforço e as novas bases de sociabilidade estão sendo construídas, começando pelo questionamento de que era tido como posto, pelas novas vozes que surgem das diversidades femininas, pela externalização de todas as formas de violência (incluindo as simbólicas e processuais), e pela ampliação do número de mulheres na docência jurídica.

São caminhos que se reconstroem em meio ao caos, mas que tem como princípios a construção de uma sociedade mais justa e equânime pós-pandemia.

Bibliografia
ALEMANY, Carme. Assédio sexual. In: dicionário crítico do feminismo. (Org.) HIRATA, Helena. [et al]. São Paulo, UNESP, 2009.

FRICKER, Miranda. Epistemic injustice: Power and the ethics of knowing. Oxford University Press, 2007.

GUIMARAES, Nadya Araujo. Gênero e trabalho. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 12, n. 2, p. 145-146,  Aug.  2004 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2004000200009&lng=en&nrm=iso&gt;. Access on  09  Mar.  2021.  https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000200009. 

MULLER, Felipe de Matos Muller; ETCHEVERRY (eds). Ensaios sobre a epistemologia do testemunho. Porto Alegre, RS, Brasil: pp. 143-172 (2017).

VÁRIOS AUTORES. Tecendo Fios das Críticas Feministas ao Direito no Brasil / revisão técnica: Fabiana Cristina Severi, Myllena Calasans de Matos. — Ribeirão Preto : FDRP/USP, 2019. 

ZAIKOSKI, Daniela. Género y derecho penal: Tensiones al interior de sus discursos. Aljaba,  Luján ,  v. 12, p. 117-134,  dic.  2008 .   Disponible en <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1669-57042008000100008&lng=es&nrm=iso&gt;. Accedido en  09  marzo  2021. 

“DE ONDE MENOS SE ESPERA” E O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE: DESAFIANDO A REFORMA TRABALHISTA, O TRABALHO DE MOTORISTAS POR APLICATIVOS E O BARÃO DE ITARARÉ

Oscar Krost

Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly ou simplesmente Apporelly (Rio Grande/RS, 29.01.1895 – Rio de Janeiro/RJ, 27.11.1971), foi jornalista, escritor e humorista. Ficou conhecido pela alcunha de “Barão de Itararé”, embora jamais tenha sido contemplado com qualquer título de nobreza.1 Frasista consagrado, eternizou pérolas repetidas por gerações, tais como “de onde menos se espera, daí é que não sai nada“.2


De fato, por diversas vezes a experiência acaba por confirmar a sabedoria do Barão e de seu otimismo às avessas. Entretanto, não se pode fechar os olhos à realidade a ponto de aceitar o destino como algo traçado e irreversível. Vale para a vida, assim como para o Direito do Trabalho.


Por definição legal, o “contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego” (art. 442 da CLT).3 Sobre os sujeitos do negócio, há, de um lado, o empregador, como “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço” (art. 2o, caput, da CLT) e, de outro, o empregado, “pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário” (art. 3o, caput, da CLT).

Quanto ao elemento temporal do negócio, “considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada” (art. 4o, caput, da CLT). Como uma categoria rarefeita da subordinação e da disponibilidade, a Consolidação prevê a figura do sobreaviso, quando o empregado “permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço”, em escalas de até 24h, cada, “contadas à razão de 1/3 (um terço) do salário normal” e a prontidão, quando ficar “nas dependências da estrada, aguardando ordens”, em escala de até 12h, “contadas à razão de 2/3 (dois terços) do salário-hora normal” (art. 244, §§ 2º e 3º da CLT).

Os limites máximos de trabalho – efetivo ou aguardando ordens – não encontra previsão apenas na lei, mas na Constituição, não devendo ultrapassar “oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho” (art. 7o, inciso XIII, da Constituição). Pelo Princípio da Proteção, podem ser estabelecidos patamares de duração do trabalho inferiores aos estabelecidos na Lei Maior, por se tratar de projeção da condição mais benéfica aos empregados e do Princípio do Não-Retrocesso Social.

Uma lógica linear, quase cartesiana. Pode, inclusive, ofender leitoras e leitores deste espaço jurídico tratar algo tão básico e amparado na racionalidade “time is money”.

Contudo, a partir da Reforma Trabalhista implantada pela Lei no 13.467/17 passa a existir no Direito brasileiro uma figura contratual inédita e de contornos tão atípicos quanto incompatíveis com o sistema vigente. Trata-se do “contrato de trabalho intermitente”, cujo rol de impropreidades começa em seu próprio nome.

O contrato de trabalho, espécie de negócio jurídico consensual e bilateral, não exige, via de regra, a observância de formalidade em sua pactuação. Mario de La Cueva, a este respeito, cunhou a expressão “contrato realidade” para demonstrar o quão atenuado se apresenta o elemento volitivo ao liame, marcando o seu viés fático, beirando o ato-fato. Portanto, intermitente não é a relação, mas a execução das obrigações principais de ambas as partes: de prestar trabalho, pelo empregado, e de pagar salários, pelo empregador.

Para José Martins Catharino,4 existem 03 hipóteses de intermitências contratuais, não se confundindo com o contrato que leva este nome, a saber:

I. execução negativa: ou não-execução. Não há trabalho, nem salário, embora em curso o contrato. Situa-se entre dois períodos de execução plena, ou um de execução plena e outro, de reduzida. Exemplo: intervalos entre e intrajornada, cuja inobservância, acarreta o direito ao pagamento de horas extras.

II. execução reduzida: sinônimo de interrupção. O contrato se encontra em curso, com contagem de tempo de serviço e pagamento de salário, porém, sem trabalho. Exemplo: repousos semanais remunerados, feriados, férias, licenças por casamento ou por doação de sangue, alistamento eleitoral, que inobservados, pela exigência de prestar serviços, gera o direito à percepção em dobro do valor-hora, sem prejuízo à remuneração do descanso.

III. redução absoluta: também chamada suspensão. O contrato se “desintegra” do mundo fático, desaparecendo. Não há trabalho, salário e tempo de serviço, podendo, este último estar presente em situações híbridas, de exceção. Exemplo: aposentadoria por invalidez, participação em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador e suspensão disciplinar, a qual não pode superar trinta dias consecutivos, sob risco de acarretar a rescisão injusta (sem justa causa) do contrato.

Entretanto, para o Legislador Reformista, contrato de trabalho intermitente é aquele pelo “qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria” (art. 443, §3o, da CLT)

A racionalidade, tanto do Direito das Obrigações, quanto do Direito do Trabalho, é subvertida por completo. Como regra, tínha-se uma relação em que a tônica recaía sobre o fazer ou colocar-se à disposição para fazer, a título oneroso, situações permeadas por lapsos de absoluta inatividade, remuneradas ou não.
Pela “ótica intermitente” o não fazer se torna ordinário, mantida a disponibilidade, mas a título gratuito, permeada pelo fazer.


A porção de terra cercada de água por todos os lados se torna uma fração de água rodeada por terra sob o arranajo de um paradoxo on-line x off-line. De um lado, alguns lutam pelo reconhecimento do Direito Fundamental à Desconexão, a fim de evitarem o esgotamento por excesso de trabalho, enquanto que de outro, os demais aguardam um chamado para se conectar e obter ganhos aquém do suficiente para prover um mínimo existencial.

De acordo com o Dieese (Despartamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o contato de trabalho intermitente representou ínfima parcela dos empregos formais criados entre 2018 e 2020. Houve o aviltamento remuneratório e o subaproveitamento do tempo à disposição, nos seguintes índices:

* 22% dos vínculos intermitentes não geraram trabalho ou salário em 2019

* 52% dos vínculos ativos em dezembro/2019 não apontaram atividade dentro do mês

* 44% dos trabalhadores que atuaram em dezembro/2019 receberam valor médio de R$637,00, abaixo de um salário mínimo

* 0,13% dos empregos formais foi intermitente em 2018, índices elevados para 0,33% em 2019 e 0,44% em 20205


Pelo viés constitucional, notória a violação da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e da livre iniciativa, da função social da propriedade e da seguridade social (arts. 1o, incisos III e IV, 5o, inciso XXIII, 6o e 170). Cria-se um posto de trabalho para combater o desemprego, mas a situação de desamparo segue inalterada, diante da imprevisibilidade de ganhos mensais. Quando existe remuneração, esta costuma ser irrisória, abaixo de um salário mínimo nacional.

Sob o olhar da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a modalidade intermitente é considerada atípica, situando-se ao lado do trabalho temporário, do trabalho por tempo parcial e de modalidades “dissimuladas”/por conta própria economicamente dependente.6 Entre as espécies em questão identifica-se como característica comum a ruptura das estabilidades temporal e remuneratória inerentes à relação de emprego, precarizando a estruturação da vida do trabalhador.

A relação de trabalho intermitente vai de encontro ao principal objetivo da OIT, degarantir um trabalho digno a homens e mulheres, assim entendido o prestado em condições de liberdade, equidade e dignidade.7 Até mesmo porque, se o trabalho humano não pode ser considerado mercadoria,8 como justificar tomá-lo e contraprestá-lo ao estilo “just-in-time” ou “on demand”?


O Direito Comparado confirma a face cruel desta maximização da exploração dos trabalhadores. Conforme Nívea Souto Maior, a relação de emprego intermitente foi proibida na Nova Zelândia, a partir de 2016, após forte pressão sindical, principalmente no ramo de “fast food”, dando margem à publicação pelo Parlamento do Employment Relations Amendment Act.9

Na Espanha, a partir do Real Decreto Legislativo no 02/2015, foi estabelecido o contrato “fijo-descontinuo”, exigindo a participação sindical obrigatória, a fim de estabelecer parâmetros de descontinuidade do trabalho/salário.10Houve a relativização da álea intermitente, em nome da proteção do sujeito subordinado.

Desde o Decreto Legislativo no 236/200, a Itália possui regramento para o “contratto a chiamatta”. Sua aplicação se limita a sujeitos com menos de 25 anos de idade ou mais de 55, não podendo exceder a 400 chamadas em 03 anos.11

Em matéria de Princípios do Direito do Trabalho, desnecessária maiores ilações, haja vista o vilipêndio de um padrão elementar de proteção, afrontando as 03 projeções do Princípio Protetivo: in dubio pro operario, aplicação da regra mais favorável e da condição mais benéfica. Afeta, ainda, o Princípio da Irrenunciabilidade em sua interpretação mais singela.


Mas como a lei não contém palavras vãs e toda regra deve ter seu sentido alinhado com os valores e disposições da Constituição e com as normativas internacionais de Direitos Humanos, com um razoável esforço hermenêutico é possível adotar o contrato intermitente sem prejuízo à concretização das promessas que justificaram sua criação pelo Parlamento: reduzir o desemprego e a informalidade laboral. Para tanto, deve ser resgatado o diálogo das fontes, nos termos do art. 8o da CLT, inspirando uma aplicação permeada pela experiência da jurisprudência, analogia, eqüidade e Princípios, além de usos e costumes e do direito comparado.


Partindo de tais premissas, podem ser inseridos no campo tuitivo trabalhista os
trabalhadores por aplicativo que transportam passageiros ou cargas. Segundo o Ministro Augusto César Leite de Carvalho, estes sujeitos seriam uma mescla de trabalhadores intermitentes, externos e teletrabalhadores.12

Fausto Siqueira Gaia, examinando detidamente a presença dos requisitos fático-jurídicos dos arts. 2o e 3o da CLT na relação entre motoristas e empresas agenciadoras, conclui estar presente uma nova face da subordinação, de viés disruptivo. Para ele, “o conceito proposto congrega os aspectos da relação entre os sujeitos da relação de trabalho, ao mesmo tempo que confere importância à integração do trabalhador à estrutura produtiva da empresa.”13

Em diversos países do mundo, a linha de interpretação apresentada já faz parte de precedentes judiciais, em moldes que lembram os contornos do contrato de trabalho intermitente brasileiro. Destaquem-se os julgamentos proferidos por Cortes da França,14Reino Unido,15Espanha,16 Estados Unidos17e Chile.18

Se a vida nos oferece limões, podemos aproveitar a situação de diversas maneiras, interpretando-a. Embora haja questionamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da disposição da CLT instituidora do contrato de trabalho intermitente,19inclusive com julgamento em curso, inegável estarmos diante de uma grande oportunidade para refletir e debater a proteção de motoristas que atuam sob ordem de aplicativos, relação de trabalho que envolve pessoas físicas, subordinadas e dotadas de dignidade. Como bem lembrava o Barão, “não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.”20

1 BENEDITO, Mouzar. Barão de Itararé: herói de três séculos. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2007.

2 Também são de sua autoria “Mantenha a cabeça fria, se quiser ideias frescas”, “O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro”, “Genro é um homem casado com uma mulher cuja mãe se mete em tudo” e ”Quem empresta, adeus”. Estas e outras máximas disponíveis em <https://www.revistabula.com/1557-40-frases-impagaveis-barao-de-itarare/>. Acesso em: 24 fev. 2021.

3 No caso brasileiro, como se depreende da leitura do art. 442 da CLT, houve dissenso entre os integrantes da comissão responsável pela elaboração do projeto original da consolidação, composta por dois contratualistas (Arnaldo Süssekind e Segadas Vianna) e dois anticontratualistas (Luiz Augusto do Rego Monteiro e Dorval Lacerda), dando ensejo à redação de um conceito peculiar, de que o “contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. (CAMINO, Carmen. Direito Individual do Trabalho. Porto Alegre: Síntese, 2003 p. 210).

4 Apud Carmen Camino. Ob. cit., p. 457.

5 DIEESE. Boletim emprego em pauta no 17, dezembro/2020, disponível em <https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2020/boletimEmpregoEmPauta17.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2021.

6 Organização Internacional do Trabalho (OIT). O emprego atípico no mundo: desfios e perspectivas. Genebra: Bureau Internacional do Trabalho, 2016, disponível em <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/—publ/documents/publication/wcms_626383.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2021.

7 Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trabalho digno. Disponível em <https://www.ilo.org/lisbon/temas/WCMS_650867/lang—pt/index.htm>. Acesso em: 19 fev. 2021.

8 Organização Internacional do Trabalho (OIT). Constituição da OIT e anexo – Declaração de Filadélfia. Filadélfia, 1944, anexo, I, “a”, disponível em <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—ilo-brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2021.

9 SOUTO MAIOR, Nívea. A despadronização da jornada: expressões da reforma trabalhista brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 142.

10SOUTO MAIOR. Ob. cit., p. 143.

11 SOUTO MAIOR. Ob. cit., p. 144. Confirmando a excelência de seu estudo, a autora analisa, na sequência do capítulo, o pronunciamento da Corte da União Europeia, em 2017, sobre as disposições italianas e a normativa de Portugal, de 2009, cuja leitura recomenda-se.

12 Instagram, perfil @augustocesarcarvalho, disponível em <https://instagram.com/augustocesarcarvalho_?igshid=14q0chi9aqsma>, postagem de 24 jan. 2021. Acesso em: 24 fev. 2021.

13 GAIA, Fausto Siqueira. Uberização do trabalho: aspectos da subordinação jurídica disruptiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 287. Merece destaque o estudo em questão, pela complexidade de se ater não apenas à fase contratual entre motorista e empresa, mas também pré-contratual, reconhecendo que “a política de marketing da UBER para atrair mais motoristas para laborarem na plataforma vai na contramão da direção da cláusula geral de boa-fé. (…) Ao realizar a fiscalização sobre o tempo de trabalho dos motoristas em favor da plataforma, caminha a plataforma tecnológica na contramão dos slogans citados para atrair mais condutores.” (Ob. cit. p. 286).

14 MARQUES, Rafael da Silva. Aplicativo de transportes – relação de emprego – decisão 374 da Corte de Cassação, sala social França, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2020/09/28/aplicativo-de-transporte-relacao-de-emprego-decisao-374-da-corte-de-cassacao-sala-social-franca/>, publicado em 28.09.2020. Acesso em: 24 fev. 2021.

15 Uber. Condutores são (mesmo) funcionários da empresa, delibera Supremo Tribunal do Reino Unido, disponível em <https://observador.pt/2021/02/19/uber-perde-no-supremo-tribunal-do-reino-unido-condutores-sao-funcionarios-da-empresa/>. Acesso em: 24 fev. 2021.

16 RODRIGUEZ, Elena; DAGHER, Sarah. Tribunal de Madri decide que entregadores são funcionários do app, publicado em 23.7.2019, disponível em <https://exame.com/carreira/tribunal-de-madri-decide-que-entregadores-sao-funcionarios-do-app/>. Acesso em: 24 fev. 2021.

17 MELO, João Ozorio de. Nova lei da Califórnia cria vínculo empregatício para motoristas de aplicativos, publicado em 13.9.2019, disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-set-13/california-cria-vinculo-empregaticio-motoristas-aplicativos>. Acesso em: 24 fev. 2021.

18 ESTRADA, Manuel Martín Pino. O teletrabalho no âmbito da reforma e da LGPD. São Paulo: ESA OAB/SP, 2021, p. 82.

19Pedido de vista suspende julgamento de ações sobre contrato de trabalho intermitente. Pedido de vista da ministra Rosa Weber suspendeu, nesta quinta-feira (3), o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 5826, 5829 e 6154, que questionam os dispositivos da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) que instituíram o contrato de trabalho intermitente. Até o momento, foram proferidos três votos: do ministro Edson Fachin, relator, que havia votado pela inconstitucionalidade da norma, e, na sessão de hoje, dos ministros Nunes Marques e Alexandre de Moraes, que votaram pela sua constitucionalidade.” (Notícia publicada em 03.12.2020,disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=456594>. Acesso em: 24 fev. 2021).

20O pensador, disponível em <https://www.pensador.com/frase/NTkzNTI5/>. Acesso em: 24 fev. 2021.

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NOS SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Lorena Vasconcelos Porto – Procuradora do Trabalho, Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”, Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG, Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”, Professora Convidada do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia, em Bogotá, e da Pós-Graduação em Direito e Processo do Trabalho da Universidade Presbiteriana Mackenzie, autora de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

No presente texto, almeja-se abordar, sem pretensão de esgotá-las, as ações adotadas pelo Ministério Público do Trabalho no âmbito dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.

A reforma trabalhista de 2017 (Lei n. 13.467/2017) alterou mais de 100 artigos da CLT, tendo introduzido, entre outros dispositivos, os artigos 611-A e 611-B, os quais versam sobre hipóteses em que a norma coletiva pode estabelecer uma proteção inferior ao mínimo assegurado em lei (“prevalência do negociado sobre o legislado”). Foi introduzido também o parágrafo único no artigo 444 da CLT para prever que, no caso de empregados com diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (trabalhador “hiperssuficiente”), pode ser afastada a aplicação das normas coletivas por meio de acordo individual com o empregador. Outro dispositivo introduzido na CLT foi o artigo 442-B, que busca afastar o vínculo empregatício e, portanto, a aplicação das normas legais e das normas coletivas correlatas, no caso de contratação formal do trabalhador como autônomo.

Em 2017, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) realizaram uma consulta ao Departamento de Normas da OIT, a qual foi respondida com a ratificação por esse último da conclusão do Comitê de Peritos segundo a qual a utilização genérica do negociado sobre o legislado para reduzir a proteção social do trabalho viola as Convenções n. 98 e 154 da OIT, ratificadas pelo Brasil. Na referida consulta, foi ressaltado que a reforma trabalhista de 2017 não foi discutida em um fórum tripartite, o que violaria a Convenção n. 144 da OIT. Em sua resposta, o Departamento de Normas da OIT salientou que uma alteração de tamanha profundidade na legislação trabalhista “deveria ser precedida por consultas detalhadas junto aos interlocutores sociais do País”. 2

Em 2018, houve enfática manifestação do Comitê de Peritos da OIT sobre a prevalência do negociado sobre o legislado (arts. 611-A e 611-B da CLT) e sobre o contrato individual do “hiperssuficiente” (art. 444 da CLT), no sentido de que violam as Convenções n. 98 e 154 da OIT, ratificadas pelo Brasil. Em razão disso, houve a inclusão do Brasil na “lista suja” da OIT, na Conferência Internacional do Trabalho em junho de 2018. 3

No Relatório de 2019, no qual menciona expressamente informações prestadas pelo MPT, o Comitê de Peritos novamente solicitou ao Governo brasileiro que, em consulta aos parceiros sociais, revise os artigos 611-A e 611-B da CLT, para adequá-los à Convenção n. 98 da OIT, de modo a especificar de maneira mais precisa situações em que cláusulas que afastam a legislação podem ser negociadas e a finalidade dessas cláusulas. Manifestou preocupação com a redução do número de convenções e acordos coletivos de trabalho e pediu informações específicas sobre o tema. O Comitê de Peritos também ressaltou a necessidade de assegurar o direito à negociação coletiva aos empregados “hiperssuficientes” (art. 444, parágrafo único, da CLT) e aos trabalhadores autônomos (art. 442-B da CLT) e de se estabelecer um diálogo social tripartite. Expressou também preocupação com a possibilidade de acordos coletivos de trabalho estabelecerem condições inferiores às convenções coletivas (art. 620, CLT). Na Conferência Internacional do Trabalho de junho de 2019, o Brasil foi novamente incluído na “lista suja” da OIT composta por 24 (vinte e quatro) países suspeitos de incorrerem nas mais graves violações do Direito Internacional do Trabalho em todo o mundo. 4

No Relatório de 2020, o Comitê de Peritos, com relação à aplicação da Convenção n. 98 da OIT, requereu ao Governo brasileiro que, em consulta com os atores sociais representativos, adote medidas necessárias para revisar os artigos 611-A e 611-B da CLT, a fim de expressar de maneira mais precisa as situações em que as cláusulas sobre exceção à legislação podem ser negociadas, bem como para determinar a dimensão dessas exceções. Requereu, ainda, que o Governo adote, após consulta prévia aos atores sociais representativos interessados, as medidas necessárias para que o art. 444, parágrafo único, da CLT, se ajuste à Convenção n. 98. O Governo brasileiro também foi instado a adotar as medidas necessárias para garantir que a legislação estabeleça expressamente sanções específicas contra atos de discriminação antissindical. 5

Ressalta-se que foi elaborado e publicado, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, um Manual de Apoio para a atuação de membros do MPT sobre “Temas da Lei no 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) à luz das normas internacionais”. 6

No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), destaca-se que Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) um Parecer Consultivo sobre o “alcance das obrigações dos Estados, no âmbito do sistema interamericano, sobre as garantias à liberdade sindical, sua relação com outros direitos e sua aplicação com uma perspectiva de gênero”. O objetivo é obter uma interpretação conjunta de várias normas interamericanas chave sobre as obrigações dos Estados em relação ao exercício da liberdade sindical, à negociação coletiva e à greve como parte dela, enquanto catalisadores da proteção de direitos trabalhistas, bem como à interpretação dessas normas com base em um enfoque de gênero. 7 O MPT, por meio do Procurador-Geral do Trabalho (PGT), apresentou suas contribuições para esse Parecer Consultivo e, através da Secretaria de Cooperação Internacional Trabalhista, participou da audiência pública realizada perante a Corte IDH em 28.07.2020 para tratar do tema.

O MPT também apresentou, por meio do PGT, manifestação como amicus curiae no Caso Empregados na Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus vs. Brasil, originado da explosão de uma fábrica clandestina de fogos de artifício em 11.12.1998, em Santo Antônio de Jesus/BA. Nesse acidente, 64 pessoas morreram e 5 ficaram gravemente feridas, e todas as vítimas fatais eram do sexo feminino, sendo 20 meninas e as demais mulheres. A explosão foi causada pela falta de segurança no local, onde havia também a exploração do trabalho infantil em uma de suas piores formas. Na sentença da Corte IDH de 15 de julho de 2020, houve a condenação do Estado brasileiro, com o reconhecimento expresso de sua responsabilidade pelo descumprimento de vários direitos previstos na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH), tais como o direito à vida e à integridade pessoal, o direito a condições equitativas e satisfatórias que garantam a segurança, a saúde e a higiene no trabalho, os direitos das crianças, o direito à igualdade à proibição da discriminação e o direito às garantias judiciais e à proteção judicial. 8

Destaca-se, ainda, a criação pelo PGT do Grupo de Assessoramento Especial para Litígios em Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, bem como, posteriormente, da Secretaria de Cooperação Internacional Trabalhista. Um dos objetivos buscados é a identificação de litígios estratégicos que possam ser submetidos pelo MPT, inclusive em conjunto com outras entidades, aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.

Pode-se citar como exemplo de litígio estratégico o Caso Telepar consistente em denúncia apresentada à CIDH pelo MPT, em conjunto com a Associação dos Demitidos da Telepar 31.05.1999 – ADTEL, e a Terra de Direitos, por violação dos direitos assegurados nos artigos 1.1, 2, 8.1, 16, 24, 25 e 26 da CADH, e nos artigos 6, 7 e 8, do Protocolo de San Salvador, ocorridas no contexto da dispensa em massa, arbitrária e discriminatória de 680 (seiscentos e oitenta) trabalhadores e trabalhadoras da então empresa operadora de telefonia TELEPAR — Telecomunicações do Paraná S/A em 31.05.1999. Essa dispensa foi objeto de ação civil pública ajuizada à época pelo MPT, por meio da Procuradoria-Regional do Trabalho da 9ª Região, tendo sido interpostos recursos perante as diferentes instâncias da Justiça do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal (STF), no qual tramitou, inclusive, uma ação rescisória ajuizada pelo Procurador-Geral da República.

Nessa denúncia, são apontadas as seguintes violações: ao princípio da igualdade e não discriminação, pois se tratou de dispensa discriminatória, já que os empregados desligados tinham idade média acima de 40 (quarenta) anos e a maioria possuía mais de 20 (vinte) anos de serviço na empresa; violação à estabilidade laboral e ao direito à proteção contra a dispensa injustificada, pois se tratou de dispensa arbitrária e sem negociação coletiva prévia com o sindicato laboral; violação ao direito à previdência social, já que muitos dos trabalhadores desligados estavam a poucos meses de atingir o direito à aposentadoria; violação à liberdade sindical, pois se tratou de dispensa em massa sem o estabelecimento do diálogo social com o sindicato; e violação à garantias judiciais e proteção judicial, já que, embora não tenha sido estabelecido um Programa de Demissão Incentivada (PDI) pela empresa, o STF aplicou ao caso o precedente do RE 590.415/SC, isto é, o tema 152 de repercussão geral, o qual trata de “renúncia genérica a direitos mediante adesão a plano de demissão voluntária”. O STF, portanto, decidiu com base em fatos inexistentes, a par de o caso ter demorado mais de 20 anos para obter uma decisão definitiva na jurisdição doméstica brasileira.

Além das reparações às vítimas ou a seus sucessores, nessa denúncia foi requerido que o Estado brasileiro seja obrigado a adotar todas as medidas adequadas, legislativas ou de qualquer outra natureza, para obter, inclusive: a devida regulação e fiscalização do direito à estabilidade laboral e proteção contra a dispensa injustificada, com proteção especial aos trabalhadores que se encontrem às vésperas de se aposentarem; a obrigação de que as dispensas coletivas sejam precedidas da regular negociação coletiva com as entidades sindicais laborais; e programas permanentes de educação e qualificação profissional, inclusive quanto às novas tecnologias, em especial para trabalhadores em idade mais avançada ou com maior dificuldade de recolocação no mercado de trabalho.

Percebe-se, portanto, que o MPT vem adotando uma série de ações e medidas de grande relevância, inclusive em conjunto com outras entidades, no âmbito dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.

1 O presente texto foi elaborado a partir da apresentação feita pela autora no 1º Webinário Temas Avançados do MPT, o qual foi transmitido no Canal Trabalho em Debate (https://www.youtube.com/watch?v=Y0YBxzisKXM) no dia 19.09.2020.

2ZEDES, Carolina Marzola Hirata. O tripartismo da Organização Internacional do Trabalho e a prevalência do negociado sobre o legislado. A organização internacional do trabalho: sua história, missão e desafios, volume 1. Org. Cláudio Jannotti da Rocha, Lorena Vasconcellos Porto, Rúbia Zanotelli de Alvarenga, Rosemary de Oliveira Pires. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 209.

3OIT. Observation (CEACR) – adopted 2017, published 107th ILC session (2018). Disponível em: <https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:13100:0::NO::P13100_COMMENT_ID:3523855>. Acesso em 19 jan. 2021.

4OIT. Informe de la Comisión de Expertos en Aplicación de Convenios y Recomendaciones. Disponível em: <https://www.ilo.org/ilc/ILCSessions/108/reports/reports-to-the-conference/WCMS_670148/lang–es/index.htm&gt;. Acesso em 19 jan. 2021.

5OIT. Comisión de Expertos en Aplicación de Convenios y Recomendaciones. Aplicación de las normas

internacionales del trabajo, 2020. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_norm/—relconf/documents/meetingdocument/wcms_736217.pdf&gt;. Acesso em 19 jan. 2021.

6PORTO, Lorena Vasconcelos; NETO, Silvio Beltramelli; RIBEIRO, Thiago Gurjão Alves. Manual do Grupo de Trabalho de Controle de Convencionalidade do Ministério Público do Trabalho: “Temas da Lei n. 13.467/2017 (“reforma trabalhista”) à luz das normas internacionais. Brasília: Procuradoria-Geral do Trabalho, 2018.

7CIDH. Solicitação de Parecer Consultivo à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Alcance das obrigações dos Estados, no âmbito do Sistema Interamericano, sobre as garantias à liberdade sindical, sua relação com outros direitos e sua aplicação com uma perspectiva de gênero. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/solicitudoc/soc_3_2019_por.pdf&gt;. Acesso em 19 jan. 2021.

8CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf&gt;. Acesso em 19 jan. 2021.

¿ES NECESARIO LEGISLAR SOBRE TELETRABAJO?

Hugo Barretto Ghione – Catedrático de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social de la Facultad de Derecho de la Universidad de la República (Uruguay), Secretario de Redacción de la Revista Derecho Laboral (Uruguay) y de la Revista Derecho Social Latinoamérica, Profesor asociado al Centro Europeo y Latinoamericano para el Diálogo Social, Director del Instituto de Derecho del Trabajo y la Seguridad Social de la Universidad de la República, Prólogo a la última edición de Los Principios del Derecho del Trabajo, del prof. Américo Plá Rodriguez, Autor do blog <http://hugobarrettoghione.blogspot.com>

Se encuentra en avanzado tratamiento parlamentario el proyecto de ley sobre “Teletrabajo. Promoción y regulación”, originalmente presentado por la senadora Carmen Sanguinetti y que fuera objeto de algunas modificaciones en el Senado de la República. Nuestro país parece sumarse así a una tendencia internacional de legislar sobre teletrabajo, que lleva algunos años, pero que ha cobrado impulso en tiempos de pandemia con algunos ejemplos interesantes. Se pretende así actualizar una legislación laboral que se ha visto “sorprendida” por este retorno al ámbito domiciliario como espacio de trabajo remunerado.

Como siempre ocurre, es necesario discernir entre cierto gusto snob por ponerse a la par de “lo que ocurre en todas partes” – un recurso fácil, además, para imponer cualquier producto – y la efectiva identificación de los desafíos y problemas que el cambio del lugar de labor genera en la organización y en las condiciones de trabajo.

Lejos de todo determinismo tecnológico así como de la visión que esté ocurriendo una especie de estampida de trabajadores al hogar, que harían necesario trastocar toda la legislación laboral para someterla a una revisión a fondo (y uno sospecha, por puro desconfiado, el resultado final de ese vértigo reformista), la realidad parece mucho más matizada y modesta y llama a la moderación de ese ímpetu revisor.

En cualquier caso, toda iniciativa legislativa debería centrarse en el dato esencial del teletrabajo, que consiste en el cumplimiento de las tareas comprometidas fuera del local de la empresa. Visto en su singularidad, no parece demasiado glamoroso ni ultramoderno. El Acuerdo Marco Europeo de Teletrabajo (2002) lo define justamente como “una forma de organización y/o de realización del trabajo, utilizando las tecnologías de la información en el marco de un contrato o de una relación de trabajo, en la cual un trabajo que podría ser realizado igualmente en los locales de la empresa se efectúa fuera de estos locales de forma regular.”

Sólo se trata de eso: hacer lo mismo, desde otro lugar.

Un proyecto de ley sobre teletrabajo debería concentrarse en las condiciones laborales del cambio locativo y no en otra cosa. Seria superabundante inventariar los derechos y obligaciones de las partes que no sufren mutación alguna por mudar la geografía del trabajo. Pero es paradojalmente lo que hace el proyecto a estudio parlamentario: crea un estatuto especial del teletrabajador totalmente desmesurado.

La mayor parte del articulado no agrega nada que ya no esté previsto de manera general. Pactar que el trabajo pueda hacerse fuera del ámbito físico de la empresa no requiere una ley, sino un simple acuerdo contractual o un convenio colectivo. Lo que pomposamente se mencionan como “principios rectores” son innecesarios, puesto que el carácter “voluntario” del teletrabajo es común a cualquier labor desde que hace varios siglos acabó la servidumbre; la declaratoria de su “reversibilidad”, por su parte, es igualmente inútil, puesto que es sabido que las condiciones de trabajo varían en el curso de la relación laboral al punto que ese mecanismo tiene un nombre en latín (“jus variandi”), lo que revela su antiquísima data.

Los tópicos de los derechos a la igualdad, intimidad, no discriminación y libertad sindical, que se “reconocen” al teletrabajador en esos Principios Rectores, están ya muy bien consagrados en la Constitución y en diversos tratados de Derechos Humanos que nuestro país ha ratificado desde hace muchos años.

En lugar de recurrir a lugares comunes podría hacerse previsto, como dispone la legislación española, algún instrumento de protección a las víctimas de violencia de género, circunstancia que seguramente pueda incrementarse por la prolongación de la estancia domiciliaria fruto del teletrabajo.

Que el teletrabajo pueda pactarse al inicio o durante la relación laboral y que puedan acordarse entre las partes los lugares donde se han de desarrollarse las tareas y aún el modo de registro de asistencia no parecen ser contenidos relevantes de una ley, puesto bastaría un modesto contrato o un convenio colectivo en el nivel que fuera.

Lo que no se dice y sería bueno decir sin llover sobre mojado es que la negativa del trabajador a aceptar esta modalidad de desempeño de las tareas no debería constituir motivo de despido ni ocasionar otras consecuencias dañosas, como recomienda el Acuerdo Marco Europeo sobre teletrabajo, de manera similar a lo dispuesto en las recientes leyes que sobre esta materia se adoptaron en España y Argentina.

Tampoco se desarrolla como era de esperar el problema de la provisión de herramientas de trabajo y de equipos, que queda en manos del “acuerdo” entre las partes, mientras que en países que han legislado sobre teletrabajo se ponen a cargo del empleador, como ocurre con cualquier otro insumo requerido para cumplir con la obligación laboral.

Normas nacionales e internacionales imponen la inevitabilidad de la responsabilidad del empleador en materia de la salud y seguridad y de protección automática sobre accidentes de trabajo y enfermedades profesionales, por lo cual su agregación luce una vez más como un ejercicio de barroquismo jurídico.

Se aplican todos los derechos,salvo los que no se aplican

Hay un dispositivo del proyecto que revela muy gráficamente lo que viene argumentándose: el art. 10 prescribe que el teletrabajo no afectará “los derechos individuales y colectivos consagrados por el ordenamiento jurídico vigente, en todo lo que le sea aplicable”.

La propuesta genera perplejidad: si se aplican todos los derechos individuales y colectivos ¿para qué se legisla en especial? Y lo que es más dudoso: ¿cuáles son los que no se aplican? El proyecto nada aclara, generando un suspenso casi cinematográfico sobre lo que queda fuera de foco, ya que en una muy mala técnica legislativa parece decir que “se aplica todo salvo lo que no se aplica”.

No obstante, una pista de lo que no se aplica aparece en el art. 8°, que suprime la limitación del tiempo de trabajo diario, desconociendo así normas constitucionales e internacionales ratificadas por nuestro país. La desregulación no solo contradice la declarada intención del proyecto de “regular” la actividad, sino que relativiza el derecho a la desconexión del art. 14°, ya que los límites entre trabajo y descanso quedarán en la práctica totalmente difuminados.

La eliminación del límite horario más va a inducir (¿u obligar?) a las personas a trabajar más tiempo, como ha ocurrido en países que primero aplicaron el teletrabajo, según demuestra “Trabajar en cualquier momento y en cualquier lugar”, un estudio realizado por la Organización Internacional del Trabajo antes de la pandemia.1

¿Es necesario legislar sobre teletrabajo? Es probable, pero el proyecto a estudio dice cosas que ya están dichas de mejor manera, omite otras que sería necesario reglar, y en el único punto que verdaderamente innova, se ocupa de desregular el tiempo de trabajo. Es un poco mucho.

1 Puede verse en: https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_712531/lang–es/index.htm

DO PRÉ-CONTRATO DE TRABALHO: o contrato preliminar de Trabalho no iter da contratação laboral: abordagem comparativa e jusfundamental – resenha

Oscar Krost

Em tempos líquidos em vias de evaporação, em que disseminada a visão de que tudo pode ser resolvido pelo uso de aplicativos ou de tutoriais, a oportunidade de ler “Do pré-contrato de trabalho: o contrato preliminar de trabalho no iter da contratação laboral: abordagem comparativa e jusfundamental”, do renomado jurista Guilherme Guimarães Feliciano, revigora a crença do Direito do Trabalho como legítimo marco civilizatorio e da produção crítica como fator essencial à reflexão.


Edição publicada em 2010, pela editora LTr, fruto de Tese de Livre-docência apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), devidamente aprovada, impressiona pela atualidade. Por questão de justiça, o termo adequado a defini-la é atemporal, predicado das grandes obras, jurídicas ou não.

Diante das carências legislativa e doutrinária sobre o pré-contrato no Brasil, o autor se ampara no Direito Comparado e em estudos estrangeiros, munindo-se de elementos necessários ao desenvolvimento da abordarem pretendida. Visita com mestria a normatividade de países como Alemanha, França, Itália, Suíça, Espanha e Portugal, apegando-se ao regramento deste último por nele identificar 4 elementos que o aproximam da realidade nacional, a saber: compatibilidade normativo-ideológica, proximidade cultural e linguística, utilidade sociojurídica e filiação histórica.

Se alguma dúvida ainda persistir a respeito da relevância do estudo do negócio preliminar na seara trabalhista, especificamente, Feliciano a dirime, ao esclarecer:

A autonomia privada não se exerce tão livremente quanto nos contratos civis clássicos (…) porque há direitos expectativos que decorrem de lei imperativa e não podem ser derrogadas (em ato ou potência), como também há posições mais favoráveis positivadas em instrumentos de regulamentação coletiva ou administrativa (…) que não podem ser voluntariamente dispensadas (irremunciabilidade).1

A obra com méritos, ainda, vai até as fontes e os fundamentos do Direito do Trabalho, dando especial atenção aos Princípios, propondo uma “abordagem jusfundamental”, expressão cunhada por Robert Alexy,2 para definir o contexto de observância às liberdades fundamentais, a exemplo das liberdades de ação profissional, de trabalho, de resistência, de livre iniciativa e de propriedade. Consegue tornar compreensível tema de elevada complexidade em apenas 200 páginas.

Que o anseio de Guilherme Guimarães Feliciano, quanto à importância de construirmos não “um Direito do Trabalho complessivo e de minúcias (…), mas um Direito do Trabalho basal, de princípios e regras – que, num futuro próximo, venha a se converter em teoria genuinamente ‘geral“,3 possa se concretizar em ações, a iniciar pela leitura de seu texto, importante passo em direção a este devir.

1 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Do pré-contrato de trabalho: o contrato preliminar de trabalho no iter da contratação laboral: abordagem comparativa e jusfundamental. São Paulo: LTr, 2009, p. 173.

2Ob. cit. p. 24.

3 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Do pré-contrato de trabalho: o contrato preliminar de trabalho no iter da contratação laboral: abordagem comparativa e jusfundamental. São Paulo: LTr, 2009, p. 73.

HENRY FORD, ESSE COMUNISTA

Rodrigo Trindade – Juiz do Trabalho (TRT4) e Professor

Fonte: <https://revisaotrabalhista.net.br/2021/01/19/henry-ford-esse-comunista/&gt;, acesso em: 19 jan. 2021.

Após mais de um século de operação em solo brasileiro, a Ford reconhece a inviabilidade de produção no país, decide fechar todas as suas quatro fábricas e manter produção apenas com importação de vizinhos. Mais que opção administrativa de uma empresa aleatória, há um significado gigantesco em medida tão radical.

É claro que Henry Ford não era comunista. Ao contrário, foi um notável empreendedor individual, construiu e acumulou riqueza pessoal e, para arrematar, chegou a ter relações bastante amistosas com nazistas. Mas é bem possível que o fordismo seria classificado como espécie de doutrina comunista caso tivesse surgido por esses dias do obscuro século XXI. O termo foi criado pelo próprio industrial, em 1914, para designar sistema produtivo de massa, firmado a partir de inovações técnicas e organizacionais. Em forte simplificação, uma linha de montagem constituída por trabalhadores com tarefas extremamente especializadas, repetitivas e extrema produtividade.

Mas os anos seguintes mostraram que o fordismo guarda componente econômico indissociável. A industrialização favorecida pelo sistema deu origem à chamada condição assalariada moderna. Com a ampliação produtiva, começou a se desenvolver novo perfil de operários, até então destituídos de garantias trabalhistas e apenas detentores de renda suficiente para a própria reprodução humana. Como bem resumiu o sociólogo Robert Castel, o fordismo fez com que o salário, então, passasse a comandar o consumo. É através dessa forma complexa de contraprestação que os próprios trabalhadores tornaram-se usuários da produção de massa e promoveu-se notável ciclo de crescimento econômico planetário.

A revolução operada por Ford – em grande parte com os aportes de Frederick Taylor (1856-1915) – ultrapassa as inovações da disciplina industrial e abertamente advogada a importância do “five dollars day”. Não foi pensada como simples aumento altruístico do salário, mas integração nas engrenagens da possibilidade do operário moderno ter acesso ao estatuto de consumidor dos produtos da sociedade industrial. O próprio Ford declarou “A fixação do salário da jornada de oito horas em cinco dólares foi uma das mais belas economias que já fiz na vida, mas elevando-se a seis dólares, fiz uma economia melhor ainda”.

O próprio papel do Estado precisou ser repensado no fordismo, passando a ter obrigações positivas para com os operários. Também Castel explica que as derrogações patronais à “lei de bronze dos salários” não consistiram simples ampliações de pagamentos efetuados pelos empregadores, mas especialmente em subvenções sociais não monetárias para casos de doença, acidente, velhice e desemprego. Tratou-se, aqui, de outra das importantes condições de alcance da condição salarial moderna: o acesso à propriedade social e aos serviços públicos.

Seguindo-se a obscura nova tradição nacional de negacionismo, já se lê e escuta afirmações para a desistência da Ford: especialização do mercado, impacto de novas tecnologias e – a maior das bobagens – culpa da legislação brasileira.

Mas não é apenas a histórica montadora americana que segue o caminho do aeroporto. Outras fabricantes, principalmente, de veículos de luxo, já declararam encerramento ou redução substancial de operações fabris no Brasil, como Audi, Mercedes Land Rover. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), já são 36 mil fechamentos no Brasil, entre 2015 e 2020, uma média, 17 fábricas por dia nesse período.  Em 2020, a fatia da transformação no PIB nacional deve chegar a 11,2%, o mais baixo desde 1946. Mesmo com os problemas cambiais e falta de renovação na produção, note-se que, segundo a série histórica iniciada em 2002, até 2014 o número de fábricas crescia, mesmo com a indústria perdendo relevância na economia. Há uma indisfarçável aceleração que precisa ficar melhor compreendida em suas causas.

Nos últimos anos, o Brasil não observou os postulados do fordismo. Em grande parte resultado de numerosas convulsões sociais experimentadas desde meados de 2016, a reforma laboral implementada no ano seguinte surgiu com a promessa de modernizar as relações trabalhistas, reduzir desemprego e aumentar a renda. E vem passando muito longe.

No tempo de vigência, a Lei 13.467/2017 não apenas deixou de cumprir a jura da criação de novos postos, como manteve o desemprego excepcionalmente alto. Desde antes da pandemia, o número de desempregados estava estabilizado em aproximadamente 12%, mas com crescimento de diversas categorias de subutilizados. Desde então, os empregos informais (fora da carteira de trabalho) seguiram crescendo, sem qualquer sinal de arrefecimento. Em todas as atividades, o grupo de informais é o que está em expansão, fazendo com que não registrados, somados autônomos sem cadastro de pessoa jurídica, já somem mais de 40% dos ocupados no Brasil. Com sua natural redução de renda e fora da rede de proteção social da relação de emprego, esmaga-se a capacidade de consumo.

Nos anos seguintes à Reforma Trabalhista, também vimos a transformação de empregos formais. Passaram não apenas para o mercado negro, mas para os agora legalizados contratos de emprego precarizados (terceirizados, tempo parcial e intermitentes), contribuindo ao cenário da redução de rendas. O fim da ultratividade das normas coletivas barrou negociações entre empresas e sindicatos, impedindo reajustes e aumentos reais.  Para ficarmos apenas no cenário pré pandemia, no primeiro semestre de 2018, a quantidade de convenções coletivas fechadas recuou 45,2%, na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo levantamento feito pela Fipe.

Mesmo aos restantes trabalhadores com empregos formais padronizados o achatamento de renda é evidente. Em 2021, o salário mínimo nacional alcançou a pior proporção em relação ao custo da cesta básica em dez anos, conforme dados do Dieese. Isso gera uma cadeia de empobrecimento. Da mesma forma que empregados domésticos não costumam ter recursos para viagens de férias internacionais, recebedores de salário mínimo não compram automóveis novos. Mas é o esmagamento do consumo na base que contém o do topo.

Esquecendo justificativas e mascarando consequências, pouco tempo depois, a Reforma Trabalhista cedeu protagonismo à irmã previdenciária. No lugar de rever as destrutivas regras laborais que vêm contribuindo para o empobrecimento, freando a economia e nutrindo o déficit do INSS, foi a Reforma da Previdência que se apresentou como salvadora da prolongada crise econômica. E ao reduzir o âmbito de atuação da Seguridade, com atravancamento de prestações, seguiu-se ignorando os postulados do fordismo econômico. A redução das prestações previdenciárias e da saída do Estado nos investimos de infraestrutura desidratam o segundo postulado do fordismo, o papel reservado ao Estado para ações prestacionais e serviços públicos.

A maior parte da renda nacional – e do consumo preconizado pelo fordismo – tem origem em salários e benefícios previdenciários, e não parece ser segredo que fortalecer ganhos de quem consome é o mais eficaz meio de construir a economia. A iniciativa de alteração de regras da Seguridade Social tende a fazer avançar um dos mais trágicos efeitos da irmã laboral: a retração de relações de emprego formal e resultante perda de arrecadações previdenciárias.

Segundo dados do CAGED, o Brasil perdeu mais de 43 mil empregos com carteira de trabalho apenas em março de 2019. Com exceção do setor de serviços, que gerou meros 4,5 mil postos, os demais grandes setores perderam postos de trabalho com destaque negativo para o comércio, com – 28 mil empregos. Todas as regiões geográficas perderam vagas e apenas oito Estados tiveram geração positiva de empregos.

Entre 2016 e 2018, o mercado de trabalho brasileiro experimentou aumento de 23% do número de autônomos e essa passagem não significou qualquer melhora da renda. Ao contrário. Também em dados do IBGE, somente para os novos autônomos, a migração forçada resultou redução de 33% da renda. Sejam movidos a combustão, motores elétricos ou células de hidrogênio, não há volume de compradores de carros em território nacional com tanto achatamento de renda. Cadê o consumo? O reformismo inconsequente levou.

O binômio destruição de empregos/ queda de arrecadação parece mais que efeito indesejado de uma robusta interferência ideológica nas legislações trabalhista e previdenciária. Com a aprovação da PEC 55 e barragem de investimentos públicos por 20 anos em país tão carente de infraestrutura, torna-se muito difícil manter investimentos de multinacionais. Planejadores de grandes empresas vivem de resultados e análises sérias, não de esperanças falsificadas e alimentadas por vieses ideológicos destrutivos.

É o capitalismo que se defende e busca preservação. Estudiosos importantes como Thomas Piketty há anos alertam que a distribuição de riqueza é uma das questões mais vivas da atualidade e que a trajetória de concentração exacerbada não conseguirá se sustentar por muito tempo. Para o ganhador do Nobel de Economia, a ampliação de desigualdades hoje vivenciada em muitos países é situação insustentável, arbitrária, que ameaça de maneira radical a própria sobrevivência do capitalismo. Simplesmente não há qualquer motivo para acreditar que o crescimento tende a se equilibrar de forma automática, e o Brasil vem produzindo exemplo cruel.

A aposta na precarização do trabalho é exatamente o oposto do que Henry Ford pensou como forma de viabilizar sua produção. Seria muito incoerente permanecer por aqui. De bobo, Ford não tinha nada – e muito menos o fordismo.

O NEOLIBERALISMO E A DISSIMULAÇÃO

Augusto César Leite de Carvalho – Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Mestre em Direito e Desenvolvimento (Universidade Federal do Ceará), Master em Direito das Relações Sociais (Universidad de Castilla la Mancha), Doutor em Direito das Relações Sociais (Universidad de Castilla la Mancha), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidad de Salamanca), Professor

Nos anos 70 o Brasil vivia um regime ditatorial e, por isso, os artistas precisavam disfarçar-se para esboçar alguma resistência. Eram previamente censurados ou caíam, adiante, nas teias da repressão estatal.

Para driblar a censura, o compositor Chico Buarque adotou o pseudônimo Julinho de Adelaide e assim conseguiu ter aprovada a música Acorda, amor que, em certa estrofe, diz assim:

Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame […] lá
Chame […] o ladrão

Acorda, amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, […]
Chame o ladrão, chame o ladrão”

A música foi aprovada e foi sucesso, servindo como um grito de libertação entre os que se opunham ao regime.

A era neoliberal é a era da dissimulação. Paul Krugman, entre tantos que criticam a economia dissociada da ética, ironiza esse modo supostamente neutro de pensar e diz que a economia neoliberal estaria associada a ideias zumbis, ou seja: “ideias que vão dando tombos arrastando os pés e devorando o cérebro da gente, em que pese haverem sido refutadas pelas evidências”.

A razão de o Estado existir é a garantia de que todos os direitos sociais (educação, saúde, moradia, trabalho digno etc) e ambientais (natureza e cultura em tempo de sustentabilidade) serão direitos assegurados efetivamente a todos, pois um só haverá de ser o ponto de partida para que todos possam exercer, em plenitude, as liberdades civis e políticas que nos conferem cidadania.

Ao negar a atualidade e urgência dessa pauta política, o fanatismo liberal é miséria e fingimento.

“BATE-PAPO NA LABUTA” COM GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO

GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO é paraense de Belém, Bacharel em Direito pela UFPA, Especialista em Direito do Trabalho pela Universidad degli Studi di Bologna (Itália) e Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP (summa cum laudae). Desembargador do Trabalho de carreira do TRT8 (PA/AP), do qual foi Corregedor, Vice-Presidente e Presidente. Foi convocado para o TST nos anos 1997, 1998 e 2002. É Doutor “Honoris Causa”, Professor Titular de Direito Internacional e de Direito do Trabalho no Curso de Graduação em Direito e Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais da Universidade da Amazônia (UNAMA). Tem proferido conferências e ministrado cursos em todos os Estados brasileiros e em países da Europa e América Latina. É Presidente Honorário da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e membro de número da Academia Ibero-Americana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social, além de mais de 50 entidades científicas brasileiras e estrangeiras. Também é autor de mais de 400 artigos doutrinários publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, de 49 livros jurídicos, do prefácio de 36 obras jurídicas, coordenador de 10 obras coletivas e coautor de 68 obras coletivas.


Gentilmente, aceitou o convite para o “bate-papo na labuta”, seção do blog “Direito do Trabalho crítico”.

1. Primeiramente, muitíssimo obrigado por aceitar o convite para esta conversa e nos proporcionar conhecer um pouco mais de uma figura que há mais de 40 anos vive intensamente o dia a dia jurídico. A propósito, como o Direito do Trabalho entrou na sua vida e por que ele ficou?

R.: Na adolescência, sonhava ser diplomata. Aos 17 anos, fui estudar cerimonial e protocolo no Itamaraty no Rio de Janeiro e, ao retornar, fui nomeado primeiro Chefe do Cerimonial do Governo do Pará, aos 18 anos de idade, o mais novo do Brasil na época. Era apaixonado por Direito Internacional, tanto que meu primeiro livro foi a “Proteção Internacional dos Direitos Humanos”. Depois, fui convidado para ser Assessor da Presidência do TRT da 8ª Região, pelo então Presidente, meu querido e saudoso amigo Dr. Orlando Teixeira da Costa, que mais tarde foi ser Ministro do TST e foi Presidente da Alta Corte. Em 1981, resolvi ser Juiz do Trabalho. Estudei muito, passei em 1º lugar e fiz carreira, sendo Juiz Substituto, até 1985, quando fui promovido Presidente da então única JCJ de Macapá (no Amapá) e, a pedido, em 1990, fui removido para a Presidência da então 4º JCJ de Belém. Em 1995, fui promovido, por antiguidade (recusei merecimento) para o TRT da 8ª Região, onde me encontro, reeleito Presidente da sua 4ª Turma de julgamento, depois de ter sido Corregedor, Vice-Presidente e Presidente (2002/2004). Gosto do que faço, amo a Justiça do Trabalho e estudo diariamente Direito do Trabalho e as disciplinas correlatas (no silêncio da madrugada é ótimo para ler e estudar) para tentar aprender um pouco, e, aos meus alunos, ensinar um pouco do que sei. Sempre é tempo de aprender.

2. Sua atuação profissional é bastante diversificada, transitando pela magistratura e magistério, nos planos nacionais e internacionais, com vasta produção escrita. Quais as principais referências nesta trajetória, não apenas no meio trabalhista?

R. Papai era jornalista, escritor e poeta. Foi Príncipe dos Poetas do Pará e presidiu anos a fio a Academia Paraense de Letras, cuja cadeira n, 38 agora é ocupada por mim (atualmente sou o terceiro mais antigo membro da APL). Com Papai aprendi a gostar de ler e ouvir os sábios falando. Em 1957, como cinco anos de idade, fui assistir uma sessão da Academia, e de lá para cá (estou chegando aos 70) nunca mais me afastei. Leio, leio muito. Dois romances me influenciaram bastante, de Benjamin Costalat, um autor praticamente desconhecido, brasileiro, que escreveu “Gurya” e “Virgem da Macumba”, que li e não esqueci jamais. Li (não tenho ter vergonha de admitir) “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. No Direito do Trabalho, minhas influências maiores são Orlando Teixeira da Costa, Arnaldo Lopes Sussekind e Amauri Mascaro Nascimento, pelos quais tenho especial carinho, amizade e saudade.

3. O que mudou no mundo do trabalho e na Justiça do Trabalho nestes mais de 40 anos de atuação profissional?

R.: Tudo. Mudou o mundo, a Justiça e o trabalho. O mundo agora é digitalizado, virtual, rápido demais para percebemos as mudanças. A rigor, sabemos o que é hoje, mas, certamente, amanhã será diferente. As notícias, que levavam dias para chegar a todos lugares, agora chegam em tempo real, e, com elas, as imagens e os sons. É o mundo novo.

E o trabalho vai na mesma linha. Impactados pela pandemia da Covid-19, os trabalhadores do mundo passaram, em grande parte, a desenvolver suas atividades em home office. Isto foi uma das grandes mudanças no sistema trabalhista do mundo. Nesse campo, percebe-se a alteração nos critérios de controle de jornada de trabalho, de identificação de meios de admitir efetiva subordinação jurídica, além de existirem novas atividades e novas formas de contratação.

Na Justiça do Trabalho, como, de resto em todo o Poder Judiciário brasileiro, de março deste ano em diante, intensificou-se a experiência do trabalho a distância. Atualmente, essa realidade é irreversível. As audiências virtuais, as sessões telepresenciais são o nosso normal. Antes, tínhamos o PJE engatinhando, íamos nos preparar para realizar sessões on line, faríamos complexos e demorados treinamentos e, um dia, tudo seria possível de ser aplicado.

A urgência do momento pandêmico que ainda não acabou importou em fazer de pronto, de imediato e, eis que verificamos que todos podíamos fazer e estamos fazendo. Deus não dá um fardo maior do que aquele que podemos suportar, está assim no Livro Sagrado (1Cor., 10:13). Falhas existem e estão sendo e continuarão a ser corrigidas. Mas, é para a frente que temos que caminhar e o amanhã é agora.

Ademais, não esqueçamos que o processo do trabalho, antes simples e eficaz, perdeu suas características e os princípios que originariamente o informavam foram para fundar os juizados de pequenas causas. Hoje, o processo civil, comum, ordinário, ingressou e enraizou-se na Justiça do Trabalho e o que era simples, direto, claro, objetivo, ficou complexo, lento e demorado. Espero que, futuramente, voltemos às nossas verdadeiras origens.

4. Flexibilização, Reforma Trabalhista e Direito do Trabalho de exceção (ou de emergência): qual sua relação e o que esperar dos Operadores do Direito do Trabalho daqui para frente?

R.: As três situações são diferentes, mas, ao final, todas caminham ao mesmo destino: criar instrumentos para melhorar as condições de vida da pessoa humana.

A flexibilização é uma forma admissível de ajuste da legislação tutelar do trabalho, permitindo a atuação mais efetiva dos sindicatos para levar à negociação coletiva a criação de normas autônomas justas que realmente atendam aos parceiros sociais. Não devemos confundir com desregulamentação, esta sim verdadeiramente danosa para o trabalhador porque o deixa ao completo desabrigo e desproteção.

A reforma trabalhista que geralmente tem sido referida é a de 2017, da Lei n. 13.467, que mudou muitos dispositivos da CLT. Mas ela é apenas uma dentre tantas reformas. A CLT, como todos sabemos, nem de longe é a mesma de 1943, e a legislação extravagante é infindável. Um dos pontos mais criticados é o da prevalência do negociado sobre o legislado, mas, data vênia, isto está insculpido com todas as letras no inciso XXVI do art. 7º da Constituição desde sua origem, em 1988, consagrando a supremacia das normas coletivas autônomas, e há quem não leu isso no Texto primitivo.

O chamado Direito do Trabalho de emergência ou de exceção envolve a precarização do trabalho e as formas menos protetivas do Direito do Trabalho tradicional, para fazer face aos problemas econômicos e para atender sobretudo às necessidades empresariais. Seus comentadores dedicam-se a cuidar de neoliberalismo e de formas mais agravantes do trabalho para enfraquecer o trabalhador e suas lutas por melhores condições de vida. A rigor, revela-se mais uma disputa político-ideológica, do que, verdadeiramente, uma preocupação com a salvaguarda da dignidade humana.

Os três aspectos podem ser unidos na busca de ajustar as leis brasileiras à realidade mundial. O diálogo que, antes era Leste-Oeste, depois passou a ser Norte-Sul, e agora parece ser entre quem tem e quem não tem.

O Brasil não pode ficar alheio a tudo isso, e deve tentar se despir de pensamento de lados e pensar e agir em busca do bem comum, que não é fácil de ser atingido.

Devemos acreditar que os operadores do Direito saberão operar essas mudanças. Aos juízes, ver a realidade dos fatos e da vida. Aos advogados, evitar disputas desnecessárias. Aos empresários e trabalhadores, unirem-se na certeza de que todos são indispensáveis, sempre…

5. Qual a importância do Direito do Trabalho em um momento histórico marcado pela globalização das relações, avanços tecnológicos e redução da participação dos Estados no campo social?

R.: O mundo tem vivido sucessivas globalizações ao longo da história. Pelo menos quatro podem ser facilmente identificadas: a da antiguidade, com o domínio de Roma; a das grandes descobertas, com o Novo Mundo; a do liberalismo e da Revolução Industrial, substituindo o homem pela máquina e criando um falso sentido de igualdade; e a atual, a econômica, a globalização das transnacionais, e, por igual, da moderna tecnologia que cria um mundo extremamente desigual e disruptivo.

No presente, as bruscas e inesperadas mudanças ocorridas desde março de 2020 no mundo alteraram o modo de ver as coisas e as pessoas. A informática ingressou de forma assustadora na vida do ser humano, mas, e é importante lembrar, isso não atingiu toda a humanidade. Esta foi atingida, sem exceções, pela pandemia da Covid-19, mas a era digital ainda está muito distante de alcançar os rincões da África e mesmo o interior remoto da Amazônia brasileira.

As notícias e os estudos que se desenvolvem referem-se aos grandes centros do mundo, onde as questões mundiais são mais importantes. Lugares longínquos não importam, afinal, o que é lastimável.

Cuida-se do teletrabalho, trata-se da uberização, critica-se justificadamente a pejotização, mas esquecemos a fome, a exploração do trabalho infantil, a xenofobia, a discriminação da mulher no mundo do trabalho. E aqui só estou pontuando alguns temas relevantes.

Os Estados, a seu turno, estão a se propor um afastamento das relações sociais, retirando sua tutela, e deixando tudo a critério dos parceiros sociais, mas é preciso lembrar que os trabalhadores, embora agrupados em sindicatos (no Brasil, sofremos um verdadeiro enxame de sindicatos desde 1988), nem sempre (talvez a maioria das vezes) essas entidades sejam verdadeiramente representativas. Como negociar, franca e sinceramente, se um lado tem poder e o outro nada tem? É uma questão tormentosa, que não pode ser respondida apenas pelo achismo de cada um. Envolve perquirir questões econômicas, sociais, culturais, psicológicos e, até mesmo, ideológicas.

Penso, no entanto, que os Estados devem permanecer como o farol orientando o caminho que deve seguir a sociedade humana. Não deixar o homem abandonado (a experiência do início do século XIX não deu certo), mas protegê-lo minimamente e garantir a prevalência da sua dignidade.

6. Uma mensagem a título de conclusão.

R.: O que esperar dos anos que hão de vir? Não sei. É muito difícil fazer prognóstico. A bola de cristal do homem não o ajuda muito a fazer previsões concretas. Pode até ver embaçadamente as coisas, mas não prever afirmativamente os eventos futuros.

Tempos atrás, escrevi um texto que intitulei Ficção & realidade, com um breve cotejo das ficções da história com a realidade da história. Terminei valendo-me de uma citação do grande orador Cícero, aquele das Catilinárias.Em Como envelhecer: sabedoria antiga para a segunda metade da vida, Cícero ensina como devemos enfrentar a vida e identifica a importância da humanidade e do saber fazer para poder saber envelhecer, e nos deixa a refletir sobre tudo que estamos passando: O tempo perdido jamais retorna e ninguém conhece o futuro. Contentemo-nos com o tempo que nos é dado a viver, seja qual for!

E, prossegue: Para ser aplaudido, o ator não tem necessidade de desempenhar a peça inteira. Basta que seja bom nas cenas em que aparece. Do mesmo modo, o sábio não é obrigado a ir até o aplauso final. Uma existência, mesmo curta, é sempre suficientemente longa para que se possa viver na sabedoria e na honra. E se acaso ela se prolonga, não iremos nos queixar, como tampouco fazem os camponeses, de que após a clemência da primavera venham o verão e o outono. A primavera, em suma, representa a adolescência e a promessa de seus frutos; as outras estações são as da colheita, da seara.

É complicado refletir sobre essas coisas, mas não devemos olvidá-las jamais. E, na 6ª edição de meu Curso de Direito do Trabalho (São Paulo, LTr, 2020), escrevi: Devemos ter firme esperança de que esses percalços [refiro-me às bruscas mudanças da atualidade] serão todos superados, e o mundo do trabalho será de paz e felicidade para todos. O nosso futuro será de permanente construção de dias melhores para as gerações que hão de vir.

Devemos refletir bastante sobre os efeitos da inteligência artificial, que, ao cabo, resume todo esse porvir da humanidade real. Colhemos as palavras de Hawking, que bem demonstram essa preocupação: ‘a inteligência humana é caracterizada pela capacidade de se adaptar a mudanças. É resultado de gerações de seleção natural sobre indivíduos com capacidade para lidar com as novas circunstâncias. Não devemos, portanto, temer as transformações. Precisamos apenas fazer com que eles operem em nosso benefício’.

Tudo o que projetarmos sobre possíveis acertos ou erros para o amanhã resultam em uma grande incógnita, com a única certeza de que nada, absolutamente nada, superará a maior de todas as criações: a do próprio homem.

Chegando o Natal, e na expectativa do Ano Novo, agradeço ao prezado magistrado Dr. Oscar Krost pelo convite para participar deste Bate-Papo na Labuta, augurando a ele e a todos os que nos leem que as luzes da estrela da Natividade de Jesus se irradiem por todos os dias de 2021, com muita paz, saúde e felicidades a todos.

Belém, 09 de dezembro de 2020.

PANDEMIA, VÍRUS E LEIS

Oscar Krost

Pandemia, contaminação, vírus, medo, caos, quebra, desespero. Palavras que ocupam nosso cotidiano por todos os lados.

Não há um dia sequer em que cada uma delas não nos desperte do transe de normalidade que tentamos manter para não deixar as coisas saírem totalmente do controle.

Trago duas notícias, não irrefutáveis verdades, apenas notícias, uma boa e outra ruim. A ruim é que nunca estivemos no comando. A boa é que essa máxima vale para todo mundo.

Nunca se correu tanto sem se sair do lugar, não apenas pelas medidas de isolamento físico, ampliando a impressão de estarmos ilhados, cavando uma rota de fuga com os pés. Túnel ou cova?

Decretos, leis, Medidas Provisórias.
WhatsApp, Instagram, Twitter.
Lives, video-chamadas, fóruns. Paliativos, atos extremos, tentativa e erro.

O que nos faz mais falta neste momento – e em todos -, mesmo em situações de suposta normalidade, é assumirmos a identidade enquanto espécie. As saídas da crise devem ser fruto do diálogo. Não de discursos verticais e verborrágicos, heróicos ou fatalistas. Devemos ser francos, horizontais – na medida do possível – e democráticos. Fala e escuta, dialética, troca.

Quanto mais pessoas participarem do processo, maior legitimidade as escolhas terão. Somos diferentes e, longe de ser um problema, é nosso maior trunfo. Para que servem diferenças se forem reprimidas, negadas e desperdiçadas?

É hora de refundar as bases do pacto social, redefinir o sistema de trocas e redistribuir perdas e ganhos. Precisamos resgatar o sentido do termo coletividade e tratar nossas particularidades como fator de multiplicação, não de divisão.

Troquemos a disputa pela colaboração, a astúcia pela empatia e o eles pelo nós.

Leis, remédios e isolamento podem atacar a proliferação do vírus, mas saúde vai além da ausência de doença. Exige viver e ninguém vive sozinho.

Pensemos nisso.

Blumenau, 02 de abril de 2020.

O DIREITO E AS SUAS FRAUDES

Márcio Túlio Viana – Professor no Programa de Pós graduação da PUC Minas, Magistrado aposentado (Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região/MG)

Introdução

Não vou falar da pandemia. Na verdade, vou pedir uma pausa para ela, a fim de enfrentar um tema que já existia antes e continua a existir. E, para isso, peço-lhes licença para contar – ou recontar – um velho caso da minha família, do sul de Minas Gerais.

Eram duas irmãs, Idalina e Isolina. Idalina, bonita, jovem. Isolina, menos bonita, quase feia, e já passando da idade de casar, como se dizia nos velhos tempos. Naturalmente o Evaristo escolheu Idalina, e marcaram o casamento. Na véspera, deitados na cama, o pai e a mãe da noiva conversavam. Em certo momento, o pai vira-se para mãe e diz: “É, a Idalina vai se casar se com o Evaristo… ” E a mãe: “Pois é! E vai ser amanhã!”. O pai retruca: “Mas é uma pena, pois quem deveria estar se casando era Isolina, com quase 30. . A Idalina arranja marido quando quiser!”. A mãe concorda: “É mesmo, mas fazer o quê? Evaristo escolheu a Idalina!”, Mas o pai não se conforma: ” Isso não pode ficar assim. Vou dar um jeito. Vou mudar as coisas!” E a mãe: “Você está louco, homem? E o que o Evaristo vai dizer?” E o pai, concluindo: “Não ligue para o Evaristo, o que ele quer é entrar para a família!”

E assim foi feito. O padre era amigo ou parente da família. E ele e o pai da noiva combinaram a tramoia. Dia seguinte, na igreja, Isolina entrou de véu, cobrindo o rosto, como era de costume. Depois das palavras do padre, Evaristo – que de nada sabia – quis beijar pela primeira vez a noiva. E de repente encontrou a boca errada, a de Isolina: “Uai, é você, Isolina?” Perguntou mineiramente, entre decepcionado e surpreso. E ela: “Sou eu!” E ele: “Tá bom!”. Prova de que era um homem cordato, como os amigos diziam, ou de que sua intenção, de fato, era entrar para a família…

Passou-se o tempo. E Isolina se revelou uma mulher forte, como se costumava dizer das mulheres da Bíblia. Pouco tempo depois, já eram donos de uma fazenda. E como ele adorava caçar e pescar, e não desprezava uma boa rede, sempre que não estava atirando nas pacas ou brigando com os bagres e traíras passava a tarde espichado, na grande varanda da casa, contando suas façanhas e inventando outras tantas. Ao passo que ela, todo dia, corria a fazenda a cavalo, pagando os homens, dirigindo o trabalho, e às vezes também ordenhando, plantando couve ou debulhando milho para as galinhas. E assim prosperaram rapidamente, e a tal ponto Isolina ganhou o respeito do povo que Evaristo teve de adotar o “Mendes” dela no seu próprio sobrenome. Ao passo que Idalina, bela e jovem, casou-se pouco tempo depois, como o pai previra, mas não teve o mesmo sucesso.

A fraude que habita o Direito

Lembrei-me daquele curioso caso a fim de concluir o óbvio: fraudes e simulações sempre existiram. Na Bíblia, Eva foi traída pela conversa da serpente. Na mitologia grega, Ulisses enganou os troianos com o seu cavalo – um falso presente – e tempos depois, de volta ao lar, disfarçou-se de mendigo. Enquanto isso, sua amada Penélope tapeava seus pretendentes, costurando de dia e descosturando à noite o manto que lhes permitiria pedir a sua mão.

Na conquista da América, antes mesmo de sair em busca do Eldorado – sua grande obsessão – Cortês fez de tudo para aprender os costumes, as crenças, os modos de pensar e de sentir dos astecas. Chegou até a se casar com uma indígena, que lhe ensinou a língua e os segredos de seu povo. E foi assim que ele pôde enganá-los facilmente, a ponto de forjar até profecias que o faziam parecer uma espécie de deus2.

Entre nós, a expressão “conto do vigário” não nasceu por acaso. Segundo a versão mais conhecida, havia em certa cidade dois padres, que disputavam a posse de uma imagem, cada qual sonhando em leva-la para a sua igreja. Certo dia, um deles virou-se para o outro e disse algo assim: “Tenho uma ideia; você está vendo aquele burro? Se ele trotar na direção da sua igreja, você fica com a santa; se na direção da minha, fico eu com ela”. E assim foi feito. Só depois descobriram que o padre que propôs o desafio era o dono daquele burro…3

Por essas e outras razões, um dos personagens de Dostoiévski chega a dizer que a grande diferença entre nós e os animais é a capacidade de fraude, do engano. Mas ele próprio comete um engano, pois se por acaso conhecesse nossas matas certamente saberia, por exemplo, que a fêmea do melro costuma deixar os ovos no ninho do tico tico, um passarinho muito menor, para que a fêmea do tico tico os choque – e cuide de seus filhos. Do mesmo modo, se o personagem de Dostoiévski ouvisse os povos da floresta, saberia que o boto, uma espécie de golfinho, disfarça o seu bico com um chapéu e se introduz, nas festas das aldeias ribeirinhas, para seduzir e engravidar as moças. Ou pelo menos é o que contam os pais das moças…

Outro exemplo é o babuíno. Às vezes, descobre um petisco no mato, e fixa os olhos no lugar oposto, para enganar o bando. Algo parecido com o que fazia o nosso Ronaldinho Gaúcho, tanto no Barcelona quanto no Atlético, quando olhava para um lado e passava a bola para o outro. Aliás, o futebol é um espaço privilegiado para fraude, como nos mostra a arte do drible. Garrincha dobrava o corpo para a direita, mas suas pernas seguiam para a esquerda, ou vice versa – tapeando, e às vezes também derrubando, os seus atônitos marcadores.

Mas embora sejam tão comuns, e tão antigas, as fraudes hoje se multiplicam muito mais. Graças à tecnologia, por exemplo, tornou-se muito mais fácil falsificar uma bolsa Louis Vuitton do que era décadas atrás. Além disso, alguns elementos fortes da chamada pós-modernidade – como as misturas, o espetáculo, as aparências vencendo as essências – também facilitam as tapeações. Assim, por exemplo, não é difícil um governante culpar os mortos na pandemia por terem morrido – já que não usaram cloroquina. Ou um ministro concluir que seria útil aproveitar toda essa preocupação com a pandemia para flexibilizar a proteção ao meio ambiente – exatamente o nome de sua pasta.

Muitas vezes, a fraude é usada inocentemente, como no caso das fantasias do Carnaval, ou no das famosas máscaras de Veneza – antes usadas não só como artigos da moda, mas para facilitar traições amorosas. A arquitetura pós-moderna é outro bom exemplo. Se visitarmos a bela Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, veremos ao lado de prédios de estilo eclético o edifício pós moderno conhecido como ‘Rainha da Sucata’. Ali podemos ver colunas que não sustentam nada, janelas que não se abrem e pórticos também falsos.

Outras vezes, porém, a fraude é usada como forma de domínio ou usurpação. Por exemplo: hoje, como sabemos, muitas empresas chamam o empregado de “parceiro”, “colaborador”, pelo menos até o dia em que resolvem despedi-lo como se fosse lixo. No mundo das plataformas digitais, evita-se até o uso do verbo “trabalhar” nos contratos com os trabalhadores, como indica uma importante pesquisa de uma ex-aluna nossa, hoje mestra em Direito e assessora do TRT.4

Ora, como sabemos, o Direito do Trabalho sempre se preocupou com a fraude. Em nossa CLT, o artigo 9° é um bom exemplo. O problema é que hoje a fraude invade o próprio Direito, sobretudo por intermédio da reforma trabalhista. Em quase todos os seus artigos, a nova lei parte de falsas premissas e esconde o que acontece na realidade. Se o mesmo artigo 9º pudesse, certamente começaria a devorar a própria CLT – na parte em que a reforma a transfigurou.

Para fraudar, a reforma joga com as emoções e os valores do nosso tempo. Sobretudo com a sede e a fome de liberdade e de igualdade.

Naturalmente, como sabemos, essas aspirações não são novas, mas hoje também parecem ter aumentado enormemente, e não apenas para o bem, como poderia parecer. Muitas das violências que vemos ou vivemos têm alguma relação com isso. São respostas. E o tamanho dessas respostas revela a dimensão do fenômeno.

Veja-se, por exemplo, um dos verbos da moda – o verbo “empoderar”. Todos querem se sentir assim, empoderados, ou pelo menos parecer assim. E isso vale até para o operário simples e pobre, que quase não tem poder algum. Fica então bem mais fácil convencê-lo a celebrar um contrato como “autônomo”. Abre-se um novo espaço para a violência patronal.

E não é só a prática das empresas, mas a própria lei, como eu dizia, que joga com essas subjetividades. Há pouco tempo, vimos na televisão brasileira o anúncio de um banco dizendo que a nova carteira de trabalho é um tablet, e assim sugerindo, nas entrelinhas, que basta querer para ser empreendedor.. A ideia é anular o outro, negando a existência dos contrários. Não à toa, nossa colega Maria Cecília Máximo Teodoro fala de “Síndrome de Patrão”.

De certo modo, o fenômeno lembra até aquela figura jurídica da confusão. Na medida em que você faz o empregado parecer patrão, e anuncia isso, e sugere isso, e fantasia isso, a resistência fica bem mais difícil. As duas imagens se confundem, e então o outro já não é o outro, é como se fosse a sua réplica. É como se os dois fossem um só. Desse modo, mata-se o conflito pela base.

Nas fantasias – não inocentes – do legislador, também o sindicato, longe de estar em crise, tornou-se forte o bastante para poder negociar para baixo, sem aquele patamar mínimo que a lei exigia. Sempre seguindo sua estratégia de fraude, o mesmo legislador praticamente afasta o sindicato das rescisões contratuais – quando o trabalhador já não é empregado e, portanto, volta a ter voz – para em seguida recoloca-lo, também fantasiosamente, nas quitações anuais de débitos trabalhistas, quando o mesmo trabalhador é forçado, pelas circunstâncias, a tudo aceitar em silêncio. Com isso, “resolve-se” o problema do grande número de ações trabalhistas, da mesma forma que se “resolveria” facilmente o problema da superlotação dos hospitais impedindo a entrada de doentes.

E o legislador também joga iscas – como já fazia o nosso Evaristo.

Há pouco tempo, na TV, alguns de nós devem ter visto o vídeo de uma ponte na Inglaterra, em cima de um belíssimo rio, num lugar repleto de peixes e passarinhos. Para ali vão os turistas, ávidos por apreciar a paisagem e jogar pãezinhos para os peixes. Pois bem: curiosamente, os passarinhos aprenderam a pescar: voam até a beira do rio, jogam migalhas de pão na água, e quando vem o peixe comê-los, abrem o bico e comem o peixe.

O nosso legislador, como eu dizia, também aprendeu a jogar iscas. É o que faz, por exemplo, ao introduzir na CLT o conceito de autônomo. Tecnicamente, não precisava fazer isso. Bastaria a velha definição de empregado. Mas na medida que ele introduz formalmente essa figura, também induz e facilita as fraudes – incentivando (sem confessar) a contratação de falsos autônomos. Em seu afã de buscar o engano, chega a ponto de prever a figura do “autônomo exclusivo”.

Outra isca, outra fraude, é a ideia de abrir as portas do Direito do Trabalho para o Direito Civil, como revela a nova redação do artigo 8° da CLT – criticada tão brilhantemente pelo nosso querido colega Cléber Lúcio de Almeida. Diga-se o mesmo quando o legislador tenta reduzir o campo de interpretação do juiz. Ou quando admite que um preposto da empresa não seja um empregado – o que tem feito surgir um novo mercado de prepostos profissionais, habilmente treinados a depor na Justiça.

Mas a melhor isca talvez não esteja nas alterações pontuais, e sim na mensagem que a reforma traz. Ela passa a ideia de que o trabalhador já não precisa de proteção, que o Direito do Trabalho mata o Direito ao Trabalho, que a CLT é obra fascista ou comunista – o que, para o nosso governo, às vezes parece o mesmo. E a terceirização – outra fraude – completa esse discurso nem sempre visível, contradizendo a própria ideia do empreendedorismo ou do empoderamento. É que o trabalhador passa a ser negociado como coisa, e pouco a pouco, no imaginário coletivo, começa a ser visto também assim. Na verdade, ele próprio talvez já se veja um pouco assim.

Pois, bem, quando um de nós sofre uma agressão direta, visível, clara, explícita, é bem mais fácil reagir. Podemos até não reagir, se for esta a nossa escolha; mas pelo menos sabemos o que aconteceu conosco. No entanto, quando a agressão é dissimulada, disfarçada, oculta – como o assédio moral, por exemplo – a vítima nem sabe, às vezes, que está sendo agredida, e não raramente até se culpa pela agressão, sofrendo então duplamente.

Foi exatamente por isso que o legislador procurou não apenas induzir a fraude, mas praticá-la. Imitando Ulisses com o seu cavalo, ele pode apresentar a reforma trabalhista quase como uma homenagem ao novo tipo de trabalhador que ele a todo instante fantasia: o trabalhador supostamente empoderado, consciente, capaz de fazer valer a sua real vontade.

Diante disso, como agir?

Mineiro gosta de caso, ou de causo, e eu não resisto a contar mais um.

Sempre gostei de mágicos, e até hoje eles me encantam. Pois bem. Na Itália, onde pude viver por quase três anos com minha mulher e minha filha caçula, sempre ouvíamos, no início da noite – e do alto do nosso pequeno apartamento – a voz de um mágico que percorria os bares.

Algumas vezes, descendo à rua, chegávamos perto dele – e lhe agradecíamos com algumas palavras e euros. Lembro-me até de que, certa vez, estávamos tão maravilhados com a sua arte que uma amiga brasileira, que por acaso estava conosco, ficou sem a sua bolsa – levada pelas hábeis mãos de um menino que corria, também ele, certamente, uma espécie de mágico.

Por tudo isso, fiquei triste quando certo dia, alguns anos atrás, um outro mágico, num programa de TV, dedicou-se a divulgar e a ensinar os truques dos colegas. Achei um absurdo aquilo, pois ao revelar aqueles segredos ele estava não apenas tirando o pão dos colegas, mas levando embora as nossas pequenas ilusões, a própria magia da mágica.

De qualquer forma, porém, aquele mágico traidor revelava, também, outro elemento da pós-modernidade: a tendência de querer olhar, enxergar, desvendar o que está oculto. Vemos isso em quase todos os lugares. Em filmes ou programas de TV, já não é raro vermos os bastidores, os camarins, o camera man. No teatro, é cada vez mais comum o artista se despir do personagem, assumindo quase a posição de espectador. Alguns livros escrevem sobre si mesmos. E o próprio Direito já inventava, algumas décadas atrás, a sua famosa “disregard doctrine” – que se dedica a levantar o véu.

Concluindo

Pois bem, eu diria que é preciso levantar o véu que cobre o processo de destruição de direitos sociais, e de modo particular a reforma trabalhista. E essa é uma das novas missões do sindicato e também dos outros movimentos sociais..

Num tempo de fake news – e a reforma é um exemplo de notícia falsa – é preciso que o trabalhador pelo menos saiba o que está acontecendo com ele, para que decida se irá ou não reagir. Mas é preciso também que a própria Justiça abra os seus olhos.

A propósito, é curioso notar como nós nos costumamos a ver a imagem da Justiça – sempre com os olhos vendados. Mas um autor muito interessante5 conta que não muito tempo atrás, nos desenhos e pinturas, a Justiça tinha os olhos bem abertos. Às vezes tinha até vários olhos, inclusive na nuca, para mostrar ao povo que nada lhe escapava. E só alguns séculos depois, quando a ideia da igualdade pareceu mais importante, foi que os artistas cobriram os seus olhos, para que o povo a visse imparcial, democrática, muito embora esta realidade tivesse e tenha também traços de fantasia.

De todo modo, penso que é preciso, hoje, que a Justiça volte a abrir os seus olhos, na medida do que lhe permite a sua própria miopia, e não apenas nas representações dos artistas. É preciso que os juízes do trabalho, especialmente, enxerguem um pouco do que acontece não só à sua volta – com a miséria crescente – como no interior da própria norma e até mesmo em seu próprio interior.

Quero crer, como velho juiz, que a maior parte dos colegas conserve ainda o espírito do Direito do Trabalho. Mas não tenho dúvida de que uma proporção crescente tende a se pautar pelo modelo do juiz civil ou do juiz federal, e, com isso, deixe de ser o que é, sem que consiga ser o outro; perca o seu próprio referencial e assim vá perdendo, também, o seu diferencial.

Costuma-se dizer, dos jovens de hoje, que muitos deles têm a nostalgia dos anos 60 – um tempo que não viveram. Pois eu diria que alguns magistrados do trabalho têm nostalgia de seu tempo imaginário de juízes federais, com toda a pompa e circunstância que cercam esse cargo e essa denominação. Não percebem que é exatamente o seu pequeno mister de garantir horas extras ou salário mínimo que lhes dá a maior das importâncias – a de contribuir, ainda que de forma bem limitada, para que o trabalhador deixe de ser tratado como animal e ganhe o estatuto de gente.

Por fim, acredito também que a escola deve participar do mesmo esforço de comunicação, para mostrar ao trabalhador o que está acontecendo, e como é importante se unir – inclusive aos diferentes. E esse esforço deve ser eficiente, inteligível, deixando de lado completamente o juridiquês. Assim, ao invés de se guardar entre quatro paredes, alimentando-se de suas aulas e pesquisas, a escola deve escalar os seus próprios muros, privilegiando os projetos de extensão e não só falando às pessoas, mas ouvindo – e sobretudo as pessoas pobres, marginalizadas, dentro ou fora das relações de emprego Imitando aquele mágico traidor da TV, mas já agora com um objetivo decente, devemos desvendar os truques do legislador.

1 Palestra proferida no Colóquio Internacional dos Direitos Humanos e Direito do Trabalho: um diálogo necessário- setembro de 2020- Programa de Pós graduação em Direito. PUC Minas – Belo Horizonte

2 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

3 A propósito, cf., por exemplo, BUENO, Márcio. A origem curiosa das palavras. Rio de Janeiro: José Olympio,2002.

4 Trata-se de Natália de Chagas Moura, que está prestes a lançar um livro – excelente – sobre vigilância digital no trabalho e fora dele, e que também envolve assuntos correlatos.

5 FRANCA FILHO, Marcilio Toscano. A cegueira da Justiça. Porto Alegre: Antônio Fabris, 2011.