TELETRABALHO NA ARGENTINA E NO BRASIL: TÃO PERTO, MAS TÃO LONGE

Oscar Krost

Em 14 de agosto de 2020 foi publicada na Argentina a Lei no 27.555/20, regulando o teletrabalho. Desde 2003 o país é signatário da Convenção n° 177 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Lei n° 25.800/03 -, assumindo o compromisso de aperfeiçoar as condições de atuação dos empregados que laboram à distância, bem como de implantar uma política de igualdade neste campo.

A Constituição argentina assegura, a tutela dos trabalhadores, em condições dignas e equitativas de atuação.1Guardadas as devidas proporções, consagra os mesmos ideais de isonomia e de igualdade previstos no art. 7o, incisos XXX e XXXII, da Constituição brasileira.2

Enquanto no Brasil o Poder Legislativo disciplinou o teletrabalho pela inserção dos arts. 75-A a E à CLT (Lei no 13.467/17),3 na Argentina a medida ocorreu pelo acréscimo do art. 102 bis à Lei do Contrato de Trabalho (Lei no 27.555/20).4No lugar de distinguir os dispositivos introduzidos pela alocação de letras ao lado dos numerais, preservou a numeração do projeto de lei, em desdobramentos do art. 102 bis, começando pelos arts. 1o e 2o, seguindo pelo art. 102 bise continuando do art. 3o.

O art. 102 bis define o contrato de teletrabalho como aquele em que os serviços contratados ocorram no domicílio do empregado, de modo total ou parcial, ou em lugar diverso dos estabelecimentos do empregador, fazendo uso de tecnologia de informação e comunicação. Delega à lei especial a definição dos pressupostos mínimos do contrato de teletrabalho e chancela o ajuste de questões especiais pela via negocial coletiva.

A expressão “contrato de teletrabalho”, ao invés de “regime”, como no art. 75-A da CLT, não traz prejuízo de qualquer ordem na interpretação ou aplicação da lei, pois ela mesma utiliza como sinônimo o termo “modalidade”, ao se reportar ao teletrabalho. O texto argentino faz menção aos arts. 21 e 22 da Lei do Contrato de Trabalho, quanto ao objeto do contrato, nos quais são estabelecidos os requisitos da relação de emprego.5 Não há exigência de exclusividade de laborar o trabalhador fora das dependências do empregador.

Já o art. 75-B, caput, da CLT impõe a preponderância da atuação remota, não esclarecendo o critério a ser utilizado, se por unidade de tempo ou de obra. De forma explícita, estabelece não se confundir o teletrabalho com o trabalho externo (art. 62, inciso I, da CLT), nem desconfigurado o regime remoto pelo comparecimento do trabalhador à sede da empresa para realizar tarefas específicas (art. 75-B, parágrafo único, da CLT).

Pelo art. 3o são assegurados aos teletrabalhadores idênticos direitos dos empregados presenciais e atribuídos poderes às normas coletivas para disciplinar situações híbridas. Inexiste disposição semelhante na CLT, sendo possível, por uma interpretação sistemática do art. 7o, incisos XXX e XXXII, da Constituição brasileira, defender o mesmo tratamento estabelecido na regra argentina.

O art. 4° determina a pactuação da jornada por escrito, dentro dos limites legais. As plataformas e softwares adotados no teletrabalho devem estar acessíveis apenas durante o expediente. O art. 5° garante o direito à desconexão digital,6 vedando o trabalho em sobrejornada e a comunicação do empregador com o empregado fora do horário contratado, ainda que por mensagens.

Em sentido diverso, a CLT exclui o teletrabalhador do campo de incidência de seu capítulo sobre a duração do trabalho. Flagrante e injustificada a afronta ao Princípio da Proibição do Retrocesso Social (art. 7o, caput, da Constituição).

O art. 6o prevê o estabelecimento de horários e pausas especiais aos teletrabalhadores responsáveis por menores de 13 anos, pessoas incapazes ou que necessitem de cuidados especiais. A resistência do empregador é reputada presumidamente discriminatória, sujeitando-o às sanções legais. Não há regra semelhante na CLT, embora a Constituição brasileira (arts. 226 e 227) atribua a todos o dever de tutela da infância e da adolescência, bem como ao Estado, a proteção da família.

O art. 7o permite a troca do regime presencial pelo remoto, desde que de forma bilateral e por escrito, salvo se devidamente comprovada ocorrência de força maior. A previsão se assemelha à do art. 75-C, §1o, da CLT, pela qual o mútuo consentimento é exigido quando o empregado passasse do sistema presencial para o remoto, não o contrário (art. 75-C, §2o, da CLT).

O art. 8o da lei argentina assegura o direito de arrependimento do trabalhador, revertendo o consentimento dado para mudança de regime, de presencial para teletrabalho. Acaso isto venha a acontecer, o retorno ao antigo local de trabalho é preservado e, em sua impossibilidade, garantida a transferência ao posto mais próximo do domicílio do empregado.

O descumprimento da obrigação acarreta a violação do dever de ocupação (art. 78 da Lei do Contrato de Trabalho), ensejando o recebimento de salários, mesmo se não prestados serviços. A negativa empresária dá margem à configuração de causa a amparar a despedida indireta (“rescisão” indireta), pondo fim ao contrato. Não há regra similar na CLT.

Pelos arts. 9o e 10 é imputado ao empregador o dever de fornecimento dos equipamentos necessários ao teletrabalho, bem como a assunção de despesas de instalação, manutenção, reparos e atualização. Os trabalhadores ficam responsáveis pelo uso exclusivo dos instrumentos, não respondendo por desgaste/depreciação comuns. Acaso o teletrabalho acarrete aumento de despesas de conexão e de serviços de suporte pelo empregado, deve ser assumido pelo patrão, conforme norma coletiva, valores isentos de tributação.

Sobre o tema, o art. 75-D da CLT estabelece que o pacto referente à aquisição, manutenção e fornecimento de maquinário deve constar em contrato escrito, não estabelecendo a quem caberia o custeio. Não afasta a responsabilidade patronal, ficando a questão nas entrelinhas, por conta do teor do art. 2o, caput, da CLT. Esclarece não possuírem as utilidades fornecidas natureza salarial (art. 75-D, parágrafo único, da CLT).

O art. 11 atribui ao empregador a capacitação de empregados em regime de teletrabalho, visando à adequação das condições da prestação de serviços. Faculta o acompanhamento pelos sindicatos e pelo Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social.

Sobre a questão, o art. 75-E da CLT prescreve como deverdos patrões a instrução dos trabalhadores quanto a precauções relacionadas à saúde e ao trabalho. Determina a assinatura pelo sujeito subordinado de termo de responsabilidade pelas orientações recebidas (art. 75-E, parágrafo único, da CLT).

Novamente, a efetiva tutela do trabalhador brasileiro é deixada na dependência de uma interpretação sistemática do regime de trabalho especial, dando margem a casuísmos e a relativizações. O alcance do conteúdo do art. 75-E da CLT deve se amparar nos Princípios jusambientais da Prevenção e da Informação, bem como na Convenção no 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).7

Merece destaque a garantia pela norma argentina: da igualdade de direitos coletivos entre teletrabalhadores e trabalhadores presenciais (arts. 12 e 13), do reconhecimento da autoridade competente para disciplinar o teletrabalho e da participação sindical neste processo (art. 14), da manutenção de controles de bens e de informações de propriedade do empregador, também com a contribuição do sindicato, salvaguardando a intimidade do empregado (arts. 15 e 16) e da aplicação das regras vigentes no local onde fisicamente ocorrerem os serviços, limitando a contratação de estrangeiros e de não residentes no país (art. 17).

Sem dúvida de qualquer espécie, a Lei no 27.555/20 encontra-se alinhada às diretrizes da Organização Internacional do Trabalho e da Constituição argentina ao disciplinar o teletrabalho. Cuidado, prevenção e responsabilidade se destacam como eixos fundamentais. Não se apresenta apenas possível, como recomendável, pela centralidade da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho na Constituição brasileira, a utilização da norma do país vizinho como fonte supletiva às regras dos arts. 75-A a E da CLT sobre a matéria, diante do conteúdo do art. 8o da própria CLT.

1 Constituição argentina, art. 14 bis, disponível em <https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/10092>. Acesso em: 28 ago. 2020.

2 Sobre a aplicação dos referidos dispositivos ao teletrabalho no direito brasileiro, ver KROST, Oscar. Proibição de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, Reforma Trabalhista e ‘teletrabalho’: diferenciando iguais para reduzir direitos. In ARAUJO, Adriane Reis de; D´AMBROSO, Marcelo José Ferlin. (Coordenadores). Democracia e Neoliberalismo: o legado da Constituição de 1988 em tempos de crise. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 331-360.

3 O Brasil não é firmatário da Convenção no 177 da Organização Internacional do Trabalho, conforme informado em <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242947/lang—pt/index.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020.

4 Texto da Lei no 27.555/20 disponível em <https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/233626/20200814>. Acesso em: 28 ago. 2020.

5 Os conceitos de empregado e empregador se encontram nos arts. 25 e 26 da Lei do Contrato de Trabalho, sendo feita remissão aos arts. 21 e 22 da mesma lei. Texto disponível em <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/25000-29999/25552/texact.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020)

6 No Brasil, os debates sobre a existência do direito à desconexão avançam, sem atingir, ainda, o nível das alterações legislativas promovidas na Argentina. A respeito do tema, ver ALMEIDA, Almiro Eduardo; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais do trabalho. 2a edição. São Paulo: LTr, 2016 e GOLDSCHMIDT, Rodrigo; GRAMINHO, Vivian Maria Caxambu. Desconexão: um Direito Fundamental do trabalhador. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.

7 Sobre tal entendimento, ver SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de (et al.). Reforma trabalhista: análise comparativa e crítica da Lei nº 13.467/17 e da Med. Prov. nº 808/2017 – 2ª a ed. – São Paulo: Rideel, 2018, p. 111-112.

“DESCONEXÃO: UM DIREITO FUNDAMENTAL DO TRABALHADOR” (resenha)

Oscar Krost

Desconexão: um Direito Fundamental do trabalhador” é obra do Rodrigo Goldschmidt e Vivian Maria Caxambu Graminho, lançada pela Lumen Juris Editora (2020).1 O prefácio é do Professor e Juiz do Trabalho Guilherme Guimarães Feliciano (USP). Ao longo de 190 páginas, organizadas em 04 capítulos,2 em linguagem técnica, porém acessível, é defendida a existência de um Direito Fundamental do trabalhador a “se afastar totalmente do ambiente de trabalho, preservando seus momentos de lazer, relaxamento e convívio com a família e amigos”. Sob esta perspectiva, garantir-se-ia o “tempo necessário ao restabelecimento do seu equilíbrio físico e psicológico, além de possibilitar o seu convívio social com a comunidade” (p. 03).

Fica evidente, desde o primeiro capítulo, que a limitação de jornada apenas para fim de retribuição pecuniária é ponto de partida a ser superado. São postos em discussão aspectos habitualmente desconsiderados pela doutrina e jurisprudência, como a relevância do lapso de “não trabalho” para a realização da dignidade da pessoa humana. O ser que produz compreendido como sujeito de direito, para além do fazer por conta alheia.

A ideia sobre um direito à desconexão não é nova, sendo abordada por autores trabalhistas sob diversos aspectos. Contudo, tal produção jamais alcançou o rigor metológico e a profundidade da obra de Goldschmidt e Graminho. De modo magistral, em redação elegante e fluída, superam o simples dissertar. Atrelam o tema que dá título ao livro à Teoria dos Direitos Fundamentais e às novas tecnologias da informação e comunicação, amparados em renomada doutrina.

Tais atributos se mostram um “colorido” do texto pelos próprios autores, segundo relato em conversa com ambos, pois “além de averiguar a desconexão como direito no direito comparado, considera a desconexão um direito e uma garantia fundamental do trabalhador”. Destacam, ainda, se tratar de “fruto de pesquisa no âmbito do mestrado acadêmico em Direito na Unesc, na linha de Direitos Fundamentais Trabalhistas”.

Além disso, o trabalho conta com a experiência acumulada no exercício da Magistratura, pelo autor, e na Advocacia, pela autora, tornando ainda mais amadurecidas as reflexões apresentadas. Como reconhecido no prefácio, com propriedade, “aspectos de pronunciada relevância são paulatinamente destacados, devassados e dialogados com temáticas adjuntas, permitindo uma compreensão mais extensa e profunda acerca da desconexão laboral e de suas manifestações, tanto no mundo do ser como no do dever ser”.

Quer pelo avanço exponencial do papel da tecnologia e da conectividade sobre o trabalho nas primeiras décadas do século XXI, quer pela importância de não esquecermos da abrangência da condição humana, vinculada ao trabalho, mas com ele não se confundindo, é que “Desconexão: um Direito Fundamental do trabalhador” alcança papel de destaque no meio juslaboral. Mais do que recomendável, imprescindível.

1 Para maiores informações, ver site da editora, disponível em <https://lumenjuris.com.br/direitos-humanos/desconexao-um-direito-fundamental-do-trabalhador-2020-2573/p> . Acesso em: 20 ago. 2020.

2 Sumário

1. Introdução

2. A Teoria dos Direitos Fundamentais no Âmbito das Relações de Trabalho

2.1 O direito fundamental ao trabalho digno

2.2 A teoria dos direitos fundamentais: uma análise acerca dos direitos fundamentais dos trabalhadores

2.3 A eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho

3. As Novas Tecnologias da Informação e Comunicação e a sua Influência nas Relações de Trabalho

3.1 Um novo mundo do trabalho: as repercussões das novas tecnologias da informação e comunicação nas relações laborais

3.2 As novas tecnologias da informação e comunicação e seu reflexo no tempo de trabalho e de não trabalho

3.3. A excessiva conexão do trabalhador e as implicações dessa realidade aos direitos fundamentais do trabalhador

4. O Direito à Desconexão como um Direito e uma Garantia Fundamental do Trabalhador

4.1. O direito de desconexão do trabalhador no direito comparado

4.2. O direito à desconexão como um direito fundamental do trabalhador

4.3. O direito à desconexão como um instrumento de proteção e garantia dos direitos fundamentais do trabalhador

Considerações Finais

Referências

CONSTITUIÇÃO EM ESSÊNCIA E FORÇA: REFLEXÕES SOBRE RESPOSTAS ÓTIMAS PELO DIREITO

Oscar Krost

Textos clássicos não alcançam tal status apenas pela passagem do tempo ou pelo renome de seus autores, embora tais fatores possam contribuir em alguma medida. Uma obra atinge um nível excepcional quando se destaca em comparação a outras, semelhantes, sem que a passagem do tempo ou a mudança do contexto em que produzida afetem seu diferencial. São atemporais, embora a cada leitura, devam ser contextualizados alguns fatores essenciais, como tempo e espaço.

Dito isto, recorro a dois exemplos do Direito Constitucional alemão, frutos de exposições orais. Embora “distanciados” entre si por quase um século, ambos se mostram dotados de potencial para contribuir ao enfrentamento dos desafios postos ao mundo contemporâneo, especialmente ao Brasil. São eles: “A essência da Constituição” (Über die verfassung, que em tradução literal significa “Sobre a Constituição”, 1863), de Ferndinand Lassalle, e “A força normativa da Constitição” (Die normative kraft der verfassung, 1959), de Konrad Hesse.

Lassalle (1825-1864) foi Advogado e Sindicalista, um dos precursores da social-democracia germânica, com contribuições no campo da filosofia. Não se notabilizou como intectual ou jurista erudito, sendo contemporâneo de Karl Marx, o que talvez explique tamanho rigor no dimensionamento de seu legado.1 Viveu em um país em processo de unificação, tardio em relação aos vizinhos próximos, com elevados níveis de exploração da classe trabalhadora, em uma economia Liberal em que germinavam as sementes da I Guerra Mundial. Hesse (1919-2005) foi um dos maiores nomes do constitucionalismo moderno, Professor Catedrático de Direito Público na Universidade de Freiburgo (1956-1987), Magistrado do Tribunal Administrativo de Baden-Wüttemberg (1961-1975) e do Tribunal Constitucional Federal alemão (1975-1987).2Foi contemporâneo de uma Alemanha marcada por instabilidade política e econômica, protagonista principal de duas Guerras Mundiais, cuja capital, Berlim, foi literalmente dividida por um muro físico por quase 30 anos (1961-1989). Neste período, o Estado inicia um afastamento do modelo Liberal, aproximando-se de uma ideia de Bem-Estar Social. A Constituição de Weimar (1919) foi ao lado da Carta Mexicana (1917) a primeira a elevar os Direitos Sociais ao nível constitucional.

Juristas, alemães, frutos de seus respectivos séculos e realidades, mas cujas ideias se entrelaçam e, até mesmo, se complementam, em um embate dialético. Para Lassalle, a essência da Constituição e de todas as regras dos sistemas normativos decorrem de uma “força ativa” também chamada “fatores reais de poder”. Por eles, entende o somatório dos vetores produzidos, por exemplo, pela ação da monarquia, aristrocracia, burguesia, banqueiros e classe operária. Uma vez escritos, passariam a ”verdadeiro direito – instituições jurídicas”, de modo que aquele que “atentar contra eles, atenta contra a lei, e por conseguinte é punido”.3Corresponderiam àquilo que entendemos por fontes materiais do Direito.

Hesse, por sua vez, tece críticas a Lassalle, para quem “questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas”.4A Constituição não passaria de um pedaço de papel, cuja “capacidade de regular e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real”5 (fatores reais de poder). À tamanha descrença, Hesse opõe a ideia de haver uma dualidade entre a Constituição real (fatores reais de poder) e a Constituição jurídica (texto), as quais se condicionam mutuamente, sem a configuração de dependência. Cada face da Lei Maior, por assim dizer, deve ter “voz” e “vez”, como o “ser” e o “dever ser”. Imagem e reflexo, cara a cara diante do espelho, do modo com que se relacionam as fontes formais e materiais do Direito.

As reflexões sobre a Constituição feitas por um Advogado militante no século XIX e por um Juiz Professor no século XX, em um país como a Alemanha, em fases diversas de sua história, podem agregar muito à tomada de decisões no Brasil, em pleno século XXI. Lembremos que a Carta Política vigente é fruto da retomada do regime democrático, após 21 anos. Consagra expectativas dos mais variados grupos, primando pela intervenção do Estado no domínio econômico e pela tutela da liberdade, igualdade e fraternidade, bem como pelo reconhecimento de Direitos Fundamentais de Primeira, Segunda e Terceira dimensão. Assim, podemos apontar como pontos de partida, após contextualizar as falas de Lassalle, Hesse e da Lei Maior brasileira:

  1. A centralidade da Constituição na estruturação social: enquanto projeto de Estado, não apenas de governo, a Constituição, produzida de modo plural e democrático, como ocorrido pelo advento da Assembleia Nacional Constituinte de 1986, apresenta planos não apenas jurídicos, mas políticos, econômicos e culturais, envolvendo questões de cidadania e nacionalidade. Serve de norte ao agir público e privado, como “fiel da balança” às esferas individual, coletiva e transindividual.
  2. As limitações e possibilidades do Direito: por não abranger toda a realidade, focando em aspectos essenciais e de maior relevância, o Direito, assim entendido não apenas o conjunto de regras, mas toda a estrutura jurídica e judicial, especialmente Princípios, Poder Público, Advocacia, Ministério Público e demais atores, prescreve condutas, disciplina relações e propõe mudanças. Porém, tal qual ocorre com a política, escolhas jurídicas, sozinhas, não moldam, por completo, a realidade.
  3. A busca por harmonia entre o “ser” e o “dever ser”: fontes formais e materiais raramente encontram correspondência quando comparados os respectivos planos, cabendo à sociedade civil e às instituições mediar ruídos causados pela dissonância entre discurso e ação. Pluralidade e democracia fazem parte do núcleo da Constituição, prevalecendo a vontade da maioria sobre a das minorias, sempre respeitando-as naquilo que as caracteriza.

A Constituição é a projeção dos fatores reais de poder, dotada, também, de uma força normativa. Não há dúvidas. Ou, pelo menos, não deveria haver. O que difere o texto constitucional do contido nas demais leis? A função principal de elemento de validação de todo o ordenamento jurídico, síntese dos anseios comuns, nos âmbitos social, político, econômico e jurídico. Na Norma Ápice estão os projetos e valores passados, presentes e futuros do Estado, formando um mapa útil em qualquer momento, seja de normalidade ou de exceção.

É preciso, conforme as palavras de Hesse, se fazerem presentes na consciência geral – especialmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional – “não só vontade de poder (Wille zur Macht), mas também vontade de Constituição (Wille zur Verfassung),6para que se converta em força ativa. Inegável o papel do Supremo Tribunal Federal, na estrutura judicial brasileira, de guardião do texto constitucional. Mas não há como deixar de reconhecer o dever de todas e todos de tornar realidade as promessas de 1988, caso a caso, interpretação por interpretação, sem trégua.

Em termos práticos, podemos entender como opções centrais do Constituinte Orginário brasileiro, mesmo após 107 Emendas ao texto:7

  • FORTALECER o Estado Democrático de Direito como meio de assegurar direitos individuais e sociais, além da liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça como valores supremos, seus fins (preâmbulo),
  • REAFIRMAR o compromisso com a construção e manutenção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo),
  • PRIMAR pela harmonia social e pela solução pacífica de controvérsias internas e externas (preâmbulo),
  • EFETIVAR, como valores fundamentais, a soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (art. 1o),
  • GUARDAR a harmonia e a independência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 2o),
  • GARANTIR a igualdade de todas e todos, juntamente com a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, esta atendendo à sua função social (art. 5º , caput, e inciso XXIII),
  • IMPEDIR o retrocesso social das condições de trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput),
  • IMPLANTAR uma ordem econômica pautada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, meio, de modo a garantir a qualquer pessoa uma existência digna, fim (art. 170, caput) e
  • ESTRUTURAR a ordem econômica sobre os Princípios da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor/meio ambiente, redução das desigualdades, busca do pleno emprego e tratamento diferenciado a empresas de pequeno porte brasileiras (art. 170).

Tantos exemplos tornam desnecessárias considerações outras sobre o papel e a relevância do Direito do Trabalho na concretização das promessas do Estado Constituicional e Democrático de Direito brasileiro.8 Tal observação, de evidente simplicidade, diz respeito à adoção de medidas e políticas em geral, inclusive e principalmente para enfrentamento de momentos de crise, como o atual.

Afinal, sabemos que inexiste resposta única em matéria de Direito. Há, contudo, soluções mais adequadas, assim entendidas as de maior aderência ao conteúdo constitucional, não apenas ao texto. Estas são decisões ótimas, a serem almejadas por coerência à ideia de sistema normativo ou, ainda, por consciência histórica. Assim se apresentou nos séculos XIX e XX, na Alemanha, assim creio seguir se dando em pleno século XXI, no Brasil.

1 BASTOS, Aurélio Wander. Prefácio de LASSALLE, Ferndinand. A essência da Constituição. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1998, p. 07.

2 Informações disponíveis em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Konrad_Hesse>. Acesso em: 10 ago. 2020.

3 LASSALLE, Ferndinand. A essência da Constituição. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1998, p. 32.

4 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 09.

5 Ob. cit. p. 09.

6 Ob. cit. p. 19.

7 A mais recente Emenda, no 107, de 02.07.2020, adia as eleições municipais de outubro e os prazos eleitorais em virtude da pandemia do Covid-19. Texto na íntegra disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc107.htm>. Acesso em: 10 ago. 2020.

8 Sobre o tema, essencial a leitura de SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O Direito do Trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.

“DIANTE DA LEI” DE KAFKA E AS AUDIÊNCIAS POR VIDEOCONFERÊNCIA NA JUSTIÇA DO TRABALHO

Oscar Krost

“O processo” (1914) é considerado ao lado de “A metamorfose” (1912) o livro mais importante de Franz Kafka e um dos maiores romances do século XX.1O enredo é singelo: Josef K., em seu 30o aniversário, se depara com a condição de réu em uma demanda aparentemente criminal sobre a qual nada sabe. Pouco lhe é esclarecido e a trama se desenvolve ao longo de 10 capítulos sem definições.

A genialidade do texto é maior do que se pode imaginar antes de lê-lo. Primeiro, pela ausência de certeza sobre a correta cronologia dos capítulos, ordenados por Max Brod, amigo e testamenteiro de Kafka, a partir de ilações próprias. Segundo, por estar inacabado, com passagens incompletas, as quais não integraram a versão final.2 Terceiro, por trazer no capítulo 9, intitulado “Na Catedral”, a parábola “Diante da lei”, narrada pelo sacerdote à K. e cujo significado transcende os limites de “O processo”, alcançando autonomia do restante do texto.

Diante da lei está um porteiro, ao qual um camponês se dirige, pedindo para ”entrar”. Obtém em resposta “agora não”. O homem questiona se poderá fazê-lo mais tarde, ouvindo “é possível, mas agora não”.3 A porta segue aberta, despertando mais curiosidade do homem do campo. Ao perceber isto, o porteiro ri e afirma: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro.4

O camponês não imaginava tamanha dificuldade. Acreditava que a lei deveria ser acessível a todos, a qualquer hora. Recebe, então, um pequeno banco, no qual senta enquanto aguarda. Insiste, cansando o porteiro, que em retribuição o submete a diversos interrogatórios, concluídos com a afirmação de ainda não ser possível deixá-lo entrar.

O homem propõe um suborno e entrega os pertences que levou na viagem. A oferta é aceita, tendo por retribuição a explicação de ser apenas para que o proponente não pensasse que deixou de fazer algo para obter seu intento. Os anos se passam e o camponês segue observando o porteiro, esquecendo-se da existência de outros, guardando as portas seguintes. Sua visão enfraquece, não mais diferenciando o dia da noite. Mesmo assim, em meio ao breu, reconhece um brilho vindo da porta da lei. Quase sem tempo, prestes a morrer, chama o guardião, que se aproxima, e pergunta a ele: “Todos aspiram à lei? (…) Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?”. A resposta vem aos gritos, pois além de quase cego, o camponês estava praticamente surdo: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.5

No momento atual, diante não apenas de uma porta, mas de milhares de “portas trabalhistas”, ao lado de Kafka e de Josef K., surge a dúvida: haveria um direito, inclusive líquido e certo,6 ou um dever do camponês realizar audiências por videoconferência?

A reflexão sobre o tema exige a ponderação de 3 Direitos Fundamentais em jogo: o acesso à Justiça, a ampla defesa e a razoável duração do processo (art. 5o, incisos XXXV, LV, LXXIV e LXXVIII, da Constituição).

Quando ajuizada a maior parte das demandas trabalhistas em curso, tanto as regras, quanto os costumes, indicavam que as audiências seriam presenciais, ressalvadas as oitivas de testemunhas por Cartas Precatórias Inquiritórias. A mudança de panorama, acaso previamente conhecida, poderia inibir ou estimular o ato de litigar e a avaliação de riscos. Não há como saber. Fato é que a vida se mostra repleta de imprevistos e ninguém poderia antever o estado de calamidade pública, de pandemia e de isolamento social que nos acompanha há meses e suas repercussões processuais.

O acesso à Justiça e a ampla defesa não podem ser assegurados apenas de modo formal, pela ausência de interrupção nos atendimentos, na tramitação processual e na realização de audiências. Precisam ser garantidos pelo viés material, a fim de que o jurisdicionado, independente do resultado da demanda e de eventual demora justificável, possa se sentir atendido pelo Estado-Juiz. A razoável duração do processo, como o termo “razoável” denota, deve atender a elementos racionais, portanto lógicos e equânimes, condizentes com o contexto histórico e social do Brasil de hoje. Quem bate às portas do Judiciário ou por ele é chamado a responder às batidas de outrem pode dizer se possui condições de participar de uma audiência por videoconferência, variando conforme a complexidade do ato, de uma tentativa conciliatória até uma instrução com oitiva de partes e de testemunhas, caso a caso. Trata-se de uma aplicação, analógica, do Princípio da Aptidão para a Prova que norteia o Processo do Trabalho.7

As dificuldades práticas não são poucas. Para além da mudança da forma da realização da solenidade, estamos diante de uma transformação cultural. Problemas como oscilação de banda larga, equipamentos com recursos tecnológicos insuficientes, inibição para depor perante câmeras e, principalmente, a falta de um lapso de adaptação são questões a ser sopesadas. Ademais, isolamento social vai muito além de realizar sessões de modo remoto, externas aos foros. Significa, inclusive, ausência de agrupamento de pessoas, sejam procuradores, partes ou testemunhas. Segundo minha experiência na região de Blumenau/SC, jurisdição que abrange o Município-sede e o Município de Gaspar, consagrou-se a prática dos sujeitos referidos se reunirem nos escritórios de Advocacia ou em empresas, por haver, em tese, melhores condições tecnológicas para a videconferência, o que não inibe, mas desloca o espaço físico do risco de contágio.

Lembremos de duas situações recentes, geradas pela reforma trabalhista promovida pela Lei no 13.467/17, ao exigir a atribuição de valor aos pedidos pelos autores, sob pena de indeferimento da petição inicial (art 840 da CLT), e ao reconhecer ao patrono da parte contrária o direito ao recebimento de honorários de sucumbência em relação a pleitos rejeitados (art. 791-A da CLT). Poderiam tais inovações ser aplicáveis a demandas ajuizadas antes de seu advento, trazendo situação processual nova aos litigantes? O que estas celeumas nos legaram em termos de experiência?

Parece que o camponês de Kafka não entendeu, diante da lei, que aquela porta era sua e de mais ninguém. Somente ele poderia atravessá-la. Optou por não contrariar o que aparentava determinar a autoridade instituída. Afinal, ele era apenas um homem do campo, em 1915, em pleno Império Austro-Húngaro. E as ações trabalhistas em tramitação no Brasil, em 2020, as garantias constitucionais processuais e as audiências remotas, pertencem a alguém? como direito ou dever?

1 CARONE, Modesto. Posfácio de KAFKA, Franz. O processo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 257.

2 Ob. cit., p. 258.

3 Idem, p. 214-215.

4 Ibidem, p. 214.

5 “Diante da lei” está disponível em diversos sites, a exemplo de <file:///C:/Users/2947/Downloads/F%20Kafka%20-%20Diante%20da%20lei%20%20A%20ponte%20-%20Contos.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.

6 Existe o entendimento no TRT12 de ser cabível impetrar Mandado de Segurança contra ato de Juízas e Juízes de primeiro grau de indeferimento de pedido de adiamento da realização de audiência por vídeoconferência. Neste sentido, a decisão monocrática proferida nos autos do MSCiv no 0001553-29.2020.5.12-0000, de lavra do Desembargador Grácio Ricardo Barboza Petrone, reconhecendo que “muito embora, a rigor, se possa defender a existência de recurso próprio com efeito retardado, certo é que a proximidade da audiência justifica a análise do pleito em sedemandamental, inclusive como forma de prestigiar os princípios da celeridade e instrumentalidade,sensíveis que são ao processo do trabalho.” (Decisão proferida em 12.07.2020, disponível em <https://pje.trt12.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/00015532920205120000>. Acesso em: 31 jul. 2020).

7 O Conselho Nacional de Justiça, em decisão monocrática de mérito de lavra da Conselheira Maria Cristina Simões Amorim Ziouva, entende que “os prazos para a prática de atos processuais previstos no artigo 3º, parágrafo 3º da Resolução 314/CNJ, serão suspensos mediante simples petição do interessado ao magistrado, sem que o juiz possa, ainda que motivadamente, indeferir o pedido, o que inclui os atos que exijam prévia coleta de elementos de prova juntamente às partes e aos assistidos, inclusive quando praticados em audiência” (Decisão proferida em 05.06.2020, diponível em <https://covid19.oabsp.org.br/wp-content/uploads/2020/06/Decisa%CC%83o-CNJ-TRT-15.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020, grifei).

EDUARDO GALEANO: RESGATANDO A IMPORTÂNCIA DO FATO E DO VALOR PARA O DIREITO DO TRABALHO

Oscar Krost

O Direito do Trabalho é um ramo do conhecimento jurídico atrelado, desde sua gênese, a Principios específicos, que não apenas o caracterizam, como justificam. Algo como sua razão de ser ou lugar no mundo. Por isto, inviável estudá-lo sem conhecer o jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez (1919-2008), autor do clássico “Princípios de Direito do Trabalho” (1975).

Plá Rodriguez identificou e abordou com precisão os mais importantes Princípios juslaborais, discorrendo sobre sua relevância e aplicabilidade, aspectos comumente menosprezados em comparação às análises relativas às regras, ainda que ambas integrem o gênero norma.

Como nos legou outro grande jurista, o brasileiro Miguel Reale, de acordo com a Teoria Tridimensional do Direito1 este vai além da norma, sendo integrado, ainda, por outros dois elementos: fato e valor. Aqui está o motivo para refletir sobre o Direito do Trabalho não pelo olhar de Plá Rodriguez, mas de Galeano. Mesmo conhecendo, em tese, as lições de “Princípios de Direito do Trabalho”, tal fato, por si só, parece não bastar a filtrar máximas difundidas há algum tempo, pautadas em frágeis premissas, repetidas à exaustão, tais como: “o trabalhador deve decidir sozinho o que é melhor para ele, não podendo ser tratado como criança pela lei ou pela Justiça do Trabalho”, “no Brasil, existem direitos demais para os empregados, retirando a competitividade das empresas” ou, ainda, “menos MPT, mais empregos”. Liberdade de expressão é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, não podendo ser tangenciada. Contudo, as falas em questão, para além de opiniões, não fazem justiça ao que representa em termos históricos, filosóficos e civilizatórios o complexo normativo trabalhista. Talvez seja interessante repensá-las e reavaliá-las a partir de conteúdos menos normativos e mais fáticos e valorativos. Ouçamos a voz de outro mestre uruguaio, engrossando um coro com aquele já escutado.

Eduardo Hughes Galeano (1940 – 2015) foi jornalista e escritor, nascido em Montevidéu, autor de mais de 40 livros, traduzidos para dezenas de idiomas. É mundialmente conhecido pelo clássico “As veias abertas da América Latina” (1971), obra em que examinou a exploração do continente desde o período colonial. Seus textos podem ser classificados como ficção, jornalismo, política ou história, embora mesclem, nas mais variadas proporções e medidas, elementos de cada gênero. Galeano também é considerado um contador de causos,2 figura intermediária entre o trovador e o mentiroso, além de um crítico do americanismo e do capitalismo.3

O que Galeano pode dizer sobre fatos e valores, transcorridos cinco anos de sua morte, acrescentando algo ao Direito do Trabalho e ao mundo em plena pandemia de Covid-19?

Pouca coisa, mas de muita importância.

A centralidade de narrar o óbvio, buscando preservar intacta a memória, pois “para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos.”4

A compreensão de que o entendimento das coisas não se trasmite pela genética, sendo resultado de um compromisso que jamais tem fim, tendo em vista que “segundo dizem, o homem é o lobo do homem. Mas nenhum lobo mata outro lobo. Eles não se dedicam, como nós, ao extermínio mútuo.”5

O papel da metáfora, na simplificação de questões complexas, em uma prática de alteridade, ao observar que “estalactites descem do teto. Estalagmites crescem do chão. (…) algumas vão demorar um milhão de anos até se tocarem. Não têm pressa.”6

A importância da indignação diante da injustiça, a exemplo de quando, “há cento e trinta anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela.7

O compromisso de jamais relativizar o que não pode ser relativizado, sem chance alguma ao “mas”, ao lembrar que “o medo de fazer nos reduz à impotência (…).mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória“.8

Assim, mesmo não possuindo formação jurídica, Eduardo Galeano discorre com autoridade sobre histórias de vida e relações de exploração, lendo as pessoas em si, no espaço e no tempo, não deixando dúvidas de que entre forças diferentes e desiguais, ausente interferências externas, equalizando esta discrepância, crueldade e miséria são mera questão de tempo.

O Direito do Trabalho não existe apenas para proteger o trabalhador. Serve, também e fundamentalmente, para preservar o sistema capitalista no qual se emprega o sujeito subordinado. Ganhos do trabalho retornam ao mercado pelo consumo de produtos por quem trabalha. Mais salário, mais poder de compra, o que, por sua vez, gera mais lucro e mais produção e, também, empregos. Não entender que a exploração desmedida gera ganhos imediatos tão somente a quem a promove signfica ignorar o sentido do termo “capital”, o mesmo ocorrendo com as expressões função social do contrato e da propridade. Princípio da Proteção é um eufemismo mal compreendido, pois suas projeções não se limitam a tutelar um dos pólos da relação trabalhista. Protege ambos, inclusive o empregador que empreende, ao assegurar patamares concorrenciais mínimos.

Galeano nunca poupou críticas a práticas colonialistas e imperialistas, predatórias em termos sociais, econômicos e ambientais, prejudicando parcelas hipossuficientes das populações. Equivocadamente, há quem o rotule de opositor de alguns países, não das ações por eles praticadas. Por isto, premente ler e reler a obra de quem, como poucos, discorreu sobre fatos e valores, a fim de pautarmos nossas falas e ações em constatações, conclusões e provas, não nos contentando com versões ou indícios, cabendo, acerca destes, transcrever o seguinte trecho:

Indícios

Não se sabe se aconteceu há séculos, há pouco, ou nunca.

Na hora de ir para o trabalho, um lenhador descobriu que o machado tinha sumido. Observou o vizinho e comprovou que tinha o aspecto típico de um ladrão de machados: o olhar, os gestos, a maneira de falar…

Alguns dias depois, o lenhador achou o machado, que estava perdido num canto qualquer.

E quanto tornou a observar seu vizinho, comprovou que não parecia nem um pouco um ladrão de machados, nem no olhar, nem nos gestos, nem na maneira de falar”.9

Pensar Galeano é essencial à compreensão e ao resgate do papel do fato e do valor ao Direito do Trabalho. Para a norma, sigamos com Plá Rodriguez.

1 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. Editora Saraiva, São Paulo, 2003.

2 Pecha, aliás, confirmada pela editora L&PM, responsável pela publicação da maior parte do acervo de Galeano, no Brasil, conforme anunciado em seu site: <https://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=527090&ID=730006>. Acesso em: 23 jul. 2020.

3 Informações obtidas em <https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Galeano>. Acesso em: 23 jul. 2020.

4 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Galeno de Freitas. 8a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 14.

5 Tradução livre de GALEANO, Eduardo. El cazador de historias. 1a ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores Argentina, 2016, p. 140.

6 GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Tradução Eric Nepomuceno. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 21.

7 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 02.

8 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução Eric Nepomuceno. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 110.

9 GALEANO, Eduardo. Bocas do tempo. Tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p. 236.

PARA ALÉM DO SER E DO DEVER SER: CONTRIBUIÇÕES DE UMA LEITURA POÉTICA-JURÍDICA* AO DIREITO

Oscar Krost

Recursos linguísticos, sentido figurado, metáfora, hipérbole, eufemismo, pleonasmo. Meios diferentes de demonstrar uma mesma intenção, passando das linhas para as entrelinhas.

Pelo verso do poema podemos nos aproximar daquilo que o olhar alheio alcança, melhor dizendo, o olhar do outro, que por vezes também se faz alheio. Semântica. Praticamos, em doses nem sempre eficazes, a tal empatia. Assemelhando-se a uma apropriação nada indébita de lentes, entendimentos e dilemas. Um exercício de campo em matéria de alteridade.

Podemos encontrar novos sentidos de coisas, lugares e seres. “Unívoco” se transforma, de fato e de direito, em conceito, coisa de dicionário, muito distante do mundo real. Alcançamos múltiplas interpretações, não só no plano das ideias. De substantivo, polissemia é alçada a Princípio Geral.

De poucas palavras brotam laudas de reflexões, horas de debates, um oceano de incertezas. Um pequeno bater de asas causador de imensos furacões: um efeito borboleta jurídico-poético. Ou seria poético-jurídico? Ao contrário da matemática, a ordem dos fatores para o Direito pode causar bem mais do que a simples alteração do produto. Basta acompanhar como se forma a jurisprudência e por onde se enveredam as discussões sobre a doutrina dos precedentes no Brasil.

Nesta realidade paralela, do “mundo do Direito”, expressão consagrada por Pontes de Miranda, que além de tratadista foi poeta,1 como acusar a testemunha Manoel de faltar com a verdade ao responder que “para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições2 ?

Ou, então, condenar por litigância de má-fé a autora Adélia por explicar que “uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo”,3 tentando induzir o Juízo em erro?

O réu Mário estaria procrastinando o deslinde do feito, ao alegar em sua defesa que “o comum dos homens só se interessa pela sua própria pessoa, mas o poeta só se interessa pelo próprio eu4 ?

Postular, contestar, provar, decidir são atos comuns para quem maneja o direito em caráter profissional. Fazer justiça é um passo a mais. Não se compara com escrever poesia, mas lê-la ajuda e muito. Auxilia a manter as raízes fincadas no duro chão da realidade e a cuidar dos aspectos humanos do ofício, seja ele qual for.

Critérios literal, histórico, finalístico, casuístico ou o nome que for dado pela dogmática jurídica rararamente servem para compreender as nuances que tornam única uma “pretensão resistida”, vital e sem precedentes, ao menos para quem ainda enxerga a liturgia com olhos de admiração e espanto.

Deixemo-nos “contaminar” pelo mundano, para além da letra fria da lei. As normas jurídicas se constroem pela interpretação, daí brotando, ao serem despertadas de um estado de potência, conforme a bela figura utilizada pelo Ministro Eros Grau, outro jurista e poeta.5 Para ele, este processo artesanal não é possível apenas com elementos do texto (dever ser), exigindo dados da realidade (ser), o que só a poesia pode ensinar, pois, para além da linguagem e dos signos, Direito é olhar.

O saudoso Desembargador-Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 12a Região, Marcus Pina Mugnaini, graduado em Direito, Engenharia e Letras, além de músico e, portanto, também poeta, há alguns anos, em uma cerimônia de posse de Juízas/Juízes do Trabalho, em Florianópolis/SC, listou os requisitos a seu ver necessários para o exercício a contento da magistratura: bastava ser boa filha/bom filho, esposa/marido, mãe/pai, amiga (o), irmã (ão), vizinha (o), cidadã/ão…em rol aparentemente não taxativo. Ao final, concluiu com a seguinte sentença, não judicial, porém judiciosa: “e se souber um pouco de Direito ajuda.”

Pode ter também dito que ler poesia era importante, mas sobre esta parte não tenho certeza.

* o adjetivo composto “poético-jurídico” se trata de um neologismo criado pela junção de dois adjetivos. Pela regra gramatical da língua portuguesa, quando ambos os adjetivos se referirem a um substantivo do gênero feminino devem concordar com ele, justificando a expressão “leitura poética-jurídica”. Poder-se-ía substituir por “leitura poético-jurídica”, bem como por “leitura poética e jurídica”, o que não acontecerá, tanto por licença poética, quanto por não afrontar disposição gramatical.

1 Jurista, poeta e imortal, ocupante da cadeira no 07 da Academia Brasileira de Letras, conforme disponível em <https://www.academia.org.br/academicos/pontes-de-miranda/textos-escolhidos>. Acesso em: 14 jul. 2020.

2 BARROS, Manoel de. O livro sobre o nada. In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 346.

3 PRADO, Adélia. Impressionista. In: Reunião de poesia. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013, p. 34.

4 QUINTANA, Mário. Diferença. In: Caderno H. Porto Alegre: Globo, 1983, p. 181.

5 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. VII. A respeito da experiência poética de Grau, ver <http://www.jornaldepoesia.jor.br/erosgrau.html>. Acesso em: 14 jul. 2020.

“PRECEDENTES NO PROCESSO DO TRABALHO: TEORIA GERAL E ASPECTOS CONTROVERTIDOS” (Resenha)

Oscar Krost

Precedentes no Processo do Trabalho: Teoria Geral e Aspectos Controvertidos” é obra coletiva coordenada pela Juíza Fernanda Antunes Marques Junqueira (TRT14), juntamente com os Juízes César Zucatti Pritsch (TRT4), Flávio da Costa Higa (TRT24) e Ney Maranhão (TRT8), publicada pela Editora Revista dos Tribunais,1 em 2020, com prefácio do Professor Estêvão Mallet (USP).

Ao longo de quase 800 páginas e de 35 textos, renomados juristas, brasileiros e estrangeiros, examinam detidamente o universo dos precedentes judiciais, abordando seus impactos sobre o Processo do Trabalho, em decorrência das alterações normativas sobre a matéria. Partem de um amplo espectro de análise, alcançando, inclusive, experiências do Direito Comparado.

A excelência dos autores e de cada um dos capítulos, organizados em 3 eixos temáticos (teoria geral, direito comparado e processo do trabalho/aspectos controvertidos), por si só, justificaria seu reconhecimento como uma das grandes produções jurídicas do ano no país e, até a presente data, a mais completa acerca do tema.

Mas a coletânea vai além: aborda de modo profundo questões de alta complexidade, em linguagem técnica, porém acessível tanto a operadores do Direito versados no tema, quanto a iniciantes. Tem como mérito, ainda, a preservação de uma linha comum de raciocínio, valorizada pela riqueza de pontuais divergências entre os autores, em uma riqueza dialética rara em publicações jurídicas contemporâneas.

Questões espinhosas, como a importância dos fatos na formação dos precedentes, a relação entre efeito vinculante e coisa julgada e os cuidados hermenêuticos para evitar o Juiz “boca dos precedentes”, são enfrentadas com maestria, dando conta de que a assimilação da prática dos precedentes pelo sistema processual vai além da utilização de termos como ratio decidendi, obiter dictum, distinguishing, overruling e overriding.


Em tempos de pandemia e de isolamento social, marcados pelo excesso de informações instantâneas, de um lado, e pela escassez de reflexões amadurecidas, de outro, o esforço coletivo capitaneado por Pritsch, Junqueira, Higa e Maranhão se apresenta essencial a todas e a todos que se interessam pelos rumos do Processo do Trabalho no Brasil.

1 Para mais informações, ver site da Editora, disponível em <https://www.livrariart.com.br/precedente-no-processo-do-trabalho/p?uam=true&mobile=4>. Acesso em: 09 jul. 2020.

LIÇÕES DO “ODRADEK” DE KAFKA A UM DIREITO DO TRABALHO EM PANDEMIA

Oscar Krost

A arte existe porque a vida já não basta”.

Ferreira Gullar

Franz Kafka (1883-1924) foi um escritor judeu nascido em Praga, à época território do império austro-húngaro, atual República Tcheca. Produziu sua obra na língua alemã e, embora seja um dos maiores nomes da literatura universal, obteve reconhecimento apenas após a II Guerra Mundial, quando aprofundados estudos sobre sua obra.1 Frequentou a Universidade Karl-Ferndinand, em Praga (1901-1906), tendo concluído o doutoramento em Direito. Em 1902, passou a se corresponder com Oskar Pollak, grande influência em suas criações, e conheceu Max Brod, contemporâneo em Karl-Ferndinand e que viria a se tornar seu testamenteiro, responsável pela publicação da maior parte de seus escritos, em caráter póstumo.2

A partir de 1904, Kafka passou a conviver com diversas personalidades marcantes, como o filósofo Felix Weltsch, os escritores Franz Werfel, Otto Pick e Martins Buber, além do médico e dramaturgo Ernst Weiss e do editor Willy Haas.

Buscou uma atividade profissional que lhe garantisse a independência financeira e lhe permitisse a maior dedicação possível à literatura. Empregou-se em duas companhias securitárias (Assicurazione Generali e Companhia semi-oficial de seguros operíarios contra acidentes), sendo afastado em decorrência da tuberculose, em 1917, e aposentado precocemente, em 1922. Os problemas de saúde se agravaram, levando-o à internação em um sanatório, em Viena, onde viria a falecer, no dia 03 de junho de 1924.

As experiências de uma infância marcada pela timidez, uma educação rígida e conflitos com a figura paterna, descrita como autoritária pelo próprio Kafka, acabaram levadas para a fase adulta, estruturando um jovem mentalmente criativo, mas fisicamente frágil. A adolescência foi marcada por rebeldia e isolamento, levando-o, inclusive, a se declarar ateu e anarquista. Sua visão realista, crítica, crua e impactante do mundo apareceu em toda sua obra, contemporânea de revoluções e guerras, além dos primeiros movimentos totalitaristas na Europa. A força do poder do Estado e a fragilidade humana foram abordadas de modo recorrente em seus trabalhos.3

A consagração de um estilo peculiar pode ser dimensionada pela criação do neologismo “kafkiano” – também grafado Kafqueano4 ou Kafkaesco5 – assimilado a diversos idiomas para adjetivar situação ou coisa desnecessariamente complicada, irrazoável ou burocrática, podendo se referir a indivíduos ou instituições.

Para Günther Anders, “em Kafka, o inquietante não são os objetos nem as ocorrências como tais, mas o fato de que seus personagens reagem a eles descontraidamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais.”6

Entre aforismos, crônicas e romances, alguns mundialmente conhecidos, a exemplo de “A metamorfose” e “O processo”, há dezenas de textos por descobrir, dentre os quais o brevíssimo conto, de seis parágrafos, “Odradek”.7

O texto é narrado por alguém não identificável, que sequer se apresenta. Inicia com a suposta divergência a respeito da origem etimológica do termo que dá título ao texto, dos idiomas eslavo ou alemão. Sem dar chance a qualquer ilação do leitor, conclui que a “incerteza de ambas as interpretações é a melhor prova de que são falsas”, pois “além disso, nenhuma delas nos dá uma explicação da palavra”.

Sem reconhecer a existência da “criatura”, tampouco duvidar de tal fato, o narrador menciona que “ninguém perderia tempo em tais estudos se não existisse realmente um ser chamado Odradek”, o descrevendo como algo com aspecto de carretel de linha, achatado e forma de estrela. Diferir-se-ía de um carretel comum pelo fato das linhas estarem em pedaços cortados, velhos e com nós, além de apresentarem cores diversas. Da parte central, sairia uma pequena haste, da qual se ramificaria outra, formando um ângulo reto, de modo que “o conjunto pode ficar em pé como se tivesse duas pernas”.

Afirma que a descrição feita pode dar margem à ideia de “Odradek” estar quebrado e que teria possúido, quando inteiro, forma e função. No entanto, na sequência, põe em dúvida tal reflexão, por não haver marcas de emendas ou de quebras, parecendo “sem sentido, porém completo à sua maneira”.

O ser ou coisa não possui um habitat próprio, podendo ser encontrado em forros, vãos de escadas, corredores ou saguões, chegando a ficar meses sem ser avistado. Consegue se “aninhar nas casas vizinhas, mas sempre volta à nossa”. É encontrado próximo à porta de saída encostado ao balaústre da escada, despertando o desejo de, com ele, entabular-se um diálogo.

A troca acontece, sempre com frases e temas simples, por seu “diminuto tamanho”, lembrando uma criança. Perguntado como se chama e onde mora, responde: “Odradek” e “domicílio incerto”. Ri. Mas não um riso qualquer. Ri sem pulmões, qual um “sussuro de folhas secas”.

Há vezes em que não responde, seguindo seu caminho, mas não sem deixar dúvidas sobre superar o tempo de vida do narrador, a ponto de coexistir com os filhos deste e os filhos dos filhos dos filhos, sucessivamente. Ao final, em tom de desabafo, este mesmo narrador confessa: “Não faz mal à ninguem mas a idéia de que possa sobreviver-me é quase dolorosa para mim”.

Em que medida Kafka e seu “Odradek” podem contribuir para o Direito do Trabalho em pandemia?

Segundo Judith Martins Costa:

A Literatura nos torna melhores, dentre outros motivos, porque ajuda a ver e, assim procedendo, auxilia o julgamento. E auxilia o julgamento porque transporta a outras realidades – nos faz perceber o outro e os outros mundos, suscita o esclarecimento, que é ‘razão ativa’, opõe-se ao preconceito ao relativizar certezas – mesmo na irrealidade nos fazendo lembrar de nossa condição humana e ensinando-nos a pensar com a mentalidade alargada o que significa treinar nossa imaginação para visitar ‘outros lugares”.8

Assim como o narrador de “Odradek”, temos poucas certezas sobre o fenômeno com que nos vimos forçados a conviver desde os primeiros meses de 2020. Tampouco dimensionamos suas repercussões na racionalidade dos sujeitos e no tráfego das relações sociais. Algo mudará? Algo seguirá igual? Estaremos diante de um novo padrão de normalidade? Eis alguns exemplos de dúvidas recorrentes que povoam nosso imaginário em dias e noites.

Entretanto, inegável possuirmos um acúmulo de experiência enquanto humanidade, apta a franquear um discernimento mínimo na busca, seleção e interpretação dos fatos e versões sobre o Corona Vírus, a pandemia e consequentes impactos. Temos plenas condições de distinguir as notícias e dados dignos de confiança daquelas que não o são. Em um campo de incertezas, um precioso conselho deixado por “Odradek” está na aceitação de juízos de probabilidade como possibilidades a nosso dispor. Se não bastam enquanto ponto de chegada, podem servir de início ao equacionamento e à compreensão da realidade posta e que não apenas nos cerca, mas também, literal e literariamente, nos sitia.

Outra lição parece ser a superação do espanto e do choque causados pela constatação de nos deslocarmos em terreno movediço. Palavras da moda, como “resiliência”, “empatia” e “ressignificação”, demonstram uma postura hermenêutica semelhante à doutrina constitucional da “reserva do possível”. Se não podemos voltar ao tempo em que o mundo desconhecia o “Covid-19”, quando éramos felizes e sabíamos, lidemos com as possibilidades presentes. Poucas afirmações no texto são objetivas e conclusivas; a maior parte não passa de ilações e hipóteses, algumas chegando a meras opiniões. Em muito se assemelham à nossa incredulidade diante de situações do atual cotidiano, como a contaminação aos milhões, as mortes aos milhares e os atos normativos do Poder Executivo brasileiro às dezenas. Não menos instáveis se mostram as restrições oscilantes à circulação e ao agrupamento de pessoas em vias públicas e ambientes fechados, nova realidade de difícil assimilação. Pelo texto e seu contexto, faz-se viável esboçar um raciocínio lógico a contrario sensu daquele a que estamos habituados no campo juslaboral e na vida de modo geral em tempos de pandemia, deixando-se de estabelecer o que podemos e queremos diante da realidade posta, passando àquilo que não podemos e não queremos.

Tal qual o aparente carretel dotado de hastes e fios emendados, a ponto de dar a impressão de estar estragado e disforme, o Direito do Trabalho, para além da letra fria da lei, se constitui por Princípios e institutos próprios, historicamente forjados. Também é lido por muitos, em épocas de normalidade ou de exceção, como algo sem sentido, “porém completo à sua maneira”.9 Lembremos: só existem lacunas na lei, jamais no Direito, pois estas, quando verificadas, não apenas podem, como devem ser preenchidas, respeitado o marco mínimo legal e constitucional, por disposições contratuais e entendimentos da jurisprudência, lançando-se mão da analogia, da equidade e dos Princípios Gerais do Direito e do próprio Direito do Trabalho, conforme o disposto no art. 8º, caput, da CLT. 10

Para além de nossa própria geração, a relação entre capital e trabalho seguirá existindo, se fazendo contemporânea a seres e a coisas inexplicáveis, a exemplo de “Odradek”. Igualmente, tal relação produzirá tanto riquezas, quanto conflitos, os quais, sob risco de não apenas provocar o desequilíbrio do sistema capitalista, mas sua própria extinção, exigirão respostas internas deste mesmo sistema.

E como os ensinamentos nem sempre se originam nos bons exemplos, se não quisermos cair em abandono e desamparo, ao contrário do narrador anônimo de “Odradek”, podemos recorrer ao esforço coletivo, plural e includente, na construção de possibilidades presentes e futuras. Antes de mais nada, Direito é busca por consensos que viabilizem a vida em sociedade. Embora divergentes opiniões sobre estarmos todos, em meio à pandemia, no mesmo barco ou apenas no mesmo mar, tal qual a cizânia sobre a origem etimológica do termo que dá título ao conto, o que me leva a crer estarem ambas equivocadas, fato é que restrições e prejuízos serão experimentados de modo universal, cabendo ao Direito do Trabalho e à sociedade como um todo buscarem soluções minimamente equânimes. Kafka e “Odradek” nos lembram que o estranho, irrazoável e incompreensível sempre existiram e sempre existirão, cabendo a cada uma e a cada um de nós aceitar as próprias limitações, mas sem perder de vista a busca por equilíbrio entre meios e fins.

Como o próprio Kafka definiu em seu aforismo no 5: “A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado”.11

1 STOCK, Rudolf M. Apresentação. In: CARVALHAL, Tania Franco. Et al. A realidade em Kafka. Porto Alegre: Editora Movimento (em convênio com o Instituto de Letras da UFRGS), 1973. Coleção Augusto Meyer. Vol. 2, p. 10.

2 KRAHENHOFER, Victor. Aspectos bibliográficos. In: CARVALHAL, Tania Franco. Et al. A realidade em Kafka. Porto Alegre: Editora Movimento (em convênio com o Instituto de Letras da UFRGS), 1973. Coleção Augusto Meyer. Vol. 2, p. 115-8.

3 FRAZÃO, Dilsa. Biografia de Franz Kafka. Disponível em <https://www.ebiografia.com/franz_kafka/#:~:text=Franz%20Kafka%20(1883%2D1924)%20nasceu%20em%20Praga%2C%20na,revela%2Dse%20socialista%20e%20ateu.> Acesso em: 06 jul. 2020.

4 STOCK, Rudolf M. Ob. Cit. p. 10.

5 TAVLIN, Noah. O que torna uma coisa Kafkiana? Tradução Gabriel Kleiman. Diponível em <http://blog.editoracontexto.com.br/o-que-define-algo-como-kafkiano/>. Acesso em: 06 jul. 2020.

6 ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra – os autos do processo. Tradução, posfácio e notas Modesto Carone. 2a Edição. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 20.

7 KAFKA, Franz. Odradek. Disponível em <http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/cronicas/4191/odradek>. Acesso em: 06 jul. 2020.

8 MARTINS COSTA, Judith. Nota da Coordenadora: entre prestação de contas e introdução In: MARTINS COSTA, Judith. Narração e Normatividade: Ensaios sobre Direito e Literatura. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2013, p. XII-XIII

9 A respeito do tema, ver ALMEIDA, Almiro Eduardo de. KROST, Oscar. Direito do Trabalho de exceção ou exceção ao Direito do Trabalho? No prelo.

10 CLT, art 8º:

Art. 8º As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

11 KAFKA, Franz. Essencial. Seleção, introdução e tradução de Modesto Carone. Aforismos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 190.

A FORÇA DO COLETIVO

Oscar Krost

A dinâmica da vida nos ensina que cada problema (ou desafio, aos mais otimistas) exige uma solução de semelhante envergadura.

Peixes pequenos são atraídos por iscas pequenas, assim como doenças graves demandam tratamentos prolongados.

Equacionar variáveis, presentes e futuras, avaliar relações complexas de causa e efeito, bem como considerar o imponderável, exigem visão, preparo e responsabilidade. 
      

Imaginem que a questão a ser encarada diga respeito a uma pandemia, fenômeno multifacetado e causado por um agente patogênico em constante mutação. 
            

Eis a situação em que nos encontramos por conta da disseminação do Corona Vírus (Covid-19), gerando a paralisação, por questões sanitárias e de saúde pública, de significativa parcela das atividades produtivas no país e no mundo. 
           

 Após o reconhecimento do estado de calamidade pública, o Governo Federal diariamente vem adotando novas medidas – Decretos, Leis, Medidas Provisórias e Portarias – para municiar os empregadores no enfrentamento dos custos com mão de obra diante da queda do consumo, buscando evitar, ao máximo, a dispensa em massa. No momento em que escrevo, acaba de ser publicada a Medida Provisória nº 944, voltada à criação de linhas de crédito para pagamento da folha salarial. Com mais esta regra, atinge-se media próxima a uma nova medida provisória por dia nas últimas duas semanas.
          

Aqui reside a reflexão central destas despretensiosas linhas: se todos estamos no mesmo barco, ainda que em andares e cabines diferentes, e sujeitos aos inúmeros efeitos da pandemia, por que universalizar apenas os problemas, ao invés de assim também procedermos quanto à responsabilidade pela escolha das soluções?
         

Negociações individuais viabilizadas pelas novas normas trazidas pelo Poder Executivo, com destaque às Medidas Provisórias nº 927 e 936, ambas de 2020, sobre redução de jornada e de salários, suspensão contratual e ações do gênero, deixam a desejar, não no aspecto material, mas formal, o que pode ser facilmente resolvido.

Excetuadas raríssimas exceções, todos perderão em meio à crise. Então, pela lógica, devemos desfragmentar o debate e incluir a maior quantidade de sujeitos, inclusive os coletivos e de base, na busca de alternativas.
            

Negociação coletiva, participação sindical, acordos e convenções setoriais, mediação e participação ampla. Democracia e assunção de responsabilidade, eis a chave da distribuição das perdas e da adoção do protagonismo na tomada de decisões.

Não há mágica ou milagre, mas necessidade de assegurar a legitimidade de medidas austeras e extremas que serão adotadas. Garante transparência, isonomia e autonomia em cada agir, democratizando práticas. Quanto maior for o número de interessados a participar do debate, menor será o que poderá questionar, futuramente, a lisura das resoluções.
            

Como já dito, um grande desafio exige um enfrentamento de mesmo porte, o que pode ocorrer com o chamamento a uma mesa de negociações de patrões e trabalhadores, com ou sem o Estado.
            

Ao contrário do que alguns possam imaginar, tal proposta não representa novidade no campo das relações laborais. A formação tripartite da Organização Internacional do Trabalho (OIT), única agência das Nações Unidas que adota este formato, desde a criação, em 1919, pelo Tratado de Versalhes, é a tônica de uma concepção paritária na tomada de decisões, em escala global.
            

As Convenções nº 98 e 154, da própria OIT, por exemplo, incentivam a autonomia, a liberdade e a negociação coletivas, tanto do capital, quanto do trabalho, reforçando a importância da atuação conjunta e do agir dialético.

No Brasil, a Constituição assegura “a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação” (art. 10). Em diversas passagens, fomenta, ainda, a autonomia coletiva, principalmente em questões de interesse metaindividuais, inclusive a participação dos trabalhadores na gestão das empresas (art. 7º, inciso XI).

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) endossa a ação paritária de empregados e empregadores, conferindo igualdade formal de voz em órgãos colegiados, a exemplo das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPAs, art. 164) e das Comissões de Conciliação Prévia (CCPs, art. 625-A). Da mesma maneira a legislação esparsa, com destaque à lei do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), no que diz respeito à composição do órgão gestor do numerário (Lei nº 8.036/90, art. 3º).

  A própria Justiça do Trabalho sempre contou com Juízas e Juízes de carreira atuando lado ao lado de representantes “Classistas”, prática extinta pela Emenda Constitucional nº 24/99. Das Juntas de Conciliação e Julgamento, passando pelos Tribunais Regionais do Trabalho até chegar ao Tribunal Superior do Trabalho, a marca deste ramo tão importante e peculiar do Poder Judiciário sempre foi o proceder colegiado, plural e paritário.
            

Vivenciar esse momento ímpar na história da humanidade e experimentar suas consequências não são opções individuais. É essencial a participação do maior número possível de  interessados, inclusive e especialmente dos sujeitos coletivos de base, sindicatos de trabalhadores e de empresas, para que sejam aproveitadas as lições trazidas pelo aprofundamento das experiências plurais acumuladas, de forma mais transparente, equânime e legítima, de modo a superamos, juntos, a grave conjuntura atual.
            

Que “a crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”, título de uma das mais importantes obras do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, nos sirva tanto de alerta, quanto de inspiração, a fim de que se reconheça a força do coletivo.

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Texto escrito e publicado originalmente em <https://rodrigocarelli.org/2020/04/06/a-forca-do-coletivo-artigo-de-oscar-krost/>, <https://caosfilosofico.com/2020/04/07/trabalhadores-nao-sao-ouvidos-sobre-deliberacoes-laborais-durante-a-pandemia/>, <http://www.bancariosblumenau.org.br/site/noticia.php?cod=4430>, <http://sintimmmeb.com.br/noticia/1130> e <https://www.evoluindodireitodotrabalho.com/publicacoes-2>, em abril/2020. Grato pelo apoio e incentivo.

2020

Oscar Krost

O mundo parou. De uma hora para outra, a vida como conhecíamos tornou-se memória. Tudo passou a se pautar pela disseminação de um vírus. Pandemia. Isolamento. A cada dia, mostrou-se maior a premência de redimensionar o papel das coisas, dos seres e das relações. Eis o momento em que este espaço de reflexão e compartilhamento nasce, com o compromisso de difundir ideias sobre um Direito do Trabalho crítico, principiológico e constitucional, em suma, um legítimo marco mínimo civilizatório. Em meio a tantos desafios, soam como um conselho as seguintes palavras de Roberto Lyra Filho:

A História é um labirinto, onde nos perderemos, às voltas com fatos isolados, se não carregarmos uma bússola capaz de orientar-nos a respeito da posição de cada um deles na estrutura e no processo”. (O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 50. Coleção primeiros passos).

Que esta bússola possa ser, ainda que em parte, forjada pelos exemplos daquelas e daqueles que dedicaram parte da vida à efetivação do bom e velho Direito do Trabalho, em especial o Professor Paulo Orval Particheli Rodrigues, a quem agradeço pelas valiosas lições e que nos deixou no dia 24 de junho.